A prisão de Pinochet na Inglaterra para responder ao processo de extradição solicitado pela Justiça espanhola caiu como raio em céu azul, deixando o mundo em estado de perplexidade. Mas aqueles que vêm acompanhando a legislação internacional de direitos humanos talvez não tenham ficado tão surpresos.
Uma mudança fundamental na natureza do direito internacional vem se produzindo nas últimas décadas. A proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana passou a constituir um dos principais objetivos da comunidade internacional. Tendo como marco inicial a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado pela Organização das Nações Unidas em 1948, os direitos humanos, neste final de século, deixaram de ser apenas uma questão interna dos Estados nacionais.
No mundo de hoje, problemas tornaram-se imediatamente globais, impossíveis de serem resolvidos por meio de políticas nacionais isoladas. Os mercados se globalizaram, o meio ambiente não conhece fronteiras, os meios eletrônicos de comunicação muito menos. Inúmeros tratados internacionais foram aprovados nesta Segunda metade do século XX nas áreas ambiental, científica, cultural, econômica, social, criminal etc, enfraquecendo a tradicional e dominante visão realista que explica as relações internacionais apenas pela força e pelo conflito.
No que se refere aos direitos humanos, um grande número de tratados foi aprovado no âmbito das Nações Unidas. No plano regional, importantes tratados foram assinados no Conselho da Europa, na Organização dos Estados Americanos e na Organização da Unidade Africana, criando-se diversos instituições internacionais de direitos humanos.
Todas essas convenções internacionais estipulam que cabe primordialmente ao Estado a proteção dos direitos humanos de seus cidadãos. Entretanto, muitas vezes são os primeiros a violar os direitos humanos, razão por que os tratados estabelecem mecanismos de controle internacional que constrangem o estado a prestar contas de violações aos direitos humanos. Assim, os crimes contra a humanidade cometidos por Pinochet – genocídio, tortura, terrorismo, assassinato – podem ser julgados internacionalmente.
Alegar que a proteção internacional dos direitos humanos enfraquece a soberania nacional é argumento de algibeira, pois o que vem enfraquecendo a olhos vistos a soberania nacional é a globalização econômica. Os Estados perdem cada vez mais a capacidade de formular políticas nacionais autônomas e muitos deles, como o Brasil, acabam submetendo-se aos programas de “ajustes estruturais” do FMI, hoje criticados até pelo Banco Mundial.
Se os direitos de cidadania e a soberania dependem do Estado nacional, e se este se enfraquece visivelmente com o processo de globalização, como ficarão os primeiros num mundo globalizado?
O Estado como forma política desenvolveu-se, desde o século XVII, a partir da constituição do sistema internacional de Estados, criado pelo Tratado d Westfália em 1648, com seus princípios normativos centrais: territorialidade, soberania, autonomia e legalidade.
A democracia contemporânea é intimamente ligada ao Estado-nação, cujos alicerces estão hoje abalados pela globalização econômica. Debilitam-se os laços territoriais que ligam o indivíduo e os povos ao Estado, o que enfraquece a identidade nacional, diminui a importância das fronteiras internacionais e desestrutura as bases da cidadania tradicional.
Os impactos da globalização reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes, conferindo-lhes perspectivas não territoriais e extra-nacionais. O Estado reformula seu papel em razão de variáveis econômicas exógenas, como expansão do comércio mundial e maior mobilidade internacional do capital. A mentalidade das elites dominantes se desterritorializou a tal ponto que mesmo a “segurança” é definida mais em termos de economia global do que em relação à defesa da integridade territorial.
Diante desse quadro, surgiu, em toda parte, uma minoria de militantes idealistas que resiste à globalização dominante, propondo um projeto alternativo de construir uma sociedade civil global visando à democratização das relações internacionais. Esse projeto de construção de uma “democracia cosmopolita” é entrecortado pelas diversas identidades ligadas a gênero, raça, meio ambiente, concepções espirituais, etc.
Outro fator interessante é a tendência “pós-heróica” da guerra contemporânea, cada vez mais baseada em armamento de alta tecnologia e precisando menos da contribuição humana direta. Esse novo modo high-tech de geo-política reduz a necessidade de apelar ao cidadão patriota nas operações de segurança nacional, diminuindo o papel tradicional da cidadania na defesa da nação.
Nas condições atuais, em face das graves implicações sociais da globalização econômica, interessa ao Estado incentivar a desmobilização popular, mantendo a cidadania passiva e apolítica. Como ao mercado não interessa outra coisa, coube à sociedade civil, agrupada em torno do interesse público, a tarefa de mobilizar as energias cívicas da população para defender, no plano nacional e transnacional, os princípios da cidadania fertilizados com os ideais de democracia política, diversidade cultural e sustentabilidade ambiental.
Um dos principais objetivos desses atores não-estatais é assegurar normas que regulem as operações das empresas transnacionais. Um dos cenários desse confronto tem sido as Nações Unidas, com suas conferências globais sobre temas sociais, econômicos e ambientais, onde essas associações civis transnacionais tiveram intensa participação. Hoje, organizações como Anistia Internacional ou Green-peace, por exemplo, têm mais poder no cenário internacional do que a maioria dos países.
Foi por influência das organizações não-governamentais que as negociações secretas na Organização para Desenvolvimento e Cooperação Econômica 9OCDE) sobre o Acordo Multilateral de Investimentos acabaram divulgadas na Internet e posteriormente bloqueadas. Apesar do abalo que vem sofrendo a cidadania pelo declínio do Estado territorial e da soberania nacional, a atuação transnacional da cidadania na salvaguarda da democracia e dos direitos humanos, bem como na luta pelo desenvolvimento sustentável e pela diversidade cultural, justifica alguma esperança em relação ao futuro.
Por isso, talvez não seja tão surpreendente que, no país sede da Anistia Internacional, a Justiça e o Governo da Inglaterra, seguindo as tendências contemporâneas do direito internacional, tenham decidido dar curso ao processo de extradição do general Pinochet pedido pela Espanha. Uma eventual decisão em contrário da Câmara dos Lordes, na reunião prevista para este mês, só confirmaria que vivemos uma fase de transição.
De qualquer forma, foi histórica a decisão que colocou os direitos humanos por cima da soberania nacional, o que, evidentemente, atrai a cólera de todos aqueles que, de um lado, vêem na soberania territorial dos Estados o sustentáculo da ordem internacional e, de outro, desqualificam como utópicos os esforços de promover a democracia no plano global. Talvez utopia maior seja imaginar que a ordem internacional criada no século XXVII é eterna. Ninguém percebeu isso melhor do que a comissão das Mães da Praça de Maio, cuja representante, em entrevista recente ao canal “Globonews” de televisão, afirmou que a prisão de Pinochet inaugurou o século XXI.
O GLOBO – 18/01/1999
Liszt Vieira é Professor da PUC-Rio