Protegidos por Resoluções anteriores do Conselho de Segurança da ONU, os EUA teriam o direito de empreender ações militares unilaterais contra o Iraque par punir sua resistência ao livre desempenho da missão dos inspetores das Nações Unidas. A Resolução 678 de 1990 do Conselho de Segurança da ONU convocou os estados-membros a tomar “todas as medidas necessárias” para assegurar tanto a resolução que exigia do Iraque a retirada do Kuwait, como “todas as subsequentes resoluções para restaurar a paz e a segurança internacionais na área”. Esta Resolução pode ser interpretada como a base legal que confere autoridade permanente para exigir do Iraque cumprimento incondicional dos termos do acordo que pôs fim à Guerra do Golfo. Tal acordo previa, em suas cláusulas, cooperação com o sistema de inspeção destinado a garantir a eliminação no Iraque de todas as armas de destruição em massa.
A Resolução 678 delegou aos países-membros do Conselho de Segurança a autoridade política para usar a força se e quando julgassem necessário, mesmo sem supervisão do Conselho, uma espécie de “carta branca” que o Conselho de Segurança hoje dificilmente daria de novo. Foi com base nesta autorização que o Presidente Bush – e não o conselho de Segurança – tomou a decisão de iniciar um ataque militar ao Iraque colocaria mais uma questão de legitimidade política do que jurídica.
Não há dúvida de que o governo Saddam Hussein bloqueou a ação dos inspetores da ONU destinada a promover a eliminação das armas químicas e biológicas, alegando intromissão em áreas reservadas por parte dos inspetores, a quem o governo iraquiano acusou de espiões americanos. Isto, porem, não foi considerando argumento suficiente para convencer os membros do Conselho de Segurança contrários à ofensiva militar americana no Iraque.
É verdade que a França e a Rússia possuem interesses econômicos no Iraque, e talvez por isso tenham se oposto à ação militar americana. Mas existe também oposição dentro dos EUA, uma oposição política, difusa na sociedade, a um ataque militar americano, como bem o demonstrou o recente debate na Universidade de Ohio, onde três secretários de estado do governo Clinton, entre os quais Madeleine Albright (Relações Exteriores) e Willian Cohen (Defesa), enfrentaram perguntas embaraçosas, sem conseguir explicar com clareza a estratégia americana no Iraque.
Com efeito, há outros países que possuem armas químicas e biológicas de destruição massiva, como por exemplo, Israel e Índia, mas isto não parece preocupar os EUA, cujo apoio a regimes autoritários, como Indonésia e Turquia, foi questionado pelo público presente no debate de Ohio, transmitido pela TV para o mundo inteiro. Um outro argumento, segundo o qual Saddam Hussein representaria ameaça aos países vizinhos, não foi levado a sério por ninguém, tendo em vista que os países vizinhos não se sentem ameaçados, devido ao enfraquecimento militar iraquiano após a Guerra do Golfo.
Em sua maioria, os analistas políticos nos EUA concordam que a ação militar dificilmente atingiria seus objetivos políticos. Tais objetivos teriam caráter tríplice: a) punitivo – destruir instalações vitais do Iraque como castigo por haver desafiado os inspetores da ONU; b) curativo – eliminar alguns dos estoque suspeitos de conterem armas químicas e biológicas, e c) corretivo – obrigar o governo do Iraque a respeitar os acordos de cessar-fogo de 1991.
Se o primeiro objetivo pode ser facilmente atingido com um ataque aéreo, os dois últimos dificilmente poderiam por tal meio ser alcançados. Os ataques aéreos de 1991 deixaram claro que não se pode garantir que os alegados estoques de armas seriam destruídos, isto sem falar na possibilidade de algum estoque, se atingido, liberar substâncias tóxicas.
Antes do acordo obtido em Bagdá pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, o governo Clinton havia aprovado um plano de bombardeio aéreo massivo durante quatro dias, vinte e quatro horas por dia. Segundo o Pentágono informou ao Congresso americano, o plano militar, denominado Trovão do Deserto, acarretaria, como “conseqüências colaterais”, a morte de pelo menos 1.500 civis. Como o governo americano oficialmente declarou que o ataque limitar-se-ia a bombardeios aéreos, uma vez que a hipótese de desembarque de tropos esta excluída, por falta de apoio internacional, não parece haver dúvidas de que o regime de Saddan Hussein sobreviveria ao ataque americano, dele saindo enfraquecido militar e economicamente, mas fortalecido moralmente, como toda vítima.
O Iraque não é o primeiro país desrespeitar resoluções do Conselho de Segurança. Israel, com o apoio de diversos países-membros, inclusive os EUA, ignorou as decisões do Conselho de Segurança que invalidavam as anexações de Jerusalém Oriental e de Golã, e que exigiam a retirada completa de Israel do território do Líbano. E o Conselho de Segurança nunca invocou o capítulo 6 da Carta das Nações Unidas, que prevê o uso de força em casos de ameaças à paz e à segurança.
O acordo firmado entre Kofi Annan e o presidente Saddam Hussein sobre a inspeção dos alegados estoques de armas químicas e biológicas, constrange os EUA a recuar e adiar a decisão militar, para ver se o Iraque cumprirá ou não os termos do acordo. Se o governo americano não respeitar o acordo ou concluir que o Iraque não o está cumprindo, o mundo assistirá pela TV ao espetáculo destruidor de uma guerra aérea de quatro dias. O Trovão do Deserto poderá talvez atender a interesses estratégicos por trás do conflito – petróleo, produção de armas e equipamentos, táticas militares, manobra para desviar a atenção pública de escândalos internos – mas dificilmente atingirá os objetivos políticos declarados pelo governo americano. Do ponto de vista político, o tiro poderá sair pela culatra.
JB – Opinião – 26/02/98
Autor de Cidadania e Globalização e pesquisador visitante da Universidade de Columbia.