28/11/2019
Em 27 de novembro passado, o STF, por maioria de votos, autorizou órgãos de controle, como a Receita Federal e o antigo COAF (rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira – UIF), a repassar ao Ministério Público (MP), sem autorização judicial, informações sobre transações suspeitas de crime. Em julho, o Ministro Toffoli, presidente do STF, determinou a paralisação de todas as investigações que tivessem utilizado informações enviadas por órgãos de controle, sem autorização judicial, ao MP. Essa decisão paralisou 935 investigações do MP Federal (UOL, 20/11/2019), inclusive o processo do senador Flavio Bolsonaro.
Um dos pontos centrais em questão é o direito ao sigilo bancário e fiscal, parte integrante do sigilo dos dados pessoais previsto na Constituição. O canal direto dos órgãos de controle ao MP, sem passar pela Justiça, tornou-se uma questão problemática face ao desvirtuamento político das funções atribuídas ao MP pela Constituição. Com efeito, como ficou sobejamente demonstrado pela atuação “seletiva” da Lava Jato, o MP, em conluio com o juiz Sergio Moro, ignorou a lei e tomou decisões subjetivas consoante seu interesse político.
Com a emergência da operação Lava Jato, as três instituições voltadas ao combate do crime sofreram transformações que as afastaram de seu papel tradicional. O MP Federal, a Polícia Federal e o Poder Judiciário assumiram um protagonismo que vai além de sua clássica missão prevista na Constituição. Tradicionalmente, o juiz tinha de ser convencido das provas produzidas pela Polícia ou MP e frequentemente absolvia o réu em caso de insuficiência de provas. In dubio pro reo era um princípio sagrado. No contexto da Lava Jato, o juiz assume a perspectiva da investigação e da acusação e o M.P., se as provas não são suficientes, apela para a “convicção”, como ocorreu na denúncia e condenação do ex-presidente Lula, uma denúncia mais política do que jurídica. Uma farsa que agora se repete com a nova condenação em novo julgamento político de Lula pelo desmoralizado TRF-4, cuja decisão afrontou o STF e comprovou sua atitude de praticar o lawfare, típica da “magistocracia” brasileira.
Estamos diante de um processo de politização do M.P. e do Judiciário que constitui a outra face da judicialização da política que não cessa de aumentar frente ao esvaziamento do Poder Legislativo. Além da partidarização, o M.P, a Polícia e o Judiciário, que deveriam se fiscalizar mutuamente, passaram a atuar em parceria com o objetivo de combater a corrupção e de punir seletivamente, contrariando os princípios do Estado de Direito. Os crimes cometidos pelos aliados políticos eram ignorados. Por aliados, entenda-se os políticos do PSDB (Aécio, Serra, entre outros), banqueiros, bem como Juízes e Procuradores, nenhum deles foi processado pela Lava Jato. As denúncias, quando chegavam, eram engavetadas. Já em relação aos adversários políticos, não se conformaram em cumprir a lei. Condenavam mesmo sem provas, como ocorreu no caso do ex-presidente Lula, entre outros.
Indubitavelmente, verificou-se um processo de fortalecimento e autoafirmação do M.P, da Polícia e do Poder Judiciário que perseveraram em seu animus acusatório priorizando não a busca da justiça, mas o fortalecimento de suas próprias instituições. A autonomia dessas instituições judiciais intensificou-se a ponto de às vezes adquirirem independência, favorecendo uma espécie de “pretorianismo” sobre as instituições políticas, segundo a expressão do cientista político Leonardo Avritzer.
Além de sua tradicional função acusatória de propor ação penal pública para crimes comuns, o MP, a partir da Constituição de 1988, recebeu outras funções como, por exemplo, defender direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, e fiscalizar políticos e burocratas. Já antes da Constituição de 88, o MP havia ampliado sua autonomia funcional com a Lei da Ação Civil Pública, de 1985, que lhe propiciou novas ferramentas como o Inquérito Civil e o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Tudo isso conformou seu perfil de órgão de controle político.
Ressalvando-se os promotores e procuradores que permaneceram fiéis ao texto constitucional, os setores hegemônicos do MP e da Polícia Federal ganharam prestígio com as sucessivas operações de combate à corrupção envolvendo políticos e empresários. Com o apoio da mídia, a via penal tornou-se mais atrativa ao MP. Nem sempre foi assim. Há poucos anos, predominava ainda a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. O combate policial à corrupção não podia então violar os direitos e garantias individuais previstos na Constituição.
O protagonismo de alguns atores do sistema de justiça e das instituições judiciárias escapa à lógica do Estado Democrático de Direito, já que eles ignoram muitas vezes direitos individuais ao assumirem prioritariamente estratégias de criminalização de políticos, principalmente os ligados à esquerda. Um exemplo foi a condução coercitiva do ex-presidente Lula sem intimação prévia e sem negativa em atendê-la, em clara violação da Constituição e da legislação penal. Outro exemplo foi a divulgação ilegal da sua conversa gravada com a então Presidente da República, utilizada pelo STF como prova para impedir a nomeação do ex-presidente Lula como Ministro do Governo.
Como vimos na Operação Lava-Jato, o que predominou foi a seletividade da atuação das instituições judiciais, muitas vezes comprometidas com elites políticas e econômicas, e com a apropriação particularista da noção de interesse público que pretendem defender. O processo de judicialização da política em curso tem utilizado como importante instrumento o instituto da delação premiada, um mecanismo de Direito Penal típico em sistemas de common law. A delação premiada é um instituto vinculado ao modelo jurídico anglo-saxão que favorece as práticas negociáveis no âmbito jurídico visando à obtenção de resultados práticos a serem apresentados à sociedade.
Esse processo acarretou a tendência à seletividade, ampliou a atuação do MP no campo dos direitos difusos e coletivos e no combate à corrupção, bem como aparelhou a Polícia Federal que aumentou muito sua capacidade operacional. A Lava Jato serviu como modelo para uma nova forma de atuação do MP no campo penal, assumindo postura política no combate à corrupção.
A pesquisa “Ministério Público: Guardião da democracia?”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESEC, da Universidade Candido Mendes, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, divulgada na Folha de São Paulo em 6/12/2016, revelou perfil elitista e distorções na atuação do Ministério Público.
A pesquisa mostra que, em média, o promotor no Brasil é homem, branco, 43 anos, focado no combate à corrupção. 70% dos promotores e procuradores são homens e 77% são brancos. A alta escolaridade dos genitores indica a origem social elevada: 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados tinham curso superior. Essa proporção, no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, é de 9% para homens e 8,9% para mulheres.
Os membros do M.P. concentram-se mais na sua tradicional tarefa de acusação penal e, mais recentemente, no combate à corrupção, e ignoram ou negligenciam funções imprescindíveis à segurança da sociedade, como o controle externo das polícias e a fiscalização das punições legais.
Os dados da pesquisa mostram que o Ministério Público “não vem cumprindo, ou cumprindo mal, as vastas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988, sobretudo em áreas que deveriam ser de atuação prioritária: controle externo das polícias, supervisão da pena de prisão e defesa de direitos coletivos”.
A polícia brasileira é uma das mais violentas do mundo. Em 2015, as forças policiais brasileiras mataram nove pessoas por dia. No Brasil, o número de mortos por policiais no último ano subiu 20%. O Rio de Janeiro concentra 1/4 dos óbitos. O Estado do Rio de Janeiro registrou em 2019 o maior número de mortes em confronto com as polícias de sua história, mostram dados do ISP (Instituto de Segurança Pública). Entre janeiro e outubro deste ano, agentes de segurança mataram 1.546 pessoas — superando as 1.534 mortes por intervenção policial registradas em 2018, maior número registrado até então.
A Constituição de 1988 definiu o controle externo da atividade policial como atribuição exclusiva do MP. Segundo a coordenadora da pesquisa, Julita Lengruber, isso resultou num rotundo fracasso: “há certa ‘cumplicidade’ entre o órgão e as polícias, sobre tramitação de processos penais iniciados com prisão em flagrante, na qual promotores repetem na denúncia a versão policial dos fatos, sem averiguar sua veracidade, nem a legalidade do flagrante, nem tampouco a possível ocorrência de tortura ou maus tratos”.
Em suma, a pesquisa mostra que o trabalho de promotores e procuradores tem se concentrado mais em atividades acusatórias do que em garantia de direitos. Destarte, o processo de judicialização da política sofreu profundas modificações, com um duplo deslocamento. Em primeiro lugar, deslocamento da esfera cível de atuação para a criminal. Em seguida, deslocamento da atuação em favor de direitos difusos e coletivos para priorizar o controle à corrupção, violando muitas vezes direitos e garantias individuais.
A politização da Justiça – a outra face da judicialização da política – tende a priorizar a dimensão repressiva de combate à corrupção, o que leva as instituições judiciais à perspectiva de dar tratamento criminal à atividade política. A Constituição de 1988 priorizou o MP como a instituição de defesa do interesse público, e ignorou a Defensoria Pública, vista apenas como órgão destinado a patrocinar interesses individuais privados. Após longo e árduo trajeto, em que enfrentou a oposição da OAB e principalmente do próprio MP, a Defensoria, por decisão do STF, passou a promover ação civil pública e a defender direitos coletivos e sociais. Constitui hoje o principal instrumento de defesa dos direitos da cidadania.
Tradicionalmente, o termo cidadania envolve uma série de direitos tais como direitos civis e políticos (chamados de primeira geração), sociais (de segunda geração) e difusos (de terceira geração). Aí se encontram também os direitos relacionados à identidade (negros, mulheres, gays, indígenas etc.). Além disso, num conceito mais amplo de cidadania, encontramos ainda a luta por melhores condições de vida (educação, saúde, habitação, transporte público etc.).
O conceito de acesso à justiça foi ampliado e passou a incluir, além da atuação no plano judicial, a promoção de cidadania e solução de controvérsias no plano extra judicial. Tornou-se, assim, um direito humano fundamental, pois a titularidade dos direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. A passagem da defesa dos interesses individuais aos coletivos enfrentou conflitos e avançou ao priorizar não os “produtores” do sistema jurídico mas sim os “consumidores” do sistema (Cappelletti M, Acesso à Justiça).
Um bom exemplo do novo papel da Defensoria Pública foi sua resposta à campanha do MP “Dez Medidas Contra a Corrupção” que propõe suprimir direitos para melhor combater a corrupção. A Defensoria lançou campanha própria denominada “Dez Medidas em Cheque” questionando a supressão de direitos e mostrando que não é possível combater ilegalidades com atos ilegais ou supressão de direitos assegurados na Constituição. Entre os principais pontos questionados, encontram-se a restrição de habeas corpus, o uso de provas ilícitas e o teste de integridade para agentes públicos.
Recentemente, a Defensoria Pública destacou-se ao defender no STF a prisão somente em caso de decisão transitada em julgado, demonstrando ainda que são os pobres os maiores prejudicados com a prisão após decisão em segunda instância.
A Defensoria Pública tornou-se uma instituição de ponta na luta pela defesa dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal. Numa conjuntura em que o Judiciário, o MP e a Polícia Federal se articulam para combater a corrupção e atropelam direitos individuais, a Defensoria destaca-se como um Contra Poder na defesa intransigente dos direitos de cidadania ameaçados. Assim, a Defensoria Pública desempenha um papel Contra Hegemônico ao defender o direito de quem não tem direitos, por serem negados pelo sistema político-jurídico dominante.