O artigo “O que Tancredi não disse”, publicado no Caderno Especial de 12.7.1987, foi uma réplica vigorosa e lúcida ao artigo publicado no Caderno Especial da semana anterior sob o título “O que Tancredi disse”, abrindo-se, assim, uma polêmica sobre a Justiça e o Poder Judiciário.
Nada mais saudável do que o debate num momento constituinte. A própria Associação dos Magistrados do RJ enviou carta aos constituintes, na qual defende a manutenção dos privilégios da Magistratura, insurge-se contra a vinculação do Ministério Público ao Judiciário e protesta contra a inclusão do Ministério Público e da Defensoria Pública como capítulos da Constituição, sob o argumento de que “só o Judiciário é poder do Estado”.
Cumpre assinalar, de início, que tanto o citado artigo quanto a mencionada carta revelam desprezo soberano por instituições que defendem a sociedade e os direitos do cidadão, eventualmente até mesmo contra o Estado, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública. A tese sustentada naqueles documentos merece exame crítico, tendo em vista o prestígio e a força de seus ilustres propugnadores. O próprio relator da Comissão de Sistematização da Constituinte, deputado Bernardo Cabral, declarou recentemente à imprensa que as maiores pressões que vem sofrendo partem do Judiciário.
Afirmar que só o Judiciário é poder do Estado é esquecer que a concepção clássica define que o poder estatal é uno, sendo tripartite sua forma de exercício (Executivo, Legislativo e Judiciário). A fonte do poder, como se sabe, é o povo – todo poder emana do povo.
Ora, o Executivo e o Legislativo são renováveis periodicamente pelo voto popular. O clamor nacional pela eleição direta para presidente da República visa a corrigir uma usurpação de poder, de que todos têm consciência.
Já o Judiciário, em nosso país, não está submetido a nenhum tipo de controle por parte da sociedade civil. É uma instituição que paira acima da sociedade, que não dispõe de meios de corrigir eventuais desvios de sua missão de guardião das leis e da democracia. Em recente artigo publicado na Folha de S. Paulo, o professor Geraldo Ataliba indagava onde estava o Judiciário quando tantos brasileiros foram humilhados, oprimidos, torturados, cassados, banidos e até mesmo assassinados durante os anos de regime militar, longos anos de hipertrofia do Executivo, castração do Legislativo e submissão do Judiciário.
Se “os educadores devem ser educados”, também os juizes devem ser julgados. Com isso já se inquietavam os antigos romanos, quando perguntavam “quem guardará os guardas”(“Sed quis custodiet ipsos custodes” – Juvenal, Sátiras).
O ponto de vista de alguns magistrados talvez não corresponda à opinião da maioria dos membros da Magistratura, que, estamos certos, não desejam a manutenção do status quo.
A tese da imediata democratização da Justiça tem, em parte, encontrado acolhimento na Constituinte. É verdade que não foi aprovada a criação do Tribunal Constitucional, o que é lamentável num país em que não existe um só Ministro do Supremo Tribunal Federal nomeado por um presidente da República eleito pelo povo! Mas, por outro lado, tem prevalecido até agora a disposição de assegurar, no plano institucional, a igualdade de defesa em relação à acusação, criando-se a Defensoria Pública, único meio de garantir de forma eficaz e permanente o acesso à Justiça dos juridicamente necessitados. E ainda o nivelamento institucional no Ministério Público – órgão encarregado da fiscalização da lei e defesa da sociedade – em relação ao Poder Judiciário.
Avançar rumo à democratização é redefinir as relações entre Estado e sociedade civil. E isto não se faz sem transferir parcelas de poder do Estado para a sociedade e a cidadania.
Respeitando as especificidades e as diferenças naturais, pôr no mesmo plano do Judiciário as instituições que, na Justiça, defendem a sociedade e os direitos do cidadão é sem dúvida mudar para melhor e não para pior, como entende o autor do artigo “O que Tancredi disse” ao citar trecho do livro O Leopardo. Aliás, no mesmo livro encontramos o famoso conselho ouvido por Tancredi na corte do Príncipe: “É preciso mudar para que as coisas permaneçam como estão”.
E entre as coisas que neste país não podem mais permanecer como estão encontra-se uma Justiça arcaica, elitista, burocratizada, inacessível à maioria da população e não raro submissa às injunções autoritárias do poder.
Liszt Vieira é defensor público e ex-deputado da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
JB 19/07/1987