Estamos à beira da ruptura do nosso precário contrato social entre uma sociedade esgarçada e um Estado Frankestein
“Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/Que é também brasileiro/E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?” Noel Rosa
Entre as múltiplas funções do Estado, existe uma que nunca mereceu uma análise atenta dos observadores políticos. O Estado é também um aparelho de saque. É inegável que os detentores do poder sempre se banquetearam com o dinheiro público.
De vez em quando surgem na imprensa notícias bastante esclarecedoras de como as coisas se passam nos bastidores do poder. Uma delas é a gravação de conversas políticas, realizada em geral com intenções espúrias. Tais gravações são extremamente didáticas e elucidativas dos mecanismos reais de tomada de decisões. Desvio de verbas, contribuição de empresas a campanhas eleitorais e cobrança de comissões na execução de obras públicas são exemplos de nosso cotidiano político.
Se a corrupção é inerente ao poder -e, nesse sentido, é universal- as formas de exercício da corrupção são históricas, variam no tempo e no espaço. Uma democracia tem de institucionalizar instrumentos e mecanismos para reduzi-la ao máximo. Tais instrumentos estarão informados pelo princípio da transparência e da responsabilização. As autoridades devem responder por seus atos. A corrupção prospera na sombra e se alimenta da impunidade.
Periodicamente somos brindados com escândalos que nada devem a um PC Farias. O grampo no BNDES mostrou a promiscuidade entre o público e o privado na privatização de Telebrás, Light e Vale do Rio Doce. Os diretores do BNDES e do Banco Central têm em geral como origem e destino o mercado financeiro, a quem serviram antes e continuarão servindo depois.
O recente escândalo envolvendo o ex-secretário da Presidência Eduardo Jorge, o juiz Nicolau Santos Neto e o ministro Martus Tavares mostrou que, em se tratando de corrupção, o atual governo não é exceção. Aliado a setores conservadores, o governo FHC não conseguiu realizar o mínimo que dele se esperava: a modernização do Estado.
Daí a atitude conservadora e repressiva assumida pelo governo federal. Um bom exemplo é a festa oficial dos 500 anos, quando a polícia parecia realizar cuidadosa reconstituição histórica ao reprimir os índios como os colonizadores sempre o fizeram.
Já se disse que o povo brasileiro se identifica mais com sua geografia do que com sua história. Tem mais orgulho da natureza exuberante do que de uma história onde quase sempre esteve ausente. Se assistiu bestializado à proclamação da República, nem chegou a assistir à independência. Não tivemos aqui as guerras de libertação nacional que marcaram outros países da América, embora mereçam destaque algumas lutas regionais de forte presença popular, vistas na historiografia oficial como rebeliões contra a unidade nacional.
Eis, talvez, a origem de diversos mitos, hoje já dissolvidos, como os da cordialidade brasileira, da nossa tradição pacífica e da superioridade da miscigenação racial que nos destinaria a constituir o berço de uma nova civilização. Esses e alguns outros são temas que atravessam as reflexões de intelectuais que pensaram o Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Darcy Ribeiro.
O curioso é que a idéia de nação sempre foi um conceito caro ao pensamento conservador. Na visão marxista tradicional, nação é um conceito ilusório que oculta a divisão da sociedade em classes. Enquanto a direita falava em nação, a esquerda falava em classe social.
Hoje, registra-se uma inversão: a elite neoliberal dominante fala em globalização e em integração ao mercado mundial -sem o que não há salvação-. Os partidos e movimentos sociais de oposição discutem a questão nacional.
Para muitos a identidade nacional tornou-se uma espécie de miragem. Se nosso povo não vislumbra a identidade brasileira na história e a natureza, degradada pela atividade econômica, não pode mais constituir suporte para o orgulho pátrio, onde buscar a identidade nacional? A chave da questão encontra-se na ausência dos direitos de cidadania.
A esperança no futuro depende não da reiteração de chavões ufanistas e nacionalistas, mas do fortalecimento da sociedade civil e da cidadania democrática no Brasil, para que as esferas do mercado e do Estado possam respeitar os três elementos que constituem o fundamento contemporâneo de uma nação civilizada: democracia -política, social e econômica-, sustentabilidade ecológica e diversidade cultural.
Desse ponto de vista, o Estado brasileiro não é civilizado. Em negócio do Estado, o povo é danação. No país da impunidade, sem transparência e responsabilização das autoridades, a corrupção do andar de cima serve de demonstração ao andar de baixo. Não raro vemos que o pobre não quer apenas sair da pobreza, quer ficar rico.
Se acrescentarmos a esse quadro a explosão da violência urbana, a brutal desigualdade na distribuição de renda, o desemprego, os baixos salários e a ausência de cidadania para grande parte da população, poderíamos concluir que estamos à beira da ruptura do nosso precário contrato social entre sociedade esgarçada e Estado Frankestein.
Somente a participação efetiva da sociedade civil nas decisões governamentais poderá oxigenar o funcionamento do Estado e superar a atual esclerose múltipla das instituições políticas, agravada pela política neoliberal de Estado mínimo, de privatização da coisa pública e de destruição dos direitos sociais.
O caminho para pôr fim à impunidade e promover a democratização do Estado e a regulação do mercado passa necessariamente pela construção de uma nova cidadania política, condição “sine qua non” de constituição de nossa identidade como nação. E tudo indica que se trata de uma tarefa urgente.