16/12/2019
Alguns analistas de política internacional viram na vitória conservadora que ratificou o Brexit uma rejeição de trabalhadores à ameaça, real ou imaginária, de imigrantes e uma rejeição de industriais ao polo financeiro de Londres, uma das praças internacionais do capital financeiro mundial. Como se sabe, 80% da economia britânica vem do setor serviços.
A derrota trabalhista com a vitória dos conservadores levará provavelmente o Reino Unido a se aproximar mais dos EUA, o que agrada a Trump que sempre detestou a União Europeia (UE), como símbolo do multilateralismo que tanto lhe desagrada. Mas negociar com Trump é uma faca de dois gumes. O America First de Trump, se aplicado, vai dificultar muito a possibilidade de um acordo de livre comércio que é, em última instância, o que deseja Boris Johnson.
Antiga potência imperial, o Reino Unido tem dificuldades de aceitar seu atual papel subalterno. Ainda está impregnado do orgulho imperial do passado e sente nostalgia dos tempos coloniais do Rule Britannia! Além disso, os britânicos nunca se sentiram muito europeus. Churchill e Margareth Thatcher não apoiavam a causa europeia. O presidente francês François Mitterrand chegou a dizer que a primeira ministra Thatcher “se comportava como menina de 8 anos quando falava com o presidente dos EUA” (Dorrit Harazim, O Globo, 15/12/2019). Era arrogante para baixo, humilde para cima.
Especula-se que a vitória conservadora do Brexit possa levar a duas consequências importantes e inesperadas. A primeira é a possível saída da Escócia da Grã Bretanha para se filiar à UE. A Grã Bretanha, como se sabe, é a união da Inglaterra, Escócia e País de Gales. E o Reino Unido é a união da Grã Bretanha com a Irlanda do Norte.
Já existe um movimento político na Escócia propondo sua permanência na UE. O Partido Nacionalista Escocês (SNP), que se posiciona contra o Brexit, alcançou um expressivo avanço: conquistou 48 das 59 cadeiras que cabem à Escócia no Parlamento britânico. Esse partido propõe um novo Plebiscito sobre a independência da Escócia, rejeitada em 2014 por uma maioria apertada de 55% dos eleitores.
Menos provável, mas também possível, é a saída da Irlanda do Norte, protestante e membro do Reino Unido, em função de acordos com a República da Irlanda, país católico, hoje independente e vinculado à UE.
A fronteira da República da Irlanda com a Irlanda do Norte será a única fronteira terrestre da UE com o Reino Unido, depois do Brexit. Isso vai colocar uma série de questões comerciais e aduaneiras que antes não existiam, já que todos estavam na UE. Pelo acordo negociado nas tratativas do Brexit, a Irlanda do Norte participará da união aduaneira britânica, mas manterá regras do mercado comum europeu para impedir eventuais controles na fronteira com a República da Irlanda que violariam os acordos de paz anteriores, principalmente o Acordo da Sexta Feira Santa de 1998 que determinava “nenhuma fronteira na Ilha da Irlanda”.
Ainda é cedo para previsões, não se sabe qual acordo de comércio será negociado entre Boris Johnson e a UE. Segundo a proposta do primeiro ministro Johnson será uma saída sem ruptura, com acordos comerciais especiais, sem tarifas nem cotas, por exemplo. Mas tudo indica que a UE, igualmente desejosa de acordos comerciais, será muito mais exigente do que demonstrou até agora.
Alguns jornalistas decretaram o fim da globalização com a confirmação do Brexit e o avanço de posições nacionalistas em vários países, principalmente os EUA. Mas o prazo para a negociação do novo acordo comercial do Reino Unido com a UE se esgota no final de 2020, se não for renovado. A novela vai continuar. E antes disso teremos a eleição presidencial nos EUA, onde há fortes indicações de que Trump pode perder a eleição. E antes ainda a crise da votação do impeachment de Trump que será aprovada na Câmara de maioria democrata e rejeitada no Senado de maioria republicana.
Assim, falar agora em fim da globalização é, no mínimo, uma imprudência. Mais provável é a desagregação do Reino Unido com a crise econômica que advirá do Brexit. Diversas empresas já saíram e os bancos já retiraram de Londres 1 trilhão de dólares, enviados a países europeus (Estadão, 15/12/2019). Por outro lado, o ressurgimento dos nacionalismos enfrenta problemas no âmbito interno e internacional.
A divisão do mundo em Estados nacionais, consagrada no Tratado de Westfalia em 1648, levou à repressão de identidades culturais. Em nome da construção histórica do Estado Nacional, identidades étnicas, sexuais, de gênero, religiosas etc. foram sufocadas. A partir da segunda metade do século passado, começam a ressurgir as identidades antes reprimidas, que passaram a se organizar em movimentos reivindicatórios como o feminismo, LGBT, movimento negro, indígena, entidades religiosas etc.
Essas identidades se tornaram, para muitas pessoas, mais importantes do que a identidade nacional que se enfraqueceu com a globalização de dominância liberal. As grandes corporações transnacionais possuem orçamentos maiores do que a maioria dos países que se tornaram verdadeiras províncias. Muitos fenômenos atuais passam por cima do controle territorial do Estado nacional como, por exemplo, comunicações eletrônicas, mudanças climáticas, tráfico de drogas e armas, transferência de capital que entra e sai do país livremente, influências culturais – de modas a músicas – influências civilizatórias como direitos humanos, deslocamento de refugiados e de mão de obra imigrante etc.
A resistência dos nacionalismos atuais tem caráter conservador e se limita à defesa de alguns interesses econômicos, sem questionar a essência dos processos de globalização econômica e financeira. Nada garante que esse nacionalismo tardio tenha vida longa. É prematuro fazer previsões e afirmar que a globalização desmoronou. O capitalismo improdutivo, sob controle do capital financeiro, continua dominando o mercado mundial. O modelo neoliberal é predominante e está sempre gestando a reprodução ampliada da desigualdade que levará, segundo muitos analistas já vislumbraram no horizonte, à próxima crise econômica mundial que vai contaminar fortemente, embora em graus diferenciados, todas as economias nacionais.
A hoje improvável mas não impossível saída da Irlanda do Norte acarretaria a extinção do Reino Unido. E a talvez provável saída da Escócia reduziria a Grã Bretanha à Inglaterra e País de Gales. Assim, a ironia da história é que essa recente decisão de ratificar o Brexit e rejeitar a UE pode levar não ao fim da globalização, mas à dissolução do Reino Unido ou ao enfraquecimento da Grã Bretanha. Afinal, estamos longe do século XIX e do Rule Britannia. No momento, trata-se de apostas. O governo britânico fará provavelmente muitas concessões para evitar esse desenlace que ocorrerá ou não em função dos interesses das partes.