O que é ser de esquerda?

13/02/2019

As noções de esquerda e direita mudam no tempo e no espaço. É um terreno conceitual movediço. Um líder político pode desempenhar papéis diferentes em momentos diferentes. Alguns elementos, no entanto, podem ser alinhavados para uma melhor compreensão do problema.

Historicamente, o termo “esquerda” tem origem na Revolução Francesa. No centro do plenário da Assembléia Nacional, ficava a chamada “Planície” ou “Pântano”. À esquerda, localizavam-se os “jacobinos” ou “montanheses”, mais radicais, e à direita ficavam os “girondinos”. As posições eram bem definidas, cabendo ao centro um papel conciliador e moderado. O “pântano” foi chamado ironicamente de “sapos” por Jean Paul Marat em seu jornal O Amigo do Povo. Os girondinos eram burgueses moderados e defendiam a Monarquia Constitucional. Os jacobinos eram ligados à pequena burguesia de comerciantes e profissionais liberais.

Sob a liderança de Robespierre, entre os anos de 1792 e 1794, o grupo dos Jacobinos dominou o cenário político da França num período denominado “ Terror”. Foi abolida a Monarquia Constitucional e instaurada a República em setembro de 1792. O rei da França, Luís XVI, foi executado em janeiro de 1793. Inspirada nos jacobinos, o termo “esquerda” foi associado à noção de violência e radicalidade.

As posições de esquerda e direita sempre olharam o centro com desconfiança. Mesmo na literatura, o centro não é muito apreciado, apesar do ditado in medio virtus (a virtude está no meio)O poeta inglês W. B. Yeats chegou a dizer: Things fall apart, the centre cannot hold (em livre tradução: as coisas desmoronam, o centro não se sustenta).

Muitas vezes, porém, é o centro que decide uma eleição. No Brasil, por exemplo, tradicionalmente a direita tem 30% do eleitorado, a esquerda idem, e os 40% restantes constituem o chamado “centro” que tem um movimento pendular: pode se deslocar para a esquerda, como ocorreu na eleição de Lula, ou para a direita, como ocorreu na última eleição.

Um erro persistente da esquerda é chamar o centro de direita (a direita também já chamou o centro de esquerda). Esse erro tem raízes históricas. As analogias são sempre perigosas, porque os contextos históricos são diferentes. Mas vale recordar o famoso erro do partido comunista alemão nos anos 30 que identificou como inimigo principal seus concorrentes mais próximos, os socialistas e os social democratas. Veio o fascismo, e destruiu todos.

Não abordaremos aqui as diferenciações da esquerda na análise da luta de classes como, por ex., a esquerda revolucionária, que prioriza as relações de produção, em contraposição à esquerda reformista, que leva mais em conta o desenvolvimento das forças produtivas . As inúmeras subdivisões da esquerda em correntes políticas e teóricas tampouco serão objeto de análise no presente artigo. Julgamos mais pertinente abordar a noção de esquerda ao lado dos oprimidos em contraste com a noção de direita ao lado dos opressores.

Diversas perspectivas usaram o termo “esquerda” para designar o polo igualdade na dicotomia liberdade x igualdade, ou o polo liberdade na dicotomia liberdade x autoridade. Há casos, porém, de difícil classificação. Um deles é o do escritor francês Alexis de Tocqueville. Como todo aristocrata, ele detestava a burguesia, então revolucionária, e poderia, por esse lado, ser chamado de direita. Fez uma crítica liberal da Revolução Francesa. Mas em seu livro Democracia na América, ele se encantou com a organização autônoma das associações civis nos EUA, o que lembra a ideia contemporânea de sociedade civil, ou seja, a noção de organização popular contra o autoritarismo. Preocupado com a tirania, ele disse certa vez que “a anarquia não é o maior dos males que uma democracia deve temer, mas o menor”.

Apesar do gigantismo do Estado americano, essa noção de autonomia está na origem da cultura de Contra Poder das últimas décadas, como mostra a canção de Bob Dylan que deu nome à organização revolucionária clandestina norte americana Weatherman, atuante nos anos 70: You don’t need a weatherman to tell which way the wind blows (em tradução livre, você não precisa de um meteorologista para saber de que lado sopra o vento).

Outro exemplo notável foi Thomas Paine. Lutou na Inglaterra, na Revolução Francesa e na Revolução Americana. Paine tem um perfil nitidamente de “esquerda”. Uma estátua em Paris com sua escultura traz a seguinte inscrição: “Cidadão do Mundo, Inglês por nascimento, Francês por Decreto, Americano por Adoção”. Era de fato um cidadão do mundo. Foi um revolucionário globalizado avant la lettre.

A partir do século XIX, com o desenvolvimento da Revolução Industrial, a noção de esquerda ficou associada às lutas da classe operária por melhores condições de vida. Redução da jornada de trabalho de 14 horas, descanso semanal, aposentadoria, férias etc, tudo o que hoje chamamos de direitos sociais foi conquistado a ferro e fogo na lutas operárias. Os autores que descreveram e analisaram a condição operária, e todos os que participaram ou apoiaram essas lutas, foram considerados de esquerda. Os socialistas chamados de utópicos por Marx, como Fourier, Saint Simon, Owen ou Proudhon, o próprio Marx, é claro, até historiadores mais recentes como Edward Thompson, entre muitos outros, contribuiram para construir a dimensão teórica e política da esquerda que via na classe operária a missão histórica de destruir o capitalismo. A classe operária era vista como revolucionária e seu partido o instrumento político da revolução.

A Revolução Russa de 1917 foi, durante décadas, o paradigma da revolução socialista que derruba as instituições burguesas erigidas pelo capitalismo. Foi uma revolução proletária que se tornou modelo para o futuro. A tal ponto que Trotsky, por exemplo, desdenhou da revolução chinesa em seu início dizendo que um bando de camponeses famintos e esfarrapados não poderia jamais fazer uma revolução.

Após os ventos libertários no início da revolução russa, principalmente nas artes, na cultura e na ciência, o governo bolchevique, para sobreviver após a guerra civil, acabou transformando-se num regime autoritário que reprimiu milhões de camponeses e eliminou pensadores e políticos de oposição. Ao mesmo tempo, construiu uma infra estrutura que permitiu à União Soviética resistir ao nazismo. É bom não esquecer que, na Segunda Guerra Mundial, morreram mais de 20 milhões de russos, enquanto, dos países aliados, morreram 3 milhões.

A história russa tem uma trajetória autoritária: o Czar no império, Stalin no comunismo, e agora Putin no capitalismo. No período stalinista, a maioria da esquerda em todo o mundo apoiava o governo socialista da União Soviética e fechava os olhos para a repressão da liberdade. A repressão leninista aos anarquistas, por exemplo, foi praticamente ignorada. A esquerda passou a se identificar com o Estado. Essa identificação durou todo o século XX. Nos países subdesenvolvidos, o Estado passou a ser visto como o principal instrumento do desenvolvimento econômico e social.

Somente em fins do século passado surgiram correntes de esquerda identificadas primordialmente com a sociedade civil, sem identificação a priori com o Estado ou o mercado. A fórmula que melhor resume essa ideia é a síntese brilhante de Marc Nerfin, na época presidente da Fundação Internacional de Alternativas para o Desenvolvimento: “Nem Príncipe, Nem Mercador: Cidadão”.

Esse conceito de sociedade civil é tributário de Gramsci, que viu na sociedade civil o lugar de produção da cultura e não mera superestrutura política ou infra estrutura econômica. Além da divisão gramsciana tripartite de Estado, Mercado e Sociedade Civil, esse conceito, em diferentes combinações, preserva aspectos chaves da crítica marxista à sociedade burguesa, a defesa liberal dos direitos civis, a ênfase dada por Hegel, Tocqueville e outros à pluralidade societária, a importância dada por Durkheim à solidariedade social, e a defesa da esfera pública e da participação política acentuada por Habermas e Hannah Arendt.

A partir da segunda metade do século XX, o confronto principal se concentrou no eixo Estado x Mercado. A direita apoia o mercado e propõe o Estado Mínimo, ou seja, apenas o necessário para assegurar a ordem e lhe fornecer os recursos financeiros extraídos de toda a população, e também lhe garantir a exploração dos recursos naturais do meio ambiente. A esquerda, por outro lado, defende o Estado como orientador do desenvolvimento, regulador do mercado e instrumento de redução da desigualdade social. A política de direita promove a transferência de renda dos pobres para os ricos. A de esquerda propõe taxar as grandes fortunas, os ganhos do capital e a herança objetivando transferir renda dos ricos para os pobres.

Nesse contexto, outras diferenças surgem. A direita prioriza o equilíbrio das contas públicas, o combate à inflação, mediante o corte das despesas sociais. Faz o discurso da “austeridade” para cortar benefícios sociais em seu proveito. O aumento, mesmo nominal, de salários e proventos dos trabalhadores é apresentado como “rombo no orçamento”. O perdão das dívidas astronômicas e dos impostos devidos pelos empresários é apresentado como “incentivo ao investimento”.

A esquerda prioriza as despesas sociais, os investimentos em infra estrutura e propõe cobrar impostos não pagos, combatendo a sonegação fiscal. Ataca o capitalismo financeiro “de cassino”, o sistema “rentista”, e propõe investir na indústria nacional. Estamos longe de uma viável proposta socialista, hoje reduzida ao ideário de alguns partidos ou grupos de esquerda que, em geral, não se dão ao trabalho de explicar se a propriedade privada seria ou não abolida, se os meios de produção seriam ou não estatizados e se o mercado seria ou não tolerado.

Como se vê, os termos esquerda e direita não constituem conceitos científicos, mas são noções úteis que podem ser usadas em diferentes contextos, nem sempre com o mesmo sentido. O filósofo italiano Norberto Bobbio, em seu livro Direita e Esquerda, apresenta diversos elementos diferenciadores. Embora não constituam blocos homogêneos ou coerentes, pode-se admitir que a esquerda se orienta essencialmente para a promoção da igualdade e para a mudança da ordem social. Já a direita concebe a desigualdade como algo intrínseco à humanidade e apoia as tradições e a preservação da ordem social.

Segundo Bobbio, a esquerda prioriza o igualitarismo sobre os direitos da propriedade e do livre comércio. O racionalismo, o laicismo, o desprezo à oligarquia, a preservação do meio ambiente e os interesses dos trabalhadores devem prevalecer sobre a necessidade de crescimento econômico.

Ainda segundo Bobbio, a direita apoia o individualismo, a supremacia da propriedade privada e da livre iniciativa, a valorização da ordem e da tradição, mostra intolerância à diversidade étnica, cultural e sexual. Exalta o militarismo e a defesa da segurança nacional, o crescimento econômico em detrimento da preservação ambiental e dos interesses dos trabalhadores, o anticomunismo e a identificação permanente com as classes superiores da sociedade. E tem nostalgia da nobreza e do heroísmo.

Claro que há visões diferentes que restringem a noção de esquerda à proposta de um socialismo, seja autoritário ou democrático, este último em geral identificado com a social democracia. Estas visões mais exigentes de esquerda se fortalecem por ocasião das periódicas crises econômicas mundiais. O capitalismo supera suas crises criando outras.

A crise final do capitalismo, tema tão caro à perspectiva de certas correntes trotskistas, dificilmente viria sem uma alternativa visível no horizonte.

As grandes derrotas dos movimentos revolucionários no século XX ainda não decantaram para produzir uma utopia possível no século XXI. Segundo o historiador Enzo Traverso, em seu livro Melancolia de Esquerda – Marxismo, História e Memória, “a obsessão pelo passado que vem moldando nosso tempo resulta do eclipse das utopias: é inevitável que um mundo sem utopias acabe olhando para trás”.

Assim, a luta pela democracia não é travada apenas no Brasil. A ascensão da direita é hoje um fenômeno mundial. O capitalismo se globalizou, juntamente com inúmeros processos e atividades como, por exemplo, as comunicações eletrônicas, o tráfico de drogas e armas, a produção industrial, o mercado financeiro, a produção cultural etc. Todos esses processos passam por cima da soberania nacional. As nações, em sua maioria, tornaram-se hoje províncias dos países hegemônicos, sem poder enfrentar nem mesmo as empresas transnacionais e seus orçamentos monumentais.

A esquerda hoje não pode mais encastelar-se em seu próprio país e ignorar o mundo. Soberania nacional passou a ser um termo retórico que perdeu seu conteúdo histórico criado no Tratado de Westfália em 1648. Como disse o filósofo Jurgen Habermas, “precisamos tentar salvar a herança republicana, mesmo que seja transcendendo os limites do Estado-Nação”. E, diríamos hoje, também para salvar a própria humanidade, ameaçada pelo aquecimento global e pela destruição dos recursos naturais. Numa extraordinária visão de futuro, o cineasta Jean Renoir, em A Grande Ilusão, fez o ator Jean Gabin dizer, no final do filme: La frontière, c’est une invention des hommes. La nature s’en fout. (em tradução livre: A fronteira é uma invenção dos homens. A natureza está se lixando).

Assim, na conjuntura atual, doméstica ou internacional, ser de esquerda é, pelo menos, lutar por uma democracia participativa que não se resume a eleições periódicas. Lutar sem esmorecer contra as bandeiras da direita “civilizada” e sobretudo da extrema direita que se confunde com a barbárie, como é o caso do presidente eleito no Brasil que apoiou a tortura, estupro, guerra civil, armas para todos, discriminação da mulher, negro, gay, indígenas etc.

Não se trata de receita de bolo, não pretendemos apresentar aqui um programa, mas o mínimo que se espera de uma esquerda hoje é lutar pelos direitos de primeira geração – os direitos liberais, pelos direitos de segunda geração – os direitos sociais, e pelos direitos de terceira geração – os direitos difusos e coletivos. Todos esses direitos estão ameaçados com o avanço da extrema direita, de que o Brasil é hoje uma triste vanguarda. Essas lutas poderão talvez desembocar na formação de uma Frente Democrática Pluripartidária que tenderia a se fortalecer à medida em que os direitos humanos continuem a ser golpeados com a conivência do Poder Judiciário. Mais cedo ou mais tarde, essa “esquerda” democrática, articulada internacionalmente, vai combater com mais eficiência o Estado de Exceção que já começou a se instalar no Brasil.