Nos idos de 68

09/05/2018

Um vento libertário soprou no mundo no ano de 1968. A referência principal foi e continua sendo o maio de 68 na França, onde duas agendas principais se encontraram, se aliaram e depois se separaram: a agenda libertária e anticapitalista liderada pelos estudantes de Paris, e a agenda reivindicatória, liderada pelo Partido Comunista em nome da classe operária.

Na realidade, a revolta dos estudantes não se colocou o objetivo de tomar o poder. Uma enxurrada de desejos combatia todas as formas de poder e autoridade. O melhor exemplo da visão libertária, anarquista, anticapitalista, anticonsumista dos estudantes encontra-se nos grafites e frases pichadas nos muros de Paris em maio de 1968. Seguem alguns exemplos.

Abaixo a sociedade de consumo/ As armas da crítica passam pela crítica das armas/ A barricada fecha a rua, mas abre a via/ Ceder um pouco é capitular muito/ Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês/ A economia está ferida, pois que morra!/ O estado é cada um de nós./ A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista/ Eu participo. Tu participas. Ele participa. Nós participamos. Vós participais. Eles lucram/ Os jovens fazem amor, os velhos fazem gestos obscenos/ As paredes têm ouvidos. Seus ouvidos têm paredes/ O patrão precisa de ti, tu não precisas do patrão/ Os sindicatos são uns bordéis/ Trabalhador: você tem 25 anos, mas seu sindicato é de outro século/ Abolição da sociedade de classes.

No início de maio, apesar das reticências e mesmo oposição dos comunistas, os estudantes entraram nas fábricas ocupadas conclamando os operários à luta. A CGT acabou convocando greve geral e os operários se juntaram aos estudantes na famosa marcha ocorrida no primeiro dia de trabalho após a violenta Noite das Barricadas na sexta feira 10 de maio.

Manifestações gigantescas ocorreram a partir de 13 de maio quando os operários se juntaram aos estudantes em greve. Marcharam lado a lado, mas com palavras de ordem diferentes. Os operários gritavam palavras de ordem reivindicatórias, e os estudantes brandiam slogans libertários:

É proibido proibir/O álcool mata. Tomem LSD/ A emancipação do homem será total ou não será/ A imaginação toma o poder/ A insolência é a nova arma revolucionária/ A liberdade do outro estende a minha ao infinito/ A mercadoria é o ópio do povo/ Fim da liberdade aos inimigos da liberdade / Professores, vocês nos fazem envelhecer/ O sonho é realidade./ Só a verdade é revolucionária/ Sejam realistas, exijam o impossível/ A arte está morta, não consumamos o seu cadáver/ Abram as janelas do seu coração/ O discurso é contra revolucionário/ Milionários de todos os países, unam-se, o vento está mudando/ Não tomem o elevador, tomem o poder.

Em 1968, o Partido Comunista tinha uma liderança inconteste na classe operária francesa: 44% dos membros do P.C. eram proletários. Muito criticado por ter freado o processo revolucionário então em curso, o P.C. provavelmente sentiu o pulso da classe operária francesa que não estava disposta a fazer revolução. Para os estudantes e a esquerda, a aceitação dos Acordos de Grenelle que pôs fim às greves operárias concedendo um aumento de 35% ao salário mínimo e 10% aos salários em geral, foi uma traição. Segundo diversos analistas, o Partido Comunista não tinha interesse em tomar o poder pela revolução, e essa atitude espelhava o comportamento da classe operária. Acabou pagando alto preço, ao se tornar irrelevante no cenário político francês dos anos 70 em diante.

Os fundadores da revista Socialismo ou Barbárie, os filósofos Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, divergiram na análise de maio de 68. O primeiro falou em revolta bem sucedida, o segundo em revolução fracassada. Castoriadis foi contundente: afirmou que na França em maio de 1968 o proletariado industrial não era a vanguarda revolucionária da sociedade, mas antes a sua retaguarda. Se o movimento dos estudantes atacou os céus, o que prendeu a sociedade à terra foi a atitude do proletariado, sua passividade em relação à liderança e ao regime, sua inércia, sua indiferença a tudo o que não era reivindicação econômica (1968: When the Communist Party Stopped a French Revolution, M. Abidor,  NY Times, 19/4/2018).

Os estudantes também saíram às ruas em outros países. Na Alemanha, por exemplo, o líder estudantil Rudi Dutschke foi baleado na cabeça em uma grande manifestação em Berlim, em abril de 1968. Do outro lado do Atlântico, tivemos no México o massacre de Tlatelolco: 300 estudantes foram assassinado pela Polícia na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco, Cidade do México, em 2/10/1968. Pouco conhecido, mas bastante significativo, foi o movimento estudantil nos EUA agrupado numa frente chamada Students for a Democratic Society – SDS. Reprimido o movimento, um dos grupos se radicalizou e partiu para a luta armada contra o regime político norteamericano.

Esse grupo se autodenominou Weatherman que, ao pé da letra, significa homem do tempo, ou seja, meteorologista. O nome veio de uma canção de Bob Dylan: You don’t need a weatherman to know which way the wind is  blowing (Você não precisa de um meteorologista para saber de que lado sopra o vento). De visível inspiração anarquista de contra poder, essa organização, também chamada de Weatherman Underground, se propunha criar um partido clandestino revolucionário para derrubar o governo dos Estados Unidos.  Aliou-se ao  Black Liberation Army e ao Black Panther Party, tendo realizado uma série de atentados a bomba em meados dos anos 1970.

No Brasil, os ventos libertários de 68 assumiram diversas formas, todas elas sobredeterminadas pela ditadura militar instalada em 1964. No calendário político, em vez de maio, tivemos, nos idos de março, o assassinato do estudante Edson Luís, alvejado pela Polícia Militar numa manifestação contra o aumento do preço do bandejão no Calabouço, região central do Rio de Janeiro. Em seguida, a grande manifestação dos 100 mil no mês de junho, liderada pelo movimento estudantil e com a participação de intelectuais, artistas, profissionais liberais, funcionários etc.

A repressão às manifestações de rua contra a ditadura foi se agravando até a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968 que implantou a “ditadura dentro da ditadura”.  As manifestações tornaram-se perigosas e praticamente inviáveis. Nessa encruzilhada política, os ativistas que lutavam contra a ditadura assumiram diferentes posições, entre as quais destacamos três.

Vários grupos se organizaram para travar uma luta armada contra a ditadura brasileira. Essas organizações se afastaram do modelo da revolução russa, baseado na insurreição da classe operária, e adotaram principalmente o modelo da revolução chinesa, baseada na formação de um Exército Popular no campo para depois cercar a cidade e tomar o poder, ou o modelo guerrilheiro cubano, sistematizado por Che Guevara e teorizado pelo intelectual francês Regis Debray. Inspirados na resistência heroica do povo vietnamita na guerra do Vietnam, esses grupos realizaram muitas ações armadas, desde assaltos a banco (“expropriação”) para se auto financiarem até os sequestros do embaixador americano, do cônsul japonês em São Paulo, do embaixador alemão e do embaixador suíço, para a libertação de presos políticos. A partir de 1971, essas organizações começaram a desmoronar.

Um foco alternativo de resistência à ditadura foi a oposição de artistas e intelectuais reprimidos em sua criação literária e artística. Escritores, jornalistas, artistas, atuando na imprensa, na literatura, na música, no teatro, no cinema etc. enfrentaram a censura e mantiveram viva a luta pela democracia no Brasil. Nesse grupo, podemos incluir o movimento de contra cultura, de grande expressão artística nos anos 60 em diante.

Outro grupo que atraiu muita gente desencantada com os rumos totalitários do regime brasileiro foi constituído por pessoas que abandonaram as cidades para viver no campo de seu trabalho agrícola ou da venda de artesanato. Essa opção era então chamada de “desbunde”. Muitos retornaram posteriormente às cidades, outros lá permaneceram e fixaram raízes.

Na realidade, essas opções se formaram e se desenvolveram principalmente após 68, mas foram profundamente marcados pelo AI-5 promulgado em 13 de dezembro de 1968. Embora a retórica da maioria desses grupos fosse a proposta de uma revolução socialista, consagrada nos textos de seus programas políticos, na realidade todos eles acabaram contribuindo, de uma maneira ou de outra, para enfraquecer a ditadura e, portanto, para a redemocratização do país. A distância entre as intenções e os atos com suas consequências, entre as idéias e fatos, explica como pessoas e grupos que desprezavam a democracia burguesa acabaram contribuindo para seu retorno.

A mensagem libertária e democrática de 68 foi na época derrotada pelo poder dominante. A França foi governada nos anos 70 pela direita: Georges Pompidou e Giscard d’Estaing. Os EUA por Richard Nixon, Gerald Ford e, depois do curto intervalo de Jimmy Carter (1977-81), por Ronald Reagan e George Bush nos anos 80. No Brasil, a ditadura militar perdurou até meados dos anos 80.

A longo prazo, porém, o espetáculo de maio de 68 deitou raízes profundas no campo simbólico e na luta ideológica contra os valores e a dominação política do sistema capitalista. O ano de 1968 desenhou, avant la lettre, a futura história  de movimentos culturais e sociais de caráter identitário que explodiriam nos anos seguintes, como o movimento feminista,  LGBT, movimento negro, ambientalista, de libertação sexual e, no caso dos EUA, a luta pelos direitos civis e contra a discriminação racial que teve como ponto de inflexão o assassinato de Martin Luther King em abril de 1968.

Chamado na época pelo governo De Gaulle de “conspiração internacional” e pelo Partido Comunista de “provocação esquerdista”, é inegável que as lutas libertárias do ano de 1968, de que o Maio francês se tornou paradigma, deixaram uma extraordinária contribuição histórica para a eterna luta dos povos pela liberdade e pelos direitos humanos.