A hora e a vez do impeachment: da guerra de posição à guerra de movimento

Se o inimigo avança, a gente recua. Se o inimigo estaciona, a gente fustiga. E se o inimigo recua, a gente avança (Mao Tse Tung)

25/04/2020

O discurso de renúncia do ex-ministro Sergio Moro contém denúncias de diversos crimes de responsabilidade – falsidade ideológica, prevaricação, advocacia administrativa – praticados pelo presidente Bolsonaro que insiste em violar a autonomia da Polícia Federal. Ao afirmar que a questão não é “quem”, mas “por que” – ou seja, o que importa não é quem virá, mas por que demitir o atual Diretor Geral da Polícia Federal – Moro deixou no ar o que todos já sabem: Bolsonaro quer proteger os crimes cometidos por seus filhos e amigos.

Na realidade, o presidente já cometeu muitos crimes, todos denunciados pela imprensa e ignorados pelo Congresso e pelo STF, até há pouco tempo, pelo menos. Mas a denúncia de Moro poderá ser o empurrão que faltava para a abertura do processo de impeachment. Provavelmente, vai sacudir a oposição que recusava pedir o impeachment com medo de “fortalecer” Bolsonaro que ainda conta com seus 30% de apoio (?).

É necessário fazer aqui um rápido recuo para entender porque a oposição de esquerda, em geral, recusava pedir o impeachment do presidente.

A oposição no Brasil tem travado contra o fascismo uma guerra de trincheiras e não uma guerra de movimento. A esquerda brasileira recebeu forte influência da visão de Gramsci que criticou a guerra de movimento e defendeu a guerra de posição. Além disso, as derrotas das organizações que travaram luta armada contra a ditadura militar também contribuíram para esta atitude de adotar a guerra de posição como estratégia. Por detrás, o que ilumina essa discussão é o conceito gramsciano de hegemonia.

O contexto histórico dos conceitos de guerra de posição e hegemonia em Gramsci é a disputa que havia contraposto Lênin (tática da “frente única”) a Trotski (teoria da “revolução permanente”) a respeito dos modos de desenvolver a luta revolucionária depois da revolução russa de outubro de 1917.

“Parece-me que Ilitch compreendeu – afirma Gramsci no Quaderno n. 7 – que havia ocorrido uma mudança da guerra de movimento, vitoriosamente aplicada no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente. No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil e, diante dos abalos do Estado, podia-se divisar imediatamente uma robusta estrutura de sociedade civil”.

Por outro lado, Gramsci afirmou que “uma classe é dominante em dois modos, isto é, dirigente e dominante. É dirigente das classes aliadas e dominante das classes adversárias. Por isso, já antes da chegada ao poder uma classe pode ser dirigente (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas continua a ser dirigente”. Em outra parte (Primo Quaderno), esclareceu que “Pode-se e deve-se exercer uma ‘hegemonia política’ mesmo antes da chegada ao governo e não é necessário contar apenas com o poder e sua força material para exercitar a direção ou hegemonia política”.

Essa concepção tem de ser vista no Brasil de hoje em outra chave. O governo eleito em 2018 já perdeu visivelmente a hegemonia política. Mal consegue ser dirigente de seus pares e, enquanto Governo, é um fracasso retumbante. “Vim para destruir, não para construir”, afirmou o próprio presidente. Na realidade, Bolsonaro e seu bloco de apoio não tem mais hegemonia e vem perdendo sua característica de poder dominante. O Governo já perdeu várias disputas com o Congresso, o Judiciário e os Estados da Federação. E, com o avanço da pandemia, tende a perder parte de sua base inicial de apoio de 30%.

Bolsonaro pratica a guerra de movimento com características de Guerra de Guerrilha. Ataca e recua, mas vinha conquistando posições. A oposição em geral tem se limitado a disparar de dentro de suas trincheiras. Só muito recentemente, em especial após a manifestação antidemocrática do domingo 19/4 que pediu AI-5 e ditadura com o apoio explícito do presidente, é que algumas iniciativas mais ofensivas começaram a ser tomadas.

No atual contexto, é suicídio político praticar a guerra de posição e rejeitar ações na lógica da guerra de movimento. Alguns sinais, porém, mostram que setores da esquerda começaram a se mover. No dia 22/4 último, o PDT entrou com um pedido de impeachment. Outros partidos devem seguir o mesmo caminho. Dois advogados, com o apoio discreto da OAB, impetraram mandado de segurança para limitar os poderes do presidente. E o STF aceitou o pedido de investigação, proposto pela PGR, dos parlamentares e empresários que patrocinaram a manifestação do domingo 19/4, embora o nome do presidente “estranhamente” não estivesse incluído no pedido de investigação. Mais expressivo ainda foi a decisão do Ministro Celso de Mello, decano do STF, que mandou o presidente da Câmara Rodrigo Maia se manifestar sobre pedido de impeachment de Bolsonaro apresentado em março passado. Ressalte-se que Maia já recebeu e engavetou 14 pedidos de impeachment até 24/4 e deve receber mais doravante. E, poucas horas após a demissão de Moro, a PGR pediu ao STF inquérito para investigar acusações de Moro a Bolsonaro.

Bolsonaro avançou demais, não consegue controlar o terreno e dá mostras de que começa a recuar. Seus generais no governo já começaram a oferecer cargos no Congresso em troca de apoio político, com o objetivo de comprar os parlamentares do Centrão. É o velho “toma lá, dá cá”. Os conhecidos corruptos Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto estão cotados para importantes cargos no Governo.

Uma das regras da guerra de guerrilhas é a famosa frase atribuída a Mao Tse Tung: “Se o inimigo avança, a gente recua. Se o inimigo estaciona, a gente fustiga. E se o inimigo recua, a gente avança”. Bolsonaro está na defensiva, a hora é de avançar. Ele trocou o Diretor Geral da Polícia Federal porque sabe que ela chegou perto dos crimes de seus filhos e dos financiadores de sua milícia digital que continua inundando o país com fake news. E talvez saiba também sobre a relação do filho 02 com o assassinato de Marielle.

O ministro Sergio Moro, ao renunciar, já era um fantoche, um serviçal da família mafiosa dos Bolsonaros. Sempre fez vista grossa ao apoio de Bolsonaro às milícias e seus crimes. Ele certamente sabia da máfia da indústria do crime apoiada pela família Bolsonaro: além da milícia digital, consta da agenda criminosa da família e amigos a importação de lixo tóxico, armas, cassinos, combustíveis, remédios etc. Moro saiu atirando e recebeu de volta a acusação de que concordaria com a demissão do seu Diretor Geral da Polícia Federal em troca de sua nomeação para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal.

O governo Bolsonaro já interferiu e obstruiu o trabalho de muitas instituições como, por exemplo, o Ibama, o Icmbio, o Inpe, a Capes, a Coaf, Ancine, Universidades e muitas outras. Com seu perfil autoritário, deve achar natural interferir e violar a autonomia da Polícia Federal, tendo em vista seu desespero em proteger seus filhos e amigos das acusações de crimes. Mas a demissão de Moro vai provavelmente mudar a correlação de forças. E isso ocorre num momento em que outro ministro de peso, o ministro Guedes, foi ignorado pelos militares que propuseram o chamado Plano Pró-Brasil.

Em plena crise da pandemia, o general Braga Netto lança o Plano Pró-Brasil propondo aumento significativo de investimentos, destravamento de obras paradas, geração de empregos “sem toque no teto”, “sem aumento de investimentos”. Ignorou Guedes, jogado para escanteio, e propõe investimentos públicos, investimentos diretos do Estado e, para manter as aparências, diz que não vai tocar no teto dos gastos públicos. A equipe econômica de Guedes não participou, obviamente, da elaboração desse Plano.

Além da demissão de Moro e do encolhimento de Guedes, a conjuntura política tende a se agravar, pois ficará cada vez mais sobredeterminada pela pandemia do coronavirus. O número de infectados e de mortos aumenta exponencialmente. A popularidade de Bolsonaro sofrerá forte abalo.

Esperemos que a oposição passe da guerra de posição para a guerra de movimento. Como disse Guimarães Rosa, “sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”. Chegou o momento de o sapo pular. Chegou a hora e a vez do impeachment. Navegar é preciso.