Guerra no Chile e identidade nacional na América Latina

22/10/2019

 

A desigualdade social e a privatização dos serviços públicos, de baixa qualidade e muitas vezes inacessíveis à maioria da população, como transporte e previdência, por exemplo, estão na raiz dos protestos e conflitos atuais no Chile. O aumento na tarifa do metrô foi a gota d ‘água.

A maioria não pode pagar os serviços caros de saúde, educação, transporte, moradia, água, luz, energia etc. O Governo recuou do aumento na tarifa do metrô, mas os protestos continuaram. É o modelo econômico que está em questão. Os marginalizados do neoliberalismo partiram para as ruas e mostraram sua insatisfação com o desemprego, baixíssimas aposentadorias e elevada desigualdade social que, pelo índice Gini (quanto mais alto, maior a desigualdade) se eleva a 0,51 (dados de 2015). A média na OCDE, á qual pertence o Chile, é de 0.32. O do Brasil, em março de 2019, é de 0,62, um dos mais altos do mundo.

O modelo neoliberal foi implantando no Chile em fins da década de 70, na ditadura de Pinochet. Os serviços públicos foram privatizados enquanto a maioria da população recebe menos de um salário mínimo. As Universidade públicas são pagas e muitos estudantes contraem empréstimos para depois de formados levarem 10 ou 15 anos para pagar. A saúde pública é paga, não existe SUS, os planos de saúde são caros e não cobrem todas as despesas hospitalares com cirurgia, internação etc.

Os direitos trabalhistas foram suprimidos na ditadura. Os sindicatos são fracos, sem poder de negociação. As aposentadorias são administradas por empresas privadas, na lógica da capitalização, que investem buscando lucros. Se ganham, ficam com o dinheiro. Se perdem, retiram a perda do Fundo de Aposentadoria dos trabalhadores que, em geral, se aposentam com no máximo 30% do que recebiam antes. Isso explica o aumento do número de suicídios de idosos nos últimos dez anos.

O “paraíso” neoliberal do Chile explodiu. Confrontos, saques, incêndios, barricadas. Exército nas ruas. O presidente afirmou: “Estamos em guerra”. Guerra contra o povo. Contra os deserdados do neoliberalismo.

Enquanto isso, no Brasil…

A reforma da Previdência foi aprovada na Câmara e praticamente aprovada no Senado. Mas o modelo chileno de capitalização defendido pelo ministro Guedes foi rejeitado. No Brasil, os parlamentares perceberam, até agora pelo menos, o crime de retirar ainda mais o dinheiro dos aposentados pobres para transferir esses recursos ao mercado financeiro.

A explosão atual do Chile foi mal comparada com os protestos de rua de 2013 no Brasil. Aqui, tivemos uma resultante final apropriada pelos setores conservadores, e nem de longe se compara com a violência dos confrontos da população enfrentando o Exército no Chile. Além disso, a identidade nacional, a história, a geografia e a cultura são muitos diferentes.

Um fator histórico importante a ser considerado é que o Brasil é talvez o único país da América Latina que não conquistou a independência nacional – ela foi concedida de cima para baixo, sem luta. A República foi uma quartelada a que o povo assistiu “bestializado”, segundo a expressão do historiador José Murilo de Carvalho. E à Independência, nem bestializado assistiu. As guerras e lutas que marcaram o povo brasileiro foram regionais (Farrapos, Sabinada etc.).

Nosso mito de origem foi a “descoberta” em 1500, em que já estão presentes os três componentes da nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial. Essa visão europeizante de identidade nacional excluía os colonizados. A história oficial foi escrita pelas elites onde o povo está, em geral, ausente. Isso ajuda a explicar porque a história do Brasil, segundo as elites, glamorizou e até mesmo ignorou a escravidão, enquanto na história do povo brasileiro a escravidão é questão central. Explica também porque o brasileiro não se identifica com sua história, como ocorre em outros países latino-americanos. O brasileiro, tradicionalmente, sempre teve mais orgulho da natureza do que da sua história.

A construção da identidade nacional, na Europa e em toda a América, privilegiou nos séculos XVIII e XIX o sentimento de unidade em detrimento da diversidade. Tratava-se de construir a Nação, o que foi feito oprimindo e sufocando identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc. bem como a divisão da sociedade em classes. Enfim, o conceito de nação, baseado na unidade, ocultou a diversidade.

Mas, talvez por isso mesmo, engendrou ideologias – o patriotismo e o nacionalismo – que ajudaram a forjar a identidade nacional e mobilizar as populações, principalmente dos países coloniais, para morrer na guerra pela pátria. É sugestivo que quase todos os hinos nacionais da América Latina falem em “morrer pela pátria”. Além disso, essas ideologias tornaram-se poderosos instrumentos de mobilização popular para as grandes guerras do século XX.

Com a redemocratização do Brasil nos anos 80, as identidades culturais antes sufocadas reaparecem, colocam no espaço público suas demandas e sobrepujam muitas vezes a identidade nacional, visivelmente abalada com o processo de globalização que enfraquece os atributos básicos do Estado-Nação: territorialidade, soberania, autonomia.

Esse ressurgimento de identidades culturais se dá paralelo ao enfraquecimento (e não desaparecimento) do nacional e, simultaneamente, ao fortalecimento do local e das organizações da sociedade civil. O local passa a interagir com o global criando novos patamares culturais. Chico Mendes, ao morrer, era um herói local e global, mas desconhecido no plano nacional.

Um bom exemplo do espírito predominante no período de formação nacional são os hinos nacionais que refletem o espírito de conquista da independência nacional contra países colonizadores. Na América Latina, basta consultar alguns hinos para verificar como o apelo para morrer pela pátria está enraizado no espírito da época como marco da identidade nacional. Vejamos alguns exemplos.

O hino nacional uruguaio exclama: Orientales, la Patria o la Tumba! Libertad o con gloria morir! Da mesma forma começa o hino paraguaio: Paraguayos, República o Muerte! E Cuba, país do “Patria o Muerte, Venceremoscanta, logo na primeira estrofe do seu hino: No temáis una muerte gloriosa/ que morir por la Patria es vivir.

O hino do Haiti nos ensina que é belo morrer pela pátria: Pour le drapeau, pour la patrie/ Mourir est beau, mourir est beau. O de Honduras fala em morte generosa: Marcharemos, ¡oh patria!, a la muerte;/ Generosa será nuestra suerte,/ Si morimos pensando en tu amor. O da Bolívia, no mesmo sentido: Morir antes que ver humillado/ de la Patria el augusto pendón. O da Guatemala conclama vencer ou morrer: Libre al viento tu hermosa bandera/ A vencer o a morir llamará.

O colombiano nos lembra que: Se baña en sangre de héroes/ la tierra de Colón. E termina dizendo: “deber antes que vida”/ con llamas escribió. O hino mexicano conclama à guerra evocando a morte: Tus campiñas con sangre se rieguen, /Sobre sangre se estampe su pie. No final, promete aos heróis combatentes: ¡Un sepulcro para ellos de honor! E assim termina o hino nacional da Argentina: Coronados de gloria vivamos/ O juremos con gloria morir. O chileno é o único que fala em asilo: O la tumba serás de los libres/ O el asilo contra la opresión. No final, não foge à regra: O tu noble glorioso estandarte/ Nos verá combatiendo caer.

Em meados do século XX, a guerra de independência nacional da Argélia produziu um hino nacional com versos semelhantes: Et nous avons juré de mourir pour que vive l’Algérie! No caso brasileiro, não houve guerra pela independência, concedida de cima para baixo pelo próprio imperador português. Nem por isso o hino da independência dispensou o apelo a morrer pela pátria: Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil!

A ideia de morrer pela pátria (Pro Patria Mori) ficou no inconsciente coletivo do imaginário popular brasileiro. Muitas décadas depois, os hinos da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, exclamavam: Antes a morte que um viver de escravos! Ou: Ser Paulista! É morrer sacrificado/ Por nossa terra e pela nossa gente! Ou ainda: Que os irmãos dos vinte estados/ Sejam todos redimidos/ Pelo sangue dos soldados/ Dos paulistas destemidos. Os versos mais conhecidos, de Guilherme de Almeida, conclamavam os estudantes a abandonarem a escola para morrer na guerra: Enquanto se sente bater/ No peito a heroica pancada/ Deixa-se a folha dobrada/ Enquanto se vai morrer.

Já o hino nacional brasileiro trilhou outros caminhos. A ênfase está menos no heroísmo guerreiro do povo e mais na grandeza e gigantismo da nossa natureza. As elites brasileiras, e não só elas, costumavam ter mais orgulho da nossa geografia do que da nossa história.

No Brasil, natureza e nação estiveram indissoluvelmente ligadas. A identidade nacional esteve tradicionalmente mais ancorada na natureza do que na história. Há um sentimento generalizado que se orgulha mais das belezas naturais. Isso é uma atitude cultural que se tornou visível no romantismo literário que predominou no século XIX e deixou marcas que se estendem até hoje. Por isso, pode-se afirmar que a degradação da natureza destrói o amor próprio do brasileiro. Neste sentido, o crime ambiental é também cultural.

Mas vale a pena lançar um rápido olhar para ver como ocorreu em outros países a relação morte/pátria. Exemplos mais recentes tivemos na América Latina, onde o apelo a morrer pela pátria atravessou o século XX. Não apenas no Brasil, onde o suicídio de Vargas deixou marcas, mas certamente menos profundas do que as deixadas pela morte de Eva Perón na Argentina. Idolatrada pelo povo, até hoje há filas para visitar seu túmulo aos domingos no cemitério de Recoleta, em Buenos Aires.

Nos anos 70, em sua luta contra a ditadura militar, o grupo peronista Montoneros retoma o lema “morte pela pátria”, já sob a influência do mito de sacrifício heróico de Che Guevara e do exemplo da Revolução Cubana que deflagrou um processo revolucionário na América Latina.

O Montonero não apenas está disposto a morrer pela pátria, ele se prepara para morrer. Suas ações são muitas vezes suicidas, só vislumbram a vitória ou a morte. Seus lemas “pátria, vitória ou morte”, “Perón ou morte. Vencer ou morrer pela Argentina” revelam um etos sacrificatório. A Revolução é um objetivo sagrado e a morte é um exemplo que não enfraquece o corpo montonero, indissoluvelmente ligado ao corpo nacional. Esses “dois corpos” dos Montoneros encontrariam suas origens não só nos exemplos heroicos da guerra civil espanhola, mas na própria alma argentina simbolizada, segundo a escritora Beatriz Sarlo, pelos personagens de Borges, para os quais a honra é uma paixão e a coragem, sua principal virtude.

Longe dos arroubos passionais da Argentina, o México – Pobre Méxicotão longe de Deus, tão perto dos EUA, segundo disse o ditador Porfirio Dias em 1900 – parece haver esgotado sua cota de derramamento de sangue na Revolução Mexicana pela reforma agrária. A partir de 1934, o México conheceu o regime nacionalista e democrático de Lázaro Cárdenas, que protegeu os camponeses, suprimiu o latifúndio, realizou uma reforma educacional laica e nacionalizou o petróleo. Demonstrou pluralidade e tolerância política ao receber Trotsky como refugiado. Foi um político íntegro que combateu a corrupção e apoiou os republicanos na guerra civil espanhola.

Depois de Cárdenas, o Partido Revolucionário Institucional – PRI – tornou-se conservador e assegurou um longo domínio na política mexicana. O México foi uma exceção na América Latina ao institucionalizar os conflitos no processo político, abolindo, a partir de meados do século XX, o impulso de morrer pela pátria. O domínio do PRI esterilizou a vida política no México na segunda metade do século XX.

A identidade nacional tem base territorial e é quase sempre mono linguística. Foi construída em detrimento de outras identidades e se opõe em relação às demais nacionalidades. Esse tipo de identidade moderna foi abalada pela globalização e, em muitos casos, se estrutura menos pela lógica dos Estados e mais pela dos mercados.

A força identitária da nação perdeu vigor e hoje se refugia em áreas específicas como o esporte, principalmente o futebol, como assinalou o historiador Eric Hobsbawn. No Brasil, durante a Copa do Mundo, muitas ruas das cidades se vestem de verde-amarelo. Se o esporte é a transposição simbólica da guerra, o brasileiro pode não morrer pela pátria, mas certamente demonstra enorme entusiasmo em torcer pela pátria. Depois, volta a torcer pelo seu clube contra os demais. No plano nacional, a identidade é definida pela diferença e não pela igualdade, como ocorre no plano internacional.

Em suma, a construção nacional supõe necessariamente a exclusão da alteridade. A busca da homogeneidade nacional sufoca as demais identidades porventura conflitantes. O enfraquecimento atual dos atributos básicos do Estado nacional – soberania, territorialidade, autonomia – dilui a força da identidade nacional, fazendo ressurgir as identidades culturais antes sufocadas.

No caso brasileiro, o esquecimento da história se aliou à lembrança da natureza. E hoje enfrentamos o dilema de saber como os brasileiros reagem ao constatar que seu orgulho patriótico do passado – a natureza – está sendo cada vez mais degradada pela lógica econômica neoliberal. Se o brasileiro nunca teve orgulho de sua história, já começou a perder o orgulho de sua natureza, cada vez mais destruída e transformada em mercadoria de exportação.

Menos motivo de orgulho têm os brasileiros diante da brutal e crescente desigualdade social no país. O número de milionários no Brasil cresceu 19% em 2019, afirma Pesquisa do Credit Suisse (Estadão, 21/10/2019). Até 2024, o crescimento do número de milionários será de 23%, chegando a 319 mil pessoas. A pesquisa estima que o 1% mais rico da população brasileira detém 49% de toda a riqueza familiar do país, que chega a US$ 3,5 trilhões. O resultado é ainda mais impressionante no caso dos chamados ultra ricos, que têm patrimônio acima de US$ 50 milhões: o Brasil teve a segunda maior alta global, atrás apenas dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a miséria extrema no país cresce e atinge 13,2 milhões de brasileiros. O Brasil vive o ciclo mais longo de aumento da desigualdade: a concentração de renda cresce no país há mais de quatro anos, fruto do aumento do desemprego (O Globo, 16/8/2019).

Se projetarmos para o futuro as inevitáveis consequências do modelo neoliberal brasileiro, o grande dilema que se coloca é saber se o Chile é o Brasil amanhã. Se não houver mudanças drásticas no modelo neoliberal hoje no poder, a explosão social no Brasil é questão de tempo. É o que nos adverte o professor Boaventura de Sousa Santos, “o Brasil é o próximo país a ter convulsão social, como Equador e Chile” (O Globo, 22/10/2019). Isso, se o atual Governo não cair, o que permanece uma possibilidade.