Depois da pandemia: um novo modo de vida?

03/07/2020

A expansão mundial do capitalismo como sistema dominante mostrou que desmoronaram os regimes, sistemas e ideologias que, durante décadas, sustentaram nossas crenças e valores. As armas teóricas de que se valiam os oprimidos para enfrentar a opressão do capital tornaram-se obsoletas. A esquerda e os movimentos populares mergulharam em perplexidade e muitas vezes limitaram-se a repetir chavões antiquados que passam ao largo de questões essenciais. A crise do mundo capitalista, a decadência da sociedade patriarcal, a destruição ecológica que ameaça o planeta, e a pandemia que se alastrou pelo mundo em 2020, nos desafiam a buscar novos modos de vida e de pensamento.

Já faz algum tempo, os que entendem a democracia como forma de existência social e não apenas como regime político vinham defendendo a democratização do poder político e econômico, o fortalecimento dos órgãos representativos da sociedade civil, a democratização dos meios de comunicação, a criação de instrumentos de contrapoder e atenção especial à ecologia, questão social que se tornou explosiva a partir dos anos 80.

É preciso encontrar um novo modo de viver em sociedades onde as transformações tecnológicas e científicas se processaram à custa de uma degradação social e cultural. As crescentes mecanização, automação e informatização tendem a liberar uma quantidade cada vez maior de tempo de trabalho. Isto não precisa significar, como tem ocorrido, o desemprego, a marginalidade, a solidão, a angústia, a neurose. Pode, ao contrário, abrir caminho à cultura, à criação, à pesquisa, à reinvenção do meio ambiente e ao enriquecimento dos modos de vida e sensibilidade.

A crise da sociedade contemporânea só poderá ser enfrentada com uma revolução política, social, cultural, a partir de uma articulação teórico-política em três planos que constituem as chamadas novas ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a das ideias. Esta revolução deverá reorientar a produção dos bens materiais e simbólicos. Deverá se processar não apenas nas relações de força visíveis em grande escala (reformas de cúpula, planos de governo, partidos, sindicatos), mas também nos domínios moleculares da sensibilidade, inteligência e desejo, ao nível da vida cotidiana.

Os mecanismos de dominação não se manifestam apenas nas estruturas de produção de bens e serviços, mas também nas estruturas de produção de signos e subjetividade, através da mídia, da publicidade etc. Tão decisivas quanto as relações econômicas são as relações da subjetividade que as sustentam. O poder repressivo é introjetado pelos oprimidos e às vezes os partidos e sindicatos de trabalhadores reproduzem os mesmos modelos autoritários que bloqueiam a liberdade de expressão e inovação. Este é um problema-chave que a ecologia social e mental deverá enfrentar.

O capitalismo, hoje, estendeu o seu domínio sobre o conjunto da vida econômica, social e cultural do planeta, incorporando-se à subjetividade e ao inconsciente das pessoas. Por isso, não é mais possível fazer-lhe oposição somente “do exterior”, mediante as práticas sindicais e políticas tradicionais. Devemos enfrentar seu domínio na vida cotidiana individual, nas relações éticas e até nas relações domésticas e de vizinhança. Para isto, em vez de apenas buscar um consenso, é preciso também cultivar o dissenso e a produção singular de existência que a pasteurização capitalista tenta impedir.

O que torna singular a fase atual do neoliberalismo é o apoio das massas que são as mais prejudicadas com a política neoliberal. A necropolítica que hoje prevalece no Brasil com o governo Bolsonaro obteve apoio daqueles que vão morrer. Isso é algo novo. A revolta das massas foi capturada, cooptada e deslocada pela revolta das elites.

O Estado desvia recursos públicos antes destinados à saúde, educação e toda área social para o mercado financeiro dominado pela minoria de 1% da população, e grande parte da massa popular excluída apoia essa política em nome de uma retórica vazia e ilusória de luta contra o “sistema”.

A pandemia de 2020 provocou abalo na ideologia neoliberal que privilegia a rentabilidade econômica em detrimento das necessidades sociais, culturais e ambientais. A prioridade do lucro em relação à saúde e à vida foi questionada em toda a parte. Dependendo da ação política, o neoliberalismo permanecerá em alguns lugares, sofrerá mudanças em outros ou será substituído pela social democracia ou capitalismo de Estado de orientação keynesiana.

Para enfrentar a ação do mercado que tentará impor o retorno do neoliberalismo, é necessário ter uma visão política transversal, abrangendo elementos ambientais, sociais e culturais. A ecologia ambiental apenas antecipou a ecologia generalizada do futuro. Ela impõe a reavaliação da finalidade do trabalho e das atividades humanas em função de critérios diferentes dos de rendimento e lucro. Exige a democratização dos meios de comunicação, a serem reapropriados por grupos autônomos e representativos da sociedade civil: o fim do monopólio da produção de sentidos e valores. Supõe também iniciativas de desobediência civil como a Rádio e a TV livres, por exemplo.

Após a pandemia, abre-se um período de incertezas. Como bem disse o escritor Edgard Morin, a história humana sobre o planeta não é mais teleguiada por Deus, pela Ciência, pela Razão, ou pelas leis da História. Ela nos faz reencontrar o sentido grego da palavra “planeta”: astro errante. A crise do capitalismo provocada pela pandemia do coronavirus abre um leque de oportunidades nas sociedades de risco em que vivemos.

Resta saber se, despojado das verdades impostas pelo sistema dominante, de verdades que não mais devem ser absorvidas ou encontradas, mas sim criadas, o ser humano pode se constituir livremente, libertando-se da “servidão voluntária” e olhando o mundo como obra aberta que pode ser transformado pela ação coletiva.