Autoritarismo, democracia e neoliberalismo: dupla encruzilhada

10/04/2020

Para enfrentar a pandemia, os Governos de vários países estão tomando medidas drásticas e autoritárias que se afastam do modelo democrático-liberal do estilo ocidental. O “tipo ideal” do novo modelo é sem dúvida a Hungria.

Na Hungria, uma nova lei concedeu ao Primeiro Ministro Viktor Orban o poder de ignorar o Parlamento e suspender as leis existentes. Ele agora pode governar por decreto. Qualquer pessoa que divulgue informações que possam prejudicar a resposta do governo à epidemia poderá enfrentar até cinco anos de prisão. A legislação dá ampla margem ao Ministério Público para determinar o que é considerado informação distorcida ou falsa. A Hungria virou um modelo de como um país pode ficar mais autoritário. O passo inicial é acabar com a liberdade de expressão e de imprensa. Em seguida, atacar as organizações da sociedade civil. E, após calar quase todas as vozes dissonantes, atacar outros direitos da população e as eleições.

Em alguns lugares, novas leis de emergência reviveram velhos temores da lei marcial. O Congresso filipino aprovou uma legislação que concedeu poderes de emergência ao presidente Rodrigo Duterte que pode mandar prender quem for encontrado na rua. Os legisladores retomaram um projeto de lei anterior que previa autorização para o presidente encampar empresas privadas. O primeiro-ministro de Israel fechou os tribunais e iniciou uma vigilância intrusiva dos cidadãos.

O primeiro-ministro da Tailândia passou a impor toque de recolher e censurar a mídia. Jornalistas foram processados e intimidados por criticar a ação do governo em relação à pandemia. O Chile enviou os militares para praças públicas, antes ocupadas por manifestantes. A declaração chilena de um “estado de catástrofe” e a presença dos militares nas ruas da cidade silenciaram os protestos que abalaram o país por meses. As eleições planejadas foram canceladas. Na Bolívia, o Governo suspendeu a eleição presidencial marcada para o início de maio.

Na Europa ocidental, os países democráticos também estão usando a pandemia para ampliar seu poder. Na Grã-Bretanha, por exemplo, os ministros têm o poder de deter pessoas e fechar fronteiras. Uma lei de coronavírus aprovada rapidamente no Parlamento dá ao governo o poder de deter e isolar pessoas indefinidamente, proibir reuniões públicas, incluindo protestos, e fechar portos e aeroportos, sem muita análise. A legislação concede amplos poderes aos agentes de fronteira e à polícia, o que pode levar a detenções indefinidas e reforçar as políticas contra imigrantes. “Esses são poderes que nunca seriam imagináveis em tempos de paz neste país”, são medidas “draconianas”, “corremos o risco de encontrarmo-nos facilmente em um estado perpétuo de emergência”, afirmou Silkie Carlo, diretora do Big Brother Watch, uma organização de direitos humanos (New York Times, 30/3/2020).

À medida em que a pandemia de coronavírus avança no mundo e os cidadãos angustiados exigem ação, muitos governantes estão invocando poderes e conquistando autoridade praticamente ditatorial, com pouca resistência. Governos e grupos de defesa de direitos concordam que esses tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias. Os Estados precisam de novos poderes para fechar suas fronteiras, impor quarentenas e rastrear pessoas infectadas. Muitas dessas ações são protegidas pelas regras internacionais. Mas alguns governos estão usando a crise da saúde pública como pretexto para assumir novos poderes que não têm muito a ver com a pandemia, com poucas salvaguardas para evitar abuso de poder. Essas leis excepcionais estão sendo implantadas rapidamente em uma ampla gama de sistemas políticos – desde Estados autoritários como a Jordânia, Estados de Exceção como a Hungria ou democracias tradicionais como a Grã-Bretanha. E existem poucos mecanismos previstos para rescindir os poderes assim que a ameaça passar.

As novas leis que ampliam a vigilância do Estado e permitem que os governos prendam indefinidamente as pessoas, violando as liberdades de reunião e expressão, poderiam também ser usadas para regular atividades da vida civil, política e econômica nas próximas décadas. Os governos que inicialmente criticaram a China por confinar milhões de cidadãos passaram a adotar medidas semelhantes. O fechamento dos tribunais de Israel pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu adiou seu próprio processo sob acusações de corrupção. Ao rastrear os movimentos das pessoas pelo controle do celular, previsto apenas em caso de terrorismo, o governo de Israel pode punir aqueles que desafiam ordens de isolamento com até seis meses de prisão.

Grupos de direitos humanos alertam que os governos podem absorver mais poder enquanto seus cidadãos estão em quarentena. Eles temem que as pessoas não reconheçam os direitos que cederam até que seja tarde demais para recuperá-los.

Não está claro o que acontecerá com as leis de emergência quando a crise passar. No passado, leis promulgadas apressadamente, como o Ato Patriótico em seguida aos ataques em 11 de setembro às torres gêmeas em Nova York, sobreviveram às crises que deveriam enfrentar.

Com o tempo, os decretos de emergência incorporam-se aos dispositivos legais e se normalizam, afirmou Douglas Rutzen, presidente do Centro Internacional para Leis sem Fins Lucrativos, em Washington, que acompanha novas leis e decretos durante a pandemia. “É realmente fácil construir poderes de emergência”, disse Rutzen. “e é difícil desconstruí-los” (New York Times, 30/3/2020).

Segundo a cientista política alemã Anna Lührmann, vice-diretora do Instituto de Variações da Democracia, entidade ligada à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, pela primeira vez neste século a maior parte dos países do mundo não é uma democracia, e essa tendência deve aumentar nos próximos anos por causa da pandemia do coronavírus. O levantamento apontou que 92 países atualmente têm regimes autoritários, contra 87 democráticos.

Mesmo as chamadas democracias consolidadas, como os EUA e a maior parte da Europa Ocidental, têm restringido direitos básicos, como a liberdade de ir e vir e o direito de protestar, por causa do coronavírus. Quando a pandemia acabar, esses países poderão possivelmente ficar mais autoritários. A quantidade de protestos por democracia no mundo aumentou no ano passado. Isso vai ser afetado pela pandemia porque o movimento de resistência aos governos autoritários é basicamente de rua, de grandes protestos, o que atualmente não é possível.

Por outro lado, o impacto da pandemia começa a abalar os pilares do neoliberalismo. A ideia de Estado mínimo e de mercado que se autorregula desmoronou com a crise. Desaparecem os discursos que rejeitavam a presença do Estado na economia em nome da “mão invisível do mercado”. O melhor exemplo é o Financial Times, uma das bíblias do neoliberalismo, que publicou em editorial de 3/4/2020, o seguinte:

“Os Governos precisam começar a ver os serviços públicos como um investimento, e não mais como um gasto, e também buscar soluções para tornar o mercado de trabalho menos precário. A redistribuição de riquezas voltará ao centro dos debates e os privilégios dos mais ricos deverão ser questionados. Medidas até recentemente consideradas excêntricas, como a renda básica universal e a taxação de grandes fortunas, também precisam ser consideradas.”

Palavras abolidas dos discursos econômicos oficiais reaparecem na ordem do dia: redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e maior participação do Estado na economia. Ressuscitaram a palavra solidariedade. O vocabulário reprimido da socialdemocracia sobre políticas sociais e controle estatal da economia ressurge na esteira da pandemia. Surge no horizonte o fantasma do capitalismo de Estado.

O fracasso de mercado em lidar com a pandemia do COVID-19 vai fortalecer a necessidade de investimento estatal e, portanto, a autoridade do Estado. Em alguns casos, isso levará ao autoritarismo de ditaduras. Em outros, ao enfraquecimento da democracia liberal que defende mercado livre e Estado mínimo. Se, de um lado, as sociedades podem entrar em colapso no autoritarismo, de outro, temos a possibilidade de aprender as lições dessa pandemia, agravada pelo enorme desprezo do neoliberalismo com a saúde, a educação e o bem estar social.

Assim, após a crise da pandemia, as sociedades se verão confrontadas com duas encruzilhadas. A primeira, a escolha entre neoliberalismo e capitalismo de Estado. Se hoje este último tende a prevalecer, superada a pandemia o neoliberalismo tentará recuperar o espaço e tempo perdidos. A segunda encruzilhada será a escolha entre democracia com garantia de direitos universais e autoritarismo com supressão de diversos direitos individuais, sociais e difusos.

No que diz respeito à primeira encruzilhada, ressaltamos a crítica de Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, em seu novo livro People, Power and Profit. Para Stiglitz, precisamos de um novo contrato social, um novo equilíbrio entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. O mercado não avaliou adequadamente os riscos, não soube lidar com os riscos de uma pandemia, com o risco de mudanças climáticas, todos os riscos sociais. O Estado tem papel central no bem-estar da população, mas o mercado só recorre ao governo quando existe uma crise.

Em relação à segunda encruzilhada, vale recordar a visão de Noam Chomsky. A grande ameaça à sobrevivência da humanidade e da civilização, além da guerra nuclear e do aquecimento global, é o enfraquecimento ou, em alguns casos, o desaparecimento da democracia. Este é o grande problema a ser enfrentado após a crise atual do coronavirus (Chomsky, Carta Maior, 22/3/2020).

Essas duas encruzilhadas possibilitam diversas alternativas, com várias combinações, desde uma socialdemocracia com Estado de bem estar social até uma ditadura neoliberal. Há vários futuros possíveis, em vários países. Os cenários estão abertos, a depender da ação política.