O impeachment e seus críticos

Fortuna iuvat audacem

 

22/04/2020

 

Creio que não há mais dúvidas sobre o plano político do presidente. Bolsonaro adotou a estratégia de destruição da democracia por aproximações sucessivas e manobras de diversificação. Apoia as manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do STF. Ataca a democracia e no dia seguinte, pressionado, recua. Mas sempre avança dois passos, e recua um.

Sua base de apoio, em torno de 25 a 30%, reivindica o AI-5 e a ditadura. Desde Freud e Reich a psicanalistas contemporâneos, muitos já estudaram a submissão irracional das massas a um Messias, a um tirano, como no caso fascista de Hitler e Mussolini. Até aí, nada de novo.

A novidade tupiniquim é que nosso Mussolini tropical não enganou ninguém. Quase foi expulso do Exército por haver proposto botar uma bomba num quartel como reivindicação salarial. Foi feito um acordo e o então tenente foi reformado como capitão, posto que nunca exerceu na ativa.

Em 27 anos de deputado, não fez nada a não ser elogiar a ditadura militar. Pertenceu 20 anos ao partido de Maluf e nunca criticou a corrupção. Afirmou que seu herói é o assassino Coronel Ustra que torturou e matou prisioneiros indefesos, homens e mulheres, inclusive grávidas. Ainda na campanha eleitoral, defendeu a tortura, armas para todos (faz lobby para a indústria de armas). Como deputado, defendeu a guerra civil para matar 30 mil, entre eles o ex-presidente FHC. É a necropolítica em ação.

Sempre discriminou mulher, gay, negro e índio. Como presidente, disse “Vim para destruir, não para construir”. Começou a destruir a educação, pesquisa científica, cultura, meio ambiente, política externa independente, direitos humanos etc. Mesmo assim, contou com apoio de pessoas instruídas, como, por exemplo, a maioria dos médicos que só deixaram de apoiá-lo quando ele negou a importância do coronavirus, chamado de gripezinha, e saiu às ruas, rejeitando as normas de proteção da OMS e apoiando manifestações contra a Constituição e a Democracia.

Apesar de tudo isso, ou talvez por isso mesmo, conta, além do mercado, com o apoio dos evangélicos e dos militares, hoje encastelados no poder às centenas. Sua visível paranoia o leva a demitir qualquer ministro que venha sobressair fazendo bem o seu trabalho. Foi o que ocorreu com o ex-ministro Mandetta, antigo crítico do SUS que se rendeu à necessidade real de combater a pandemia. Para evitar demissão, os outros ministros sumiram na atual crise do COVID-19, com destaque para o desaparecimento de Moro e Guedes. Em Brasília, e não só, técnicos e especialistas são afastados de cargos públicos de coordenação, supervisão e direção em favor de evangélicos e militares.

Enquanto a ditadura não vem, Bolsonaro fala para sua arquibancada e cria o caos, mas isso não impede os generais do Governo de comprarem parlamentares com cargos, na velha prática do toma-lá-dá-cá. Diante desse caos, as direções dos partidos de oposição já firmaram opinião contra o pedido de impeachment, alegando que isso poderia fortalecer o presidente. Praticamente, cruzaram os braços, limitando-se a uma retórica crítica discursiva. A liderança da oposição real está nas mãos do presidente da Câmara e do Senado, ambos do DEM. Na esquerda, algumas heroicas vozes isoladas.

A abertura de um processo de impeachment, que leva meses, seria um fato novo na conjuntura que iria galvanizar apoios desde a esquerda até à direita “civilizada”. Em maio ou junho próximo, provavelmente, teremos no Brasil o pico da pandemia. A votação do impeachment, se o processo fosse aberto hoje, não seria antes disso. E, muito provavelmente, o apoio ao presidente vai cair significativamente com o aumento exponencial do número de infectados e mortos pelo coronavirus.

O simples pedido de impeachment pelos partidos de oposição, com o apoio de importantes organizações representativas da sociedade civil, como a OAB, ABI, Entidades Sindicais, Associações Profissionais etc., desempenharia o papel de balizador referencial da conjuntura que imporia desde já limites à insanidade do Calígula que desgoverna o país.

Mesmo com 30% de apoio à barbárie, os brasileiros que se identificam com os valores da civilização não podem mais esperar um Deus Ex Machina que caia do céu e venha salvar o Brasil desse idiota irresponsável, que executa diariamente seu plano de criar o caos para daí emergir uma tirania a fim de restabelecer a ordem. Esperar que o apoio ao presidente caia para 20 ou 15% em vez de 30% é dar um tratamento aritmético à crise política. A Democracia está ameaçada e pouco se faz para suprimir a ameaça, renovada frequentemente pelos manifestantes fascistas que continuam agindo com o apoio do presidente e seu “gabinete de ódio”.

Mas alguns sinais de reação efetiva começam a surgir. Um mandado de segurança impetrado por dois advogados no STF pede a limitação dos poderes do presidente. Soa isolado, não foi assumido por nenhuma instituição, mas é uma iniciativa louvável que conta com o apoio discreto da OAB. Outro sinal foi a decisão em 21/4 último do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações antidemocráticas do domingo 19/4, com a presença e o apoio do presidente. É verdade que a PGR não incluiu o nome do presidente na lista de políticos a serem investigados, mas a investigação, se for para valer, atacará políticos da base imediata de apoio a Bolsonaro. Além disso, note-se que alguns parlamentares de oposição passaram a assumir posições mais ofensivas, divergindo de suas lideranças partidárias.

O processo de impeachment tem riscos. Mas risco maior corremos todos os democratas se preponderar a inação das lideranças de oposição que permanecem contidas na camisa de força de suas retóricas políticas discursivas. Risco maior corre a democracia com as manifestações em frente ao Congresso, ao STF e até mesmo ao QG do Exército pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal e o retorno da ditadura sem controle legislativo ou judiciário, tudo com a presença e o apoio explícito do presidente, que está ganhando terreno em sua caminhada autoritária.

Diante do quadro atual, é lamentável que os partidos de oposição se limitem a criticar Bolsonaro e a apenas lançar palavras de ordem como Fora Bolsonaro ou, pior ainda, pedir sua renúncia. O Brasil vive hoje um impasse entre a civilização e a barbárie. Uma democracia que não sabe se defender sucumbe à tirania. A letargia da oposição institucional de esquerda paralisa uma reação vigorosa à ameaça fascista que paira sobre nossas cabeças. Falta ousadia. É necessário avançar, ousar e propor medidas pró ativas. Afinal, como diz a famosa frase de Virgílio, a fortuna ajuda os audazes.