Cidadania e Globalização é obra do Liszt militante, amadurecido por vitórias e derrotas, do Liszt ex-deputado, que cumpriu mandato exemplar de dedicação e fidelidade às lutas democráticas; do ativista de organizações não governamentais e líder de movimentos sociais; do Liszt que combateu a ditadura e pagou o preço incomensurável do exílio, como os melhores de sua geração. E é obra, ao mesmo tempo, do Liszt acadêmico, professor de ciências sociais, pesquisador universitário. Liszt Vieira, por combinar suas várias competências, os diferentes lados de sua personalidade pública, por reunir em uma só obra a paixão política e o realismo racional analítico, correu muitos rescos ao escrever esse livro. Mas isso, certamente, não é novidade, em uma biotgrafia marcada pelo inconformismo e pela ousaida. O resultado acabou sendo extremamente positivo, talvez porque o autor tenha sabido submeter a multiplicidade de engajamentos, interlocuções, valores e linguagens, com que opera, ao rigor da reflexão crítica, sem concessões às expectativas ditadas pelas ideologias mais vulgares, à direita e à esquerda.
O principal mérito do livro é lançar para a opinião pública brasileira, em larga escala – graças ao uso de um vocabulário acessível e da recusa, sempres que possível, de noções técnicas da sociologia, da economia e da ciência política – um dos mais importantes e urgentes debates contemporâneos: qual a agenda democrática para o século 21? Quais as metas estratégicas e os meios táticos para atingí-las à disposição das sociedades, sobretudo das mais pobres e marginalizadas dos centros de poder internacionais?
Para responder a essas questões fundamentais, é necessário analisar as tendências mais destacadas dos processos históricos em curso, que caracterizam esse final de milênio. Afinal, sem ma compreensão adequada do contexto sócio-político, econômico-cultural, como identificar linhas de ação eficazes? Como isolar as contradições, as debilidades das estruturas de poder vigentes, as potencialidades inscritas no cenário contemporâneo? Como requalificar, para o quadro cosmopolita do próximo século, os valores que herdamos da revolução popular-burguesa de 1789 – igualdade, liberdade, fraternidade – les próprios reapropriações de aspectos significativos do legado civilizacional judaico-cristão? Em que instituições radicá-los, pô-los em movimento, torná-los normas eficientes de ação pública? De que maneira as instituições liberal-democráticas, que se têm mostrado historicamente capazes (ou melhor: as menos capazes) de absorver avanços sociais expressivos no sentido da justiça social, poderão sobreviver ao colapso da soberania nacional, à retração do papel dos Estados nação (não se trata absolutamente de supressão, mas de redução de sua importância e autonomia), ao deslocamento constante e crescente das arena mais relevantes de decisão para esferas transnacionais?
Para fazer frente a essa bateria de interrogações, Liszt Vieira começa discutindo os diversos significados que se têm atribuído à palavra “globalização”. Em o fazendo, assume uma posição de liderança intelectual e política, ao lado de alguns poucos colegas, que se têm devotado à mesma espinhosa tarefa. Tão espinhosa quanto urgente. Liszt apresenta um inventário de interpretações, comentando-as uma a uma. A primeira crítica é a idealização mais ingênua, proclamada por autores liberais (neo, cripto ou proto); globalização como a solução de todos os males; a modernização via abertura de mercados; o alcance da eficiência via adaptação para a concorrência; a generalização da racionalidade monetária e a paradoxal, irônica e surpreendente separação entre a Política e o Estado, redimensionado e reduzido à lógica administrativa. Em seguida, desautoriza as simplificações grosseiras, tão comuns à esquerda do espectro ideológico: globalização, enfatiza o autor, não se confunde com internacionalização dos mercados financeiro, com transnacionalização econômica. Enfim, não pode ser pensada como um fenômeno exclusivamente econômico.
Subseqüentemente, Liszt se desembaraça de um dos mais perigosos preconceitos, que, com freqüência, as esquerdas cultivam: globalização não é sinônimo de imperialismo, nem implica, necessariamente, homegeneização. Valendo-se de leituras sociológicas nuançadas e sofisticadas do processo, como as propostas por Roland Robertson, Liszt descreve globalização como uma tendência multissecular, dinamizada em nosso século e acelerada desde o fim da guerra fria, com a unificação dos mercados capitalistas. Mostra como os próprios nacionalismos, que tão profundamente marcaram o nosso longo século 20, assim como os Estados nação, que se consolidaram no século 19, são furtos da globalização e não o inverso, como é comum super-se. Lembra-nos o compromisso secular dos socialistas, de várias estirpes, e dos democratas radicais, com perspectivas generosas, includentes e cosmopolitas, que investem na superação das fronteiras nacionais, rumo a ordens transnacionais, ainda que, por vezes, todos estivessem de acordo quanto o fato de que o fortalecimento das nações constitui mediação indispensável à sua própria superação histórica.
Finalmente, focaliza virtualidades positivas, do ponto de vista da tradição socialista e democrática, presentes no processo de globalização, em curso, chamando a atenção para duas dimensões da maior importância, a despeito de quase sempre negligenciadas:
(1) processos transnacionais, envolvendo disseminação de avanços tecnológicos, têm permitido a criação, a ampliação e o aprofundamento de vínculos políticos de solidariedade e cooperação prática entre atores políticos, grupos sociais subalternos, movimentos pela cidadania democrática, em escala até então dexonhecida, o que tem implicado conquistas expressivas, inviáveis em contextos que impõe isolamento político, soial e mesmo comunicacional;
(2) a difusão transnaiconal de produtos, serviços, tecnologias, linguagens, valores, práticas e relações sociais, tem sido refratada por reapropriações críticas e criativas, que se subordinam as formas exógenas às lógicas culturais-endógenas, isto é, próprias às dinâmicas microsociais afetadas pelas novidades que se generalizam e banalizam, em escala planetária. Lembremo-nos de que diferenças apenas se revelam, tornam-se conscientes, se transformam e produzem mudanças, quando se manifestam no interior de relações. Por isso, a antropologia tem nos ajudado a compreender o outro lado da globalização, que se manifesta como produção de diferenças e disseminação de heterogeneidades.
Liszt Vieira não se detém na avaliação dos aspectos positivos, ainda que virtuais, da globalização. Seu livro está longe de ser ingênuo ou unilateralmente otimista. Pelo contrário, com ênfase realista e muitos dados, registra os horrores sociais que têm resultado do desenvolvimento transnacional do capitalismo, desigual e combinado conforme a fórmula tradicional, mas ainda válida. A expansão dos mercados sem regulamentação social produz barbárie, miséria, exclusão da cidadania. A autoridade mundial irrestrita das grandes potências tem se afirmado às expensas da grande maioria das populações afetadas por suas decisões – afetadas nos mais diversos planos, do econômico ao ecológico.
Uma das características mais proeminentes de nosso tempo é justamente a não-correspndência entre o âmbito da soberania democrática para a tomada de decisões, mediadas pela institucionalidade liberal-democrática, e o espaó ecológico-social atingido pelos efeitos gerados, direa ou indiretamente, por tais decisões. Essa incongruência desloca o conceito soberania e exige redefinições da própria instuituicionalidade democrática: afinal, seu princípio matricial não afirma, exatamente, a necessidade de que os afetados pelas decisões do poder público participem do mecanismo decisório? O presente quadro internacional tem implicado a trivialização reificadora da idéia de democracia e a traição de seu princípio matricial.
Por outro lado, qualquer tentativa de reafirmar, na prática, o principio traído, provocaria contradições que nosso fim de século ainda não está pronto para enfrentar, a começar pelo deslocamento dos Estados nação para funções subalternas a uma instituicionalidade política democrática internacional inexistente e, de nosso ponto de vista atual, completamente inviável, porque incapaz de ser suportada por forças sociais organizadas e armadas, em escala planetária.
Mas Liszt não fecha sua obra em tom sombrio. Interpela seus leitores, propondo o debate sobre os limites e as possibilidades de realização da democracia e da justiça social, no horizonte do próximo século, cujo desafio máximo talvez venha a ser a invenção de uma ordem política transnacional, em cuja estrutura as lutas pelo ideário social-democrático e por um desenvolvimento sustentável possam encontrar meios de prosperar, em escala global. Cidadeania e Globalização é uma das obras pioneiras, no Brasil, na difusão de um diálogo intelectual, político e ideológico da maior relevância, que exige abertura de espírito e flexibilidade teórica.
Os benefícios desse debate ultrapassam objetivos práticos imediatos ou querelas conjunturais. Afinal, trata-se de um diálogo que põe em circulação novas idéias, faz repensar as relações entre sociedade e Estado, mad em interação com ambos.
Hoje, talvez mais do que nunca, é preciso Ter presente o contexto transnacional e os processos globais, em nossas análises políticas nacionais e locais. O livro de Liszt Vieira, que tem o mérito de se dirigir a todo público interessado, especializado ou não, representa uma contribuição original, inteligente e polêmica – o que é essencial para que a conversa prossiga, com paixão, mas sem perder a reflexividade autocrítica, jamais. Há muito, Liszt renunciou aos dogmas. Cabe aos leitores, em reciprocidade, suspender preconceitos e entregar-se ao prazer da leitura.
Por Luiz Eduardo Soares – Professor do IUPERJE e da UERJ – JB, 28/03/1998