O mundo pós-pandemia: o retorno das utopias

We are the stuff dreams are made of (Shakespeare, A Tempestade)

12/05/2020

A crise atual provocada pela pandemia nos coloca a questão sobre o mundo que virá quando a COVID-19 for controlada. Certamente haverá opções e situações diferenciadas conforme o lugar, desde Estados autoritários impondo a tradicional visão econômica neoliberal até socialdemocracias ou mesmo capitalismo de Estado priorizando as demandas sociais em vez do lucro privado.

Em visão mais otimista, alguns acham que os Governos vão extrair lições da crise e promover reconversão industrial para produzir bens essenciais à saúde pública, alterando a decisão dos investimentos privados de buscarem exclusivamente a rentabilidade. A economia escaparia da bitola de uma visão puramente quantitativa do crescimento e progresso, medido exclusivamente pelo desmoralizado índice do PIB.

Apesar do importante peso da inteligência científica e sociocultural acumulada nas últimas décadas, a humanidade parecia impotente diante dos mercados financeiros, da crise climática e da crescente desigualdade social. A pandemia atual vem abalar os pilares da economia dirigida à acumulação do capital em detrimento do bem estar social, abrindo janelas de oportunidades que poderão favorecer os interesses da maioria da população, antes desprezados.

Em recente artigo (Carta Maior, 3/5/2020), o teólogo Leonardo Boff afirma que voltar à “normalidade” anterior (business as usual) é prolongar uma situação que poderá significar a nossa própria autodestruição, é esquecer que a conformação atual está abalando os fundamentos ecológicos que sustentam toda a vida no planeta. Afirma ainda que “precisamos de um contrato social mundial, pois somos ainda reféns do ultrapassado soberanismo de cada país. Problemas globais exigem uma solução global, concertada entre todos os países”. Em outras palavras, esclarece que “o tempo da competição passou. Agora é o tempo da cooperação”.

Mais adiante, admite que não sabemos qual tendência predominará. Mas manifesta a esperança de que, “enfim, passaremos de uma sociedade industrialista/consumista para uma sociedade de sustentação de toda a vida com um consumo sóbrio e solidário; de um cultura de acumulação de bens materiais para uma cultura humanístico-espiritual na qual os bens intangíveis como a solidariedade, justiça social, cooperação, laços afetivos e não em último lugar a amorosidade e a logique du coeur estarão em seus fundamentos”.

Já outros, em visão realista mais amarga, não acreditam em mudança e afirmam que a mudança, se houver, será para pior. Na realidade, ninguém pode ainda prever como será o futuro. Tudo vai depender da ação política. Mas é alto o risco de que, pós-Covid19, as desigualdades e os problemas ambientais possam se agravar. Segundo matéria publicada no jornal Le Monde em 2/5/2020, sob o título Le monde d’après, selon Wall Street, o mundo de amanhã será o de ontem mais cartelizado, mais globalizado, mais tecnológico e mais virtual. Já se vê, desde já, que muitos bilionários estão ganhando com a pandemia.

Por essa visão, a recessão econômica pós COVID-19 deverá acentuar as desigualdades e a concentração do poder econômico nos oligopólios. A receita das empresas diminui, o desemprego aumenta, o comércio e o investimento ficam paralisados. A prioridade dos bancos centrais não é ajudar a população, mas apoiar os mercados financeiros. Veremos provavelmente na pós pandemia uma desconexão total entre a esfera financeira e a vida da maioria da população. O mercado de ações já está antecipando o fenômeno na alta tecnologia. Cinco empresas (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) viram seus preços das ações subirem mais de 20% desde a baixa de 23 de março (Le Monde, 4/5/2020).

A tendência é o fortalecimento dos mais fortes, enquanto as Pequenas e Médias Empresas correm o risco de desaparecer. Provavelmente, vai aumentar, de um lado, a concentração de capital nas empresas e, de outro, a desigualdade. A base da pirâmide social vai alargar e a pobreza vai se intensificar.

No período pós COVID, veremos uma disputa entre políticas neoliberais, keynesianas e o capitalismo de Estado, algumas vezes no contexto autoritário do neofascismo. Mas as normas neoliberais – baseadas na defesa do mercado livre, sem regulação, na lógica da “mão invisível do mercado” que alocaria os recursos sempre da melhor forma – exercerão enorme pressão para retomar o espaço eventualmente perdido durante a pandemia. Em muitos lugares, voltaremos a ver a produção predatória do meio ambiente, o aumento da pobreza e o incentivo ao desperdício.

Os especialistas em saúde pública e os cientistas sociais vêm alertando há anos sobre a possibilidade de um surto viral de amplitude global e de grande letalidade, como a pandemia de 1918. Assim como os ambientalistas e os cientistas do clima foram desprezados, esses alertas de saúde pública foram solenemente ignorados pelos países e seus governantes. Como já se disse, o coronavírus e as mudanças climáticas têm a mesma origem.

Um dos maiores desafios após a crise da pandemia é o destino da democracia, que já vinha se enfraquecendo visivelmente na última década em muitos países. Uma importante contribuição para esse debate foi o texto do antropólogo e professor Arjun Appadurai que, inspirado no filósofo espanhol Ortega y Gasset, afirmou que a revolta das novas elites é contra a democracia, mas com uma inversão: ela é feita em nome do povo. Em outras palavras, a ideia moderna de povo foi completamente apartada das ideias de demos e democracia (LEIC, 25/4/2020).

Segundo ele, as novas elites estão se revoltando contra todas as outras elites que desprezam, odeiam e temem: elites liberais, elites midiáticas, elites seculares, elites cosmopolitas, elites econômicas mais antigas, intelectuais, artistas e acadêmicos. Essa revolta é contra todos aqueles que, segundo elas, conquistaram poder ilegitimamente: negros nos EUA, muçulmanos e secularistas na Índia, pessoas de esquerda e LGBT no Brasil, dissidentes, jornalistas e ativistas de ONGs na Rússia, minorias religiosas, culturais e econômicas na Turquia, imigrantes, trabalhadores e sindicalistas no Reino Unido. Essas novas elites odeiam a liberdade, igualdade e fraternidade, exceto para elas mesmos. Detestam freios e contrapesos, que consideram restrições ilegítimas à sua liberdade de agir sem restrições. Também não acreditam na separação dos poderes, exceto quando seus amigos controlam o legislativo e o judiciário.

Com base na visão de Ortega y Gasset, Appadurai afirma que estamos no início de uma época em que a revolta das massas foi capturada, cooptada e deslocada pela revolta das elites. As chamadas massas passaram a acreditar que a revolta das novas elites é a sua revolta e com elas se identificam em vez de apoiarem manifestações populares ou insurrecionais. Assim, as massas em geral apoiam a forte regressão que já vinha ocorrendo desde o início do século XXI: crise da democracia, regimes autoritários, nacionalismo de direita, líderes misóginos, homofóbicos, xenófobos e racistas. A crise do coronavirus vai intensificar essas tendências regressivas e autoritárias ou, ao contrário, vai provocar uma verdadeira explosão da forma neoliberal do capitalismo dominante no mundo?

O momento é propício às utopias que andavam desaparecidas nos últimos tempos, especialmente em países sob governos distópicos, como o Brasil. A humanidade terá de reinventar seu futuro. Afinal, como disse Shakespeare em sua obra A Tempestade: Somos a Matéria de que São Feitos os Sonhos. Ou, em tradução livre, Somos Feitos da Matéria dos Nossos Sonhos.