Brexit, Trump, Bolsonaro: o declínio da democracia

O poder é uma relação… lá onde há poder, há resistência
(Michel Foucault, História da Sexualidade, vol. 1, A Vontade de Saber)

08/02/2019

O filme/documentário Brexit mostra os bastidores da campanha da retirada da Grã Bretanha da União Européia (U.E.) comandada por profissionais ligados aos meios eletrônicos de comunicação que desprezavam as relações políticas tradicionais. Por detrás, a mesma empresa que financiou em seguida a campanha de Trump nos EUA: a Cambridge Analytica. E o mesmo método de conseguir um poderoso banco de dados com informações pessoais para inundar o mercado de opiniões com fake news.

Após grande número de reuniões focais, com pessoas de diferentes estratos sociais e níveis de renda, o grupo coordenador obteve um número significativo de opiniões, medos, expectativas, rejeições etc.  A partir desse material, inventaram notícias falsas que tocavam diretamente nas emoções de grande parte do eleitorado. Enquanto a campanha a favor da permanência na União Européia focava em questões racionais da política – dinheiro, emprego – a campanha do Brexit buscava exclusivamente mobilizar a emoção com mensagens curtas e simples. Um dos lemas centrais era “Retomar o Controle”: todos os problemas decorreriam da perda de controle do país para a U.E.

Inventaram, por exemplo, que a Grã Bretanha gastava uma quantia enorme para permanecer na U.E. e não recebia nada em troca, quando esse dinheiro podia ser empregado na saúde da população. Após detectar que os ingleses não gostavam da Turquia que queria entrar na U.E., divulgaram informação distorcida para que as pessoas pensassem que 50 milhões de turcos iriam imigrar para a Inglaterra, o que era mais de 60% da população total. Chega a ser patético ver no documentário uma mulher desesperada gritando contra isso.

A mesma lógica da campanha de Trump e do Brexit, e a mesma empresa Cambridge Analytica, estão presentes na vitória de Bolsonaro no Brasil. Não apenas com as mentiras absurdas como kit gay ou mamadeira em forma de pênis, mas apelando sempre às emoções das pessoas, e não à razão. O foco do marketing eleitoral já estava previamente definido pela mídia que influenciou a opinião pública: a corrupção seria a origem de todos os males, e a corrupção foi ligada ao PT, embora o PP fosse de longe o partido com mais políticos processados na Lava Jato.

Como o candidato a presidente era ignorante e medíocre, incapaz de pensar questões complexas, e sempre reduzindo tudo a um único fator para o qual apresenta uma única solução, simplista e errada, era imperioso fugir dos debates. Para tanto, a bandeira da corrupção caiu como uma luva. A isso foram acrescentados o ideal de renovação – posto que era evidente que o sistema político não representava mais ninguém – bem como as propostas de violência para assegurar a segurança pública, aceitas equivocadamente por uma população assustada com a criminalidade crescente nas cidades.

Outros ingredientes foram mobilizados na campanha eleitoral, entre os quais destacam-se o liberalismo econômico, sempre querendo privatizar e reduzir o papel do Estado, o conservadorismo em matéria de costumes, o fundamentalismo religioso dos evangélicos, e o setor militar ansioso para retornar ao poder.

Diante desse quadro, os cientistas políticos deviam repensar as teorias da democracia no que diz respeito a um de seus aspectos: a eleição dos governantes. Em geral, o que vemos são análises post factum, ou seja, análises da correlação de forças após as eleições, e que desprezam a análise dos fatores que levaram a população a escolher seus representantes. Começa a tornar-se fantasiosa a idéia de que a democracia se baseia em pessoas livres que escolhem seus candidatos de forma independente, após debate franco e aberto na esfera pública. E já é evidente que envelheceu a visão tradicional que circunscreve o poder ao aparelho de Estado. Hoje, está claro que o poder atravessa as relações sociais e vigora no sistema econômico, nas relações homem-mulher, branco-negro, hetero-homossexual, assim como nas organizações comunitárias e corporativas.

Um dos maiores críticos da democracia representativa, que encontrou em Locke um de seus grandes teóricos, foi Rousseau que defendia a democracia participativa e afirmava que a soberania não pode ser representada. Autores contemporâneos propuseram uma “democracia deliberativa” (Habermas, por exemplo) para viabilizar formas diretas de participação política. A experiência do orçamento participativo e dos conselhos gestores de políticas públicas são bons exemplos de democracia participativa. Mas o que se vê em geral é um grande déficit democrático nos países onde o poder é definido por eleições. A superação desse déficit exige dispositivos que garantam controle popular sobre as decisões do Estado.

Depois das eleições do Brexit, Trump e Bolsonaro, não é mais possível ignorar o papel da tecnologia de comunicação na distorção dos fatos e invenção de notícias mentirosas, falseando o debate eleitoral. Não se trata mais de candidatos com propostas diferentes buscando o apoio na sociedade. A maioria das pessoas não vota mais em propostas racionais, mas no candidato que capturou sua emoção, não importa se com verdades ou mentiras.

Esse é um dos maiores dilemas que falseiam a opinião pública: a mentira toma o lugar da verdade, as pessoas passam a acreditar nas fake news e desprezam a realidade. Os argumentos racionais tornam-se muitas vezes impotentes para desfazer a mentira e restabelecer o fato. Conforme inscrito no célebre quadro do pintor espanhol Goya, “o sono da razão cria monstros”.

Não é possível travar um debate eleitoral em cima de milhares de mentiras espalhadas pela indústria de fake news. Isso afeta a essência mesma da democracia. É fundamental restabelecer a primazia dos fatos da realidade. Lembremo-nos de Bertrand Russell:
“Quando você está estudando um assunto ou considerando alguma filosofia, pergunte a si mesmo: quais são os fatos?  qual é a verdade que os fatos revelam?
Nunca se deixe divergir pelo que você gostaria de acreditar ou pelo que você acha que traria benefícios às crenças sociais se fosse acreditado… Olhe somente para os fatos.”

Infelizmente, na campanha eleitoral de 2018, os fatos foram ignorados e distorcidos em favor de uma enxurrada de mentiras divulgadas aos quatro ventos pela fábrica de fake news  por meio principalmente do whatsapp. Em última análise, essa indústria de falsas informações apoiou e levou ao poder um candidato com propostas pré modernas, anti científicas, obscurantistas, mas também ligadas aos interesses econômicos de seus financiadores. Pela primeira vez na história da República, um Governo oficialmente nega a ciência, ao afirmar, entre outras barbaridades, que o aquecimento global é invenção do “marxismo cultural”.

Claro que muitos outros fatores explicam a vitória de Bolsonaro: o desgaste da esquerda e o cultivado ódio ao PT,  a ilusão de que a violência resolve a questão da segurança, a ingenuidade de achar que um candidato até então considerado honesto acabaria com a corrupção, a ignorância e o desconhecimento das “relações perigosas” do candidato com a quadrilha de assassinos das milícias no Rio de Janeiro, o interesse dos que esperam ganhar dinheiro com um governo neoliberal etc.

O que fica, porém, de lição para as futuras campanhas eleitorais é a experiência vitoriosa da emoção sobre a razão, da indústria de fake news que criou um mundo imaginário em que a mentira prevalece sobre a verdade. E as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar, sem se preocupar em saber se aquilo em que acreditam é ou não um fato da realidade. No mundo da “pós verdade”, muita gente aceita como verdadeiro qualquer boato que reforça sua opinião, e despreza tudo o que contraria seus pontos de vista. A visão científica baseada em fatos reais vem perdendo terreno na área política para as ilusões da visão conservadora de boa parte da sociedade.

Para os otimistas, a internet propicia a constituição de uma esfera pública virtual com grande possibilidade de participação direta do cidadão na governança democrática. Os indivíduos deixam de ser meros receptores de informação e se tornam também emissores de informação. Já os pessimistas ressaltam a exclusão digital, a ausência de racionalidade, o excesso de informações que equivale à ausência de informações, a possibilidade de monitoramento por empresas e governos e a fragmentação da esfera pública.

A técnica em si mesma não é nem boa nem má, e também não é neutra. As novas tecnologias de comunicação podem ser usadas como instrumento de libertação ou repressão. A internet pode contribuir para o fortalecimento ou enfraquecimento de uma sociedade democrática. Trata-se de um conflito aberto, em disputa, que pode variar de um lugar para outro. No caso da eleição presidencial de 2018 no Brasil, essas novas técnicas de comunicação foram manipuladas pela empresa Cambridge Analytica que inundou o país com informações falsas, exatamente como ocorreu na campanha de Trump e do Brexit.

Assim, o know how de uma avançada tecnologia de comunicação foi usado a serviço do atraso, da visão pré moderna, anti científica e obscurantista do grupo que tomou o poder no Brasil. O objetivo, no fundo, era manter e ampliar a dominação do capital financeiro que propõe transformar em mercadoria os bens protegidos pelas políticas públicas do país.

Os conflitos já surgidos no interior do novo Governo brasileiro mostram correntes políticas díspares e até mesmo antagônicas, típicas do século XIX: o moralismo conservador da era vitoriana, o liberalismo econômico exacerbado da “mão invisível do mercado” e o positivismo racionalista dos militares que proclamaram a República. Do lado da sociedade, a provável reação dos setores sociais a serem atingidos pelas políticas impopulares e elitistas já anunciadas levarão o país a virar a página da eleição e a enfrentar o Governo que, em um mês, quase foi devorado pelo caos que se instalou face à ausência de um projeto para o Brasil.

Com certeza, teremos muitos conflitos pela frente. Afinal, o poder é uma relação social. Como dizia Foucault, onde há poder, há resistência.