Resenha do livro ”Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel”

07/09/2018

 

O Brasilianista James Green, professor da Brown University, nos EUA, nos presenteou com a biografia dessa extraordinária figura humana que foi Herbert Daniel. Com o título “Revolucionário e Gay – A Vida Extraordinária de Herbert Daniel”, editora Civilização Brasileira, o professor James Green escreveu um livro baseado em intensa pesquisa de documentos, livros e entrevistas orais para demonstrar o papel pioneiro de Herbert Daniel na luta pela democracia, diversidade e inclusão.

Aluno brilhante do quarto ano da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, Daniel fez opção de largar tudo e se dedicar inteiramente à luta armada contra a ditadura militar. Militante de organizações revolucionárias como o COLINA que, juntamente com outros grupos formou a VAR-Palmares, Daniel acabou ingressando junto com o capitão Lamarca e outros companheiros na VPR. Participou do grupo de treinamento de guerrilha no Vale da Ribeira que acabou cercado pelo Exército. Liderado pelo capitão Lamarca, o grupo rompeu o cerco e se dirigiu ao Rio de Janeiro onde organizou o sequestro do embaixador alemão para a libertação de 40 presos políticos, entre os quais o autor dessas linhas.

Posteriormente, participou do sequestro do embaixador suiço que libertou 70 presos políticos. Com o desmoronamento das organizações de luta armada, Daniel se recolheu e permaneceu escondido algum tempo numa casa em Niterói. Nunca foi preso.
Seus companheiros no exílio viviam preocupados porque sabiam que, se ele fosse preso, seria assassinado pelas ousadas ações de que participou, principalmente os sequestros dos dois embaixadores e o rompimento do cerco no Vale da Ribeira que desmoralizou o Exército. Daniel acabou saindo do país. Morou em Paris e Lisboa, junto com seu companheiro Claudio.

No exílio, Herbert Daniel pôde assumir sua homossexualidade que havia reprimido pelo forte preconceito que predominava na esquerda da época. Após rápida passagem por Paris, ele foi morar em Portugal que vivia a abertura da Revolução dos Cravos.

Em Lisboa, foi um dos mentores do Programa de Alfabetização e Conscientização do Ministério da Educação, inspirado na filosofia de Paulo Freire. O programa foi um sucesso em várias partes de Portugal, mas acabou suspenso. O Partido Comunista queria inundar o país com uma cartilha feita em Lisboa e o Partido Socialista queria transformar os pontos de atendimento do interior em base de apoio eleitoral. O golpe militar de 25 de novembro de 1975 prende militares de esquerda que tentavam radicalizar o regime, entre os quais o general Otelo Saraiva de Carvalho, e promove mudanças no Governo. Pouco depois, soldados invadiram o apartamento de Daniel e Claudio atrás de armas que não existiam. Em janeiro de 1976, sentindo-se inseguro e havendo perdido o emprego, Herbert Daniel se muda para Paris, onde começou a trabalhar numa boite gay.

Ele propôs um debate sobre homossexualidade ao Comitê Brasileiro pela Anistia que reunia os exilados políticos brasileiros em Paris. O Comitê se dividiu, uma parte rejeitou a proposta sob o argumento de que isso não era uma questão política. Para evitar um racha, Daniel levou o debate para o auditório da Casa do Brasil na Cidade Universitária que nunca havia recebido tanta gente para assistir a um debate.

Ao retornar ao Brasil, após a Lei da Anistia, Daniel destacou-se na formulação de um programa político que serviu de base à plataforma eleitoral que me elegeu Deputado pelo PT-RJ em 1982. Ele articulou as questões hoje chamadas de “identidade” (então chamadas de “minorias”) com as questões ligadas ao poder político de Estado. Pela primeira vez no Brasil, um programa eleitoral mostrava que o poder não se resume ao aparelho de Estado, mas está presente nas relações sociais entre homens e mulheres, hetero e homossexuais, brancos e negros etc. Lembremos que, na época, agressões a mulher, a negro ou a gay eram toleradas com frases do tipo “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, “no Brasil não há preconceito racial”, “viado tem mesmo de apanhar” etc.

Herbert Daniel lançou-se candidato a deputado em 1986. Não foi eleito, mas considerou-se vitorioso pela divulgação de suas ideias. Talvez nem quisesse se eleger e se tornar deputado. Ele era muito mais um pensador do que um operador da política.

Com a criação da ABIA – Associação Brasileira de AIDS – pelo seu xará Herbert de Sousa, o famoso Betinho, Herbert Daniel encontrou uma instituição que chegou a dirigir para levar adiante as ideias que vinha desenvolvendo a respeito do combate a AIDS. Com efeito, nos anos 80, Daniel se tornara uma liderança intelectual do movimento gay. A imprensa, na época, chamava AIDS de “doença gay”. Daniel demonstrou, com sua formação intelectual e médica, que a AIDS podia tornar-se uma epidemia atingindo também homens e mulheres heterossexuais, principalmente na população pobre.

Aproveitando sua militância no mundo político-partidário e sua liderança no movimento gay, Herbert Daniel escreveu vários livros, entre os quais “Passagem para o Próximo Sonho”, “Meu Corpo Daria um Romance”, entre outros.

Essa rica história de vida, que resumimos acima em rápidas pinceladas, nos é apresentada com rigor e informações preciosas pelo professor James Green em sua biografia. Ao analisar, na figura do biografado, um momento histórico de resistência à ditadura militar, um grande mérito do livro é tratar a sexualidade como questão política ao descrever a trajetória desse extraordinário revolucionário e gay chamado Herbert Daniel. Dele, e de seu biógrafo, seremos sempre devedores.