Fragmentos de um Discurso Ecológico: Reflexões Críticas de Ecologia Política

Liszt Vieira

Antagonismo homem-natureza e crise ecológica

Desde suas origens, a tradição ocidental colocou a natureza à disposição do homem para que ele a subjugasse. Com raras exceções, é assim que ela aparece no Antigo e no Novo Testamento, no Corão, nos filósofos medievais e nos pensadores racionalistas dos séculos XVII e XVIII.
Tal ocorre tanto nas concepções teocêntricas quanto nas antropocêntricas. É nas sociedades fundadas com a revolução industrial, porém, que o antagonismo homem-natureza se aprofunda e se define. Mas houve intervalos e exceções. A concepção pré-socrática, por exemplo, entendia que os deuses estão presentes em todas as coisas. Para a mitologia grega, os deuses e os homens, como se sabe, têm a mesma origem. No princípio, era o Caos, segundo a cosmogonia de Hesíodo, e do Caos surgem Urano e Gaia, o Céu e a Terra, daí surgem os deuses e os homens(1). O que os diferencia não é a origem, mas sim o destino: os deuses são imortais. Entretanto, os deuses são formados à imagem e à semelhança dos homens, com sentimentos e paixões, qualidades e defeitos humanos. Os deuses gregos não são entidades sobrenaturais, pois são compreendidos como parte integrante da natureza (2).

Assim, não existia, como na tradição judaico-cristã, um Deus incriado que criou o Universo e todas as coisas. Os deuses e os homens coexistem na natureza (3) e isso leva, evidentemente, a uma relação especial ente o homem e a natureza. Na própria terminologia da língua grega, a palavra Physis significa a natureza e o homem com suas ações e pensamentos. Havia portanto uma palavra que englobava o significado natureza-homem enquanto que, nas línguas modernas, homem e natureza são dois termos distintos. Pensando a Physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser e a totalidade do real.

Certamente outros exemplos existem ao longo da história, mas a que prevaleceu na tradição ocidental é uma concepção de natureza submetido ao homem para que este a dominasse. Foi sobretudo com a influência judaico-cristã que a oposição homem-natureza, espírito-matéria, adquiriu maior expressão.

Esta concepção encontrou sua formulação máxima e melhor justificação no filósofo René Descartes. A concepção cartesiana colocava o homem como sujeito e a natureza como objeto: o homem passa a ser o senhor e mestre da natureza. A concepção cartesiana vai influenciar, profundamente nos últimos séculos e que encontra sua expressão máxima na Revolução Industrial. Seguindo a trilha aberta por Descartes, o pensador Francis Bacon, tempos depois, afirma que o homem deve domar a natureza como se domina uma mulher. Na sua concepção, a natureza é feminina, enquanto que a dominação do homem sobre a natureza é o elemento masculino.

O antropocentrismo, o sentido pragmático-utilitarista do pensamento cartesiano e a oposição do sujeito em relação ao objeto, à natureza, vão marcar a modernidade. A natureza, já não mais povoada por deuses, pode ser dessacralizada, pode ser tornada objeto, ser dividida e, tornada natureza-morta, esquartejada.

Este antropocentrismo arraigado rompe qualquer possibilidade de integração homem-natureza, numa visão cósmica como partes do Universo. A organização social patriarcal e os sistemas econômicos predatórios que prevaleceram nos últimos séculos podem, assim, também ser considerados decorrências do racionalismo cartesiano que inaugura a modernidade.

Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja natureza. Nesse sentido, “o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens” (4).

A natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que se opõe à cultura. A cultura é tomada como algo superior que conseguiu controlar e dominar a natureza. Com a agricultura, o homem domestica a natureza e se torna sedentário, considerando primitivos os nômades. Dominar a natureza é dominar a inconstância, o instinto, as pulsões e as paixões. O Estado, a lei e a ordem tornam-se necessários para evitar o primado da natureza, onde reina o caos e a lei da selva. Tal conceito de natureza justifica a existência do Estado e considera primitivos os povos que não têm Estado.

Além disso, a expressão dominar a natureza só tem sentido a partir da premissa de que o homem é não-natureza. Mas se o homem é também natureza, falar em dominar a natureza é falar em dominar o homem também.

O capitalismo leva essa tendência às últimas conseqüências. O iluminismo, no século XVIII, e a Revolução Industrial são a expressão e a base dessas idéias. A ciência e a técnica adquirem, no século XIX, um significado central na vida dos homens.

A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza, cristaliza-se com a Revolução Industrial e torna-se dominante no pensamento ocidental.

No chamado mundo ocidental, ou vemos a natureza como algo hostil, lugar de luta de todos contra todos, da chamada lei da selva, ou vemos a natureza como harmonia e bondade. No primeiro caso, justifica-se o Estado para impor a lei e a ordem e impedir o caos e a volta ao “Estado da Natureza”, à animalidade. No segundo caso, critica-se o homem que destrói a natureza, mantendo-se a dicotomia homem-natureza. A primeira vertente é antropocentrismo, a Segunda é naturalismo. Homem e natureza caem um fora do outro.

Essas teses estão claramente desenvolvidas no livro de Gonçalves (5), que reflete uma ecologia política por vezes de inspiração marxista. Rejeita-se a oposição homem-natureza, apregoa-se a necessidade de pensar sociedade e natureza de uma forma integrada e orgânica, mas aplica-se tratamento diferenciado aos dois termos da equação, mantendo-se, assim, a dicotomia que se quer superar a permanecendo-se prisioneiro da visão dualista que se pretende refutar.

Com efeito, a “luta de todos contra todos” é rejeitada apenas no plano da natureza, mas aceita no plano da sociedade sob a forma de luta de classes. Um diagnóstico para a natureza, um outro para a sociedade; eis a ambigüidade que não foi superada, pois o pensamento dialético só consegue ver o mundo pelo prisma da luta, do conflito e da negação. É incapaz de percebê-lo como criação.

Pensar na natureza (e a sociedade evidentemente) sob o modelo da criação é um outro olhar. Tomemos, por exemplo, Bergson: “A natureza é uma criação que prossegue sem fim e virtude de um movimento inicial. A evolução é uma criação, que se renova sem cessar. A vida transcende a finalidade. É essencialmente um fluxo lançado através da matéria” (6).

A natureza pode ser pensada não como em constante luta, mas como criação. Em Espinoza, é poder de expansão, poder produzir afetos e diferenças, virtualidades, fluxos de ondas. Dissolve-se inteiramente e dicotomia homem-natureza, natural-artificial.

Mesmo as correntes revolucionárias do racionalismo, como o marxismo, mergulham em profunda crise por não conseguirem mais explicar o mundo moderno, sobretudo a crise ecológica que caracteriza o mundo moderno. Em rápidas linhas, isto ocorre porque, em primeiro lugar, o desdobramento e aguçamento das contradições internas de classe nos países capitalistas não provocou, como previsto por Marx, a solução proletária para a humanidade em geral. Em segundo lugar, forçoso é concluir que o socialismo realmente existente também não produziu um ruptura com o horizonte da civilização capitalista, da civilização burguesa. A maquinaria, a tecnologia, as forças produtivas capitalistas, enfim, o fundamento da civilização capitalista continua sendo o horizonte dos países do socialismo real.

Embora ressaltando sempre a vinculação estreita entre foças produtivas e relações de produção, o Marxismo privilegiou as relações de produção, isto é, a luta contra a exploração como a alavanca das transformações. Mas o sujeito histórico previsto para fazer revolução, o proletariado, não produzirá esta ruptura.

A crise ecológica atual, fundada no esgotamento da era do ciclo dos combustíveis fósseis, coloca o centro de gravidade do problema nas forças produtivas, segundo o marxista alemão Rudolf Bahro (7). Como não foi possível até agora romper as relações capitalistas de produção a partir de um impulso político baseado na contradição trabalho assalariado versus capital, chegou-se a um ponto em que a crise ecológica surge a partir das forças produtivas, isto é, do fundamento da nossa civilização, deslocando a luta de classes tradicional a um segundo plano. Como a luta salarial e a luta sindical perderam aquela significação explosiva do século XIX, permanecendo encerradas no interior da sociedade burguesa, Bahro afirma que já não se pode, a partir daí, fundamentar nenhuma perspectiva socialista.

Assim, é neste quadro de ruptura da solidariedade homem-natureza e de falência ideológica, que se coloca a crise ecológica, como um grande desafio para a humanidade. E a Razão Clássica, baseada no repouso e na ordem, no divórcio de natureza e sociedade, é impotente para dar conta deste grande desafio.

Mas a própria ciência herdeira desse racionalismo encarrega-se de apressar sua decadência. A teoria da relatividade e a física quântica no século XX mostram que a ciência não produz mais certezas, mas apenas probabilidades. O ocidente torna-se mais sensível às concepções holísticas que prevalecem nas filosofias orientais.

Abre-se espaço às concepções que repensam o homem e a natureza como partes de um todo composto de forças que interagem em constante movimento e transformação. É preciso repensar a relação homem-natureza em profunda integração para que o atual conceito de natureza possa perder o seu sentido.

Cultural, como todo conceito, a noção de natureza como “algo em si” separado do homem e suas relações sociais, econômicas e políticas, só será esvaziada a partir de transformações no embasamento filosófico que alicerça o pensamento, a linguagem, a cultura. Cultura compreendida como a própria natureza humana.

Trata-se de estruturar uma nova concepção de mundo, natureza e universo, o que exige uma nova Razão, com um novo instrumento cognoscitivo (8). A crise ecológica propõe ao homem um desfio global, inclusive epistemológico. Há que buscar uma Razão Alternativa aos modelos da Razão Clássica e da Razão Dialética. É preciso “repensar o pensar”, produzir novos modos e estilos de vida, em busca de uma nova estética de existência.

Anotações teóricas para um pensamento ecológico crítico

As referências teóricas apresentadas nesta parte objetivam esboçar um quadro conceitual que possa contribuir para esclarecer melhor a noção de Ecologia, fora da visão naturalista com que em geral ela costuma aparecer. Apesar das diferenças nos pontos de vista dos autores citados – entre a metafísica originalíssima de Bergson e o materialismo da filosofia trágica de Clément Rosset, por exemplo – todos têm em comum a superação da Razão clássica e da Razão Dialética e oferecem contribuições inestimáveis na busca de uma Razão Alternativa.

A expulsão da diferença no pensamento e na vida

Enquanto na natureza reina a diversidade e na vida a desordem, o pensamento ocidental baseado na razão clássica da busca incessantemente a unidade e a ordem para explicar o mundo. Tal atitude parece remontar a Platão que inventa a dialética, a arte de questões e respostas, para expulsar da cidade o sofista, para quem só existe o mundo fenomênico, o mundo das contradições e dos enganos, das diferenças e das mutações, o mundo dos processos, dos movimentos, dos devenires.

A razão clássica se encera nos limites do princípio da identidade e da não-contradição e o pensamento diferencial torna-se marginal ao longo dos séculos, ao negar o mundo das essências onde se localiza a verdade, o mundo verdadeiro baseado na estabilidade, na identidade. O sofista admite apenas o mundo fenomênico, o mundo dos processos , das mutações, o mundo da diferença. A estabilidade supõe a identidade enquanto a mutação supõe a diferença. Para a razão clássica, o filósofo é a semelhança ao mundo da identidade, enquanto o sofista é a diferença; o saber só se produz quando fundado na semelhança e na identidade baseada na ordem e no repouso. A razão clássica tem horror ao movimento. Não pode portanto, dar conta da diversidade na natureza e da desordem na vida.

A filosofia cartesiana e a física newtoniana baseada no reducionismo e mecanicismo (comparação do universo a um relógio por exemplo), no homem como senhor da natureza, constituindo esta concepção a base filosófica do progresso científico e tecnológico, este paradigma cartesiano-newtoniano não consegue mais dar conta do mundo (9).

Para pensar o mundo em permanente movimento, temos que pensar a diferença que, ao longo da história, foi sempre aprisionada na alteridade de Platão, na oposição de Aristóteles e na negação de Hegel. Temos que pensar a diferença liberta desses três modelos. Bergson diz que o homem acumula, estoca o seu passado, cada um traz consigo o seu passado acumulado, a consciência humana é uma bola de neve, não pára de crescer. As duas propriedades da consciência são acumulação (que é a memória do passado) e antecipação do futuro. No sujeito humano, passado e futuro estão presentes.

A consciência e o tempo, pois tem o passado que é acumulação e o futuro que é a antecipação, mas a consciência não pára de acumular e antecipar. Ela acumula toda a experiência e cada elemento novo da experiência torna diferente a consciência, que é diferente não de algo exterior, mas é diferente dentro dela mesma, a diferença torna-se diferencial puro; a consciência é a duração no tempo. As duas metades do ser, sensível e inteligível, são agora o tempo e os espaço. O espaço é a matéria, o espírito e a matéria são também duas metades do ser. O espirito é o tempo, a duração, e a matéria é o espaço.

O físico trabalha a matéria e o biológico trabalha o espírito tocando a matéria. A vida é a duração no espaço. O biológico tem como instrumento de trabalho o diferencial puro; o físico se submete ao modelo do espaço e avalia a identidade e não do diferencial, como faz o biólogo que trabalha com a vida.

O que explica a vida não são os caracteres constitutivos das coisas, mas sim as tendências que explicam o vivo. O espírito, a consciência, explica-se assim pela acumulação e antecipação. O espírito é sempre novo, portanto ele é criador, ele é também tempo, uma linha do passado para o futuro. O espírito é o devir, é a passagem, é o processo, não pode estar em repouso. O espaço é o presente eterno, o espírito é a memória daquilo que ele não é, passado e futuro. A matéria é a memória do que ela é, presente.

Os caracteres são secundários, a teoria dos caracteres se reduz à matéria, enquanto a vida é movimento, a vida é tendência. A presença do espírito é a modificação da lei da natureza. A ontologia de Bergson abandona o modelo da matéria e pensa o modelo de tempo que explica a vida. Pensa as tendências, rejeitando a concepção espacial de natureza.

Os gregos trabalhavam com uma idéia – “A alma do mundo”- que penetrava todo o universo. O macrocosmos ou um pedaço do universo micro, têm os mesmos princípios pois, são as mesmas coisas. Igualmente, no ser vivo, cada parte é vida, assim como o todo.
O espírito e a matéria, o tempo e o espaço, o pensamento e o real constituem uma totalidade, não são coisas separadas. A vida é um processo, é movimento. A vida é como o espírito, é movimento, é diversidade, é diferença. E é o espírito que explica a vida.
É preciso abandonar o campo das ideologias para entender relações de forças e de poder que explicam a pessoa como resultado de relações de forças. É preciso pensar como as cosas se constituem ao invés de pensar apenas os caracteres constituídos dos objetos. É preciso rejeitar a tecnologia de produção da subjetividade que prevalece no ocidente e abrir espaço à conquista do direito à diferença e da metamorfose.
A razão passa a ser o diferencial puro e não mais a identidade, o pensamento é ele próprio em movimento e impõe novas categorias. O pensamento é diferencial, o pensamento criador opõe-se, assim, à tecnologia de produção de subjetividade que impõe obediência. O pensamento diferencial cria os homens livres e a liberdade é o fundamento do sujeito humano. A liberdade não como essência pura, pois a liberdade é e será sempre a busca da liberdade, isto é, um exercício permanente de confronto com as forças da dominação.

Lógica do sagrado. Caos e ordem. Acaso-necessidade.
Diferença-repetição

Os sistemas teóricos da modernidade, para além das divergências, pretendem todos fazer com que a sociedade humana escape à lógica do sagrado. O sagrado é o sistema teórico e prático pelo qual uma sociedade situa a fonte do seu sentido fora de si mesma. É o modelo das heteronomias e das divisões de sociedade.

Emancipar a ordem social da lógica do sagrado é objetivar o ideal de comunidade imediata e transparente. Foi a tentativa das grandes utopias da modernidade: as filosofias do contrato social, a utopia economista de sociedade de mercado e a utopia socialista.

Mas todas fracassaram. Os que queriam superar o sagrado acabaram sacralizando a Natureza mecanicista do século XVIII, Razão Universal e a Ciência da História no século XIX e, face ao Progresso Tecnológico e ao Produtivismo Capitalista, a Natureza ecologicizada neste final do século XX.

A luta ecológica enfrenta, freqüentemente, o argumento do caráter sagrado de tal ou qual princípio, quando questiona a irracionalidade absurda dos problemas de transporte ou saúde, por exemplo. Mas ela também só sabe invocar as leis da natureza para defender suas posições. É a lei natural do crescimento exponencial contra a lei natural do equilíbrio ecológico.

Ora, a lei natural não é mais concebida como determinação. O princípio de causalidade foi abalado. As mesmas causas podem produzir efeitos diferentes e causas diferentes podem produzir o mesmo efeito. A teoria subatômica da Física Quântica eliminou ou, pelo menos, relativizou bastante a noção de certeza científica, noção fundamental ou Racionalismo Moderno.

O que reconhecemos como Ordem, tanto no social quanto na natureza, contém uma dose irredutível de indeterminado. A Biologia reconheceu o papel criador da contingência e do acaso na emergência e no desenvolvimento dos seres vivos.

Para compreender a autonomia de um ser vivo, é preciso conceder ao acaso um poder criador da organização. A criação se origina na desordem e no caos. O aleatório está presente na organização; a indeterminação está no âmago do determinado, a desordem no âmago do que define a ordem. A auto-organização (ou autonomia) resulta de colaboração paradoxal da ordem e do caos (10).

A espontaneidade é eco-organizadora. A virtude suprema da eco-organização não é a estabilidade, é a aptidão para construir estabilidades novas; não é o regresso ao equilíbrio, é a aptidão da reorganização para reorganizar-se a si mesma de modo novo sob o efeito de novas reorganizações (11).

Diversidade, vitalidade, resistência, abertura e complexidade estão interligadas. A complexidade espontânea dos ecossistemas evoluídos precisa de uma história e de uma experiência onde acaso e necessidade, incertezas e determinações, produzem os equilíbrios dinâmicos (12).
A lei da repetição rege os corpos da natureza. Uma vez formados os corpos , há uma lei que se repete. Mas essa necessidade dos mundos constituídos é originária do acaso. O mundo se repete, pose-se inventar outros e gerar outros campos de repetição, outros mundos. O modelo é Repetição-Diferença. A natureza tem necessidades quando aparece a Repetição. Mas na origem está o Acaso.

Num mesmo instante de tempo, existem o caos e a ordem cujo encontro, produzido pelo acaso, gera outros mundos. Há múltiplos mundos onde a natureza se repete. Mas não mais a repetição platônica do Mesmo, mas a repetição do Outro, a repetição da Diferença. Ao contrário da cosmogonia de Hesíodo, onde o Caos original gerou a Ordem, ambos, Caos e Ordem, podem coexistir a cada momento e, por obra do acaso, gerar novos fluxos e sistemas. Assim como o Um não suprime o Múltiplo, a necessidade não suprime o acaso, é a sua própria combinação. O acaso torna-se assim uma afirmação.

Foucault: a filosofia da relação

Para o historiador Paul Veyne, Foucault, revoluciona a História (13). Na visão foucaultiana, as coisas não passam de objetivações de práticas determinadas, cujas determinações devem ser expostas à luz, já que a consciência por si só não as concebe.

Cada prática, tal como o conjunto da história a faz ser, engendra o objetivo que lhe corresponde do mesmo modo como a pereira faz pêras e a macieira maçãs; não há objetos naturais, não há coisas. As coisas, os objetos, não são senão os correlatos das práticas.

Tudo gira em torno desse paradoxo, que é a tese central de Foucault: o que é feito o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer a prática, se explica a partir do que é feito.

Isso não quer dizer, por exemplo, que nosso erro seja acreditar no Estado quando só existiram Estados: nosso erro é crer no Estado ou nos Estados, em vez de estudar as práticas que projetam objetivações que tomamos pelo Estado o por variedades do Estado.

Substituamos, pois, essa filosofia do objeto tomado como fim ou como coisa por uma filosofia da relação e encaremos o problema pelo meio, pela prática ou pelo discurso. Essa prática atualiza as virtualidades que estão prefigurados no molde.

Atualização e causalidade são duas coisas bem diferentes e é por isso que não há ideologia nem crenças. Não há coisas, só existem práticas, toda ciência é provisória. A filosofia de Foucault não é uma Filosofia de “discurso”, mas uma filosofia de relação.

Foucault diz não existe racionalidade. Ele não faz marxismo nem freudismo: não dualista, não pretende opor realidade à aparência, como faz o racionalismo. Foucault, ao contrário, afastou os objetos naturais em seu horizonte de prometedora racionalidade, a fim de devolver à realidade a única, a nossa, sua originalidade irracional, “rara”, inquietante, histórica.

Desnudar, assim, a realidade para dissecá-la e explicá-la é uma coisa; acreditar descobrir por detrás dela uma Segunda realidade que a telecomanda e a explica, é uma outra coisa, bem mais ingênua.

É preciso negar a realidade trans-histórica dos objetivos naturais e, contudo, deixar suficiente realidade objetiva a esses objetos para que continuem sendo algo a ser explicado e não fantasmas subjetivos a serem simplesmente descritos.

Foucault resolveu a dificuldade mediante uma filosofia nietzchiana do primado da relação : as coisas só existem por relação e a determinação dessa relação é sua própria explicação.

Espinoza: uma outra visão de natureza (14)

Uma só substância para todos os atributos. Uma só natureza para todos os corpos, uma só natureza para todos os indivíduos. Uma natureza que é ela mesma um indivíduo, variando de infinidades de maneiras.

Não é mais um afirmação de uma substância única, é o estabelecimento de um plano de imanência onde estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos.

Como Espinoza define um corpo, um corpo qualquer?

São as relações de repouso e movimento, de velocidades e lentidões entre partículas que definem um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e ser afetado que também define um corpo na sua individualidade.

A primeira proposição é cinética e por ela vemos que um corpo não se define por uma forma ou funções. A forma, global ou específica, as funções orgânicas, dependerão das relações de velocidade e lentidão. O importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre retardamento e aceleração de partículas.

A Segunda proposição é dinâmica e diz respeito ao poder de afetar e ser afetado. Não se define um corpo (ou uma alma) por sua forma, nem seus órgãos ou funções; tampouco o definimos como uma substância ou um sujeito. Os corpos e as almas, para Espinoza, não são substâncias nem sujeitos, mas modos.

Um modo é uma relação complexa de velocidade e lentidão no corpo, mas também no pensamento, e é um poder de afetar e ser afetado, do corpo ou do pensamento. Definimos um animal, ou um homem, não por sua forma, seus órgãos e suas funções, e não mais como um sujeito: passemos a defini-lo pelos afetos de que ele é capaz.

Assim, por exemplo, existem maiores diferenças entre um cavalo de tração (ou de trabalho) e um cavalo de corrida do que entre um boi e um cavalo de trabalho, que têm afetos comuns.

Por outro lado, o plano de imanência, o plano de natureza que distribui os afetos, não separa absolutamente as coisas que seriam ditas naturais e coisas que seriam ditas artificiais. O artifício faz parte da Natureza. Toda coisa, sobre o plano imanente da natureza, se define por agenciamentos de movimentos e afetos, sejam eles naturais ou artificiais.

A Ética de Espinoza nada tem a ver com uma Moral: ele a concebe como uma composição de velocidades e lentidões, de poderes de afetar e ser afetado sobre um plano de imanência ou consistência.

Em nenhum momento, portanto, um animal, uma coisa, está separado de suas relações com o mundo: o interior é somente um exterior selecionado, o exterior, um interior projetado.

Em resumo, para Espinoza, nós não definiremos alguma coisa nem por sua forma, nem por seus órgãos e suas funções, nem como substância ou sujeito. Um corpo (um animal, um corpo sonoro, uma idéia, um corpo lingüístico ou social, não importa o quê) pode ser definido, nos termos de Gilles Deleuze, por longitude e latitude.

Longitude de um corpo é o conjunto das relações de velocidade e de lentidão, de repouso e de movimento entre partículas que o compõem, isto é, entre elementos não formados. Latitude é o conjunto dos afetos que preenche um corpo a cada momento, quer dizer, os estados intensivos de uma força anônima (força de existir, poder de ser imanência ou de consistência sempre variável, e que não cessa de ser remanejado, composto, recomposto pelos indivíduos e coletividades.

Existem duas concepções muito diferentes de palavra plano, da idéia de plano, e é comum elas aparecerem misturadas. Há um plano teológico que é toda organização que vem do alto, que se relaciona a uma transcendência, mesmo escondida: intenção no espírito de um deus, evolução nas supostas profundezas da natureza ou ainda organização de poder de uma sociedade. Um tal plano, estrutural o genético, se aplica às formas e seus desenvolvimentos, aos sujeitos e suas formações. É um plano de organização e de desenvolvimento. Em conseqüência, será sempre um plano de transcendência que dirige as foras e os sujeitos, e que permanece escondido, que nunca é dado, que deve ser adivinhado, inferido ao partir do que ele dá. Ele dispõe sempre de uma dimensão suplementar ao que é dado.

Ao contrário, um plano de imanência não tem dimensão suplementar: o processo de composição deve ser tomado por ele mesmo, através do que ele dá. É plano de composição, não um plano de organização nem de desenvolvimento. Talvez as cores indiquem o primeiro plano, enquanto a música, os silêncios e os sons pertençam a este outro. Aqui não existe mais a forma, mas somente relações de velocidades entre partículas ínfimas de uma matéria não formada. Não existe mais sujeito, mas apenas estados afetivos individuadores da força anônima. O plano de imanência só retém movimentos e repousos, cargas dinâmicas afetivas: o plano será percebido com isto que ele nos faz perceber, imediatamente e sucessivamente. Nós não vivemos, não pensamos, não escrevemos da mesma maneira sobre um e outro plano.

O plano de imanência ou de consistência não é, portanto, um plano no sentido de projeto ou programa. Estar sobre este plano implica não só um modo de pensar, mas uma maneira de viver, um modo de vida. Trata-se de um plano que é plenamente plano de imanência e que, entretanto deve ser construído. Trata-se n ao apenas de uma nova forma de pensar, mas também uma nova forma de viver.

O acaso contra a natureza (15)

Para a filosofia do acaso, ou pensamento trágico, não há de uma parte o homem e de outra forças exteriores ao homem, às quais ele também seria exterior. As forças “exteriores”, “cósmicas”, “naturais”, estão também em nós. Um homem sozinho contra tudo não seria necessariamente trágico. Ele se torna trágico quando o “inimigo” está no interior dele mesmo.

O acaso é um conceito não-ideológico que se distingue das noções de sorte ou fortuna (fors), casualidade (casu) ou contingência (contingentia), à medida que estas supõe, para ser, a existência de alguma coisa que não seja acaso.

Como ponto de partida, o pensamento trágico define a natureza de forma vaga e negativa: a natureza designa, em todos os casos, a constituição de um ser cuja existência não resulta, nem dos efeitos da vontade humana, nem dos efeitos do acaso. Além disso, ele supera os três primeiros tipos de acaso fors, casu e contingentia que não apenas respeitam o conceito de natureza, mas dele dependem para serem pensados. Só o quarto tipo – acaso – ignora a idéia de natureza.

Distinguem-se agora, portanto, apenas dois conceitos de acaso: o acaso “factual” ou constituído supõe a existência de uma natureza que lhe serve de ponto de apoio: é o conjunto de exceções casuais, infirmando e confirmando o conjunto de regras da natureza.

Assim, o que se chama impropriamente “idéia” de natureza pertence, pois, não ao domínio das idéias, mas ao domínio do desejo. Perda, perdição, não-ser, desnaturalização, estado de morte são variações de um mesmo tema fundamental, que se chama acaso ou trágico, e que designa o caráter impensável – em última instância – do que existe, quaisquer que sejam a estrutura e organização.

De modo geral, o pensamento do acaso não admite, para caracterizadas o conjunto dos modos de existência, senão o estatuto da exceção. O que revela o acaso é um “estado de morte”, um estado de indiferença em relação a tudo o que existe: nada pode modificar uma natureza, nem muito menos constituí-la.

Mas é preciso distinguir duas formas de indiferença, duas maneiras contraditórias de ser indiferente: uma consiste em esperar o acaso com certeza, já que tudo é acaso; a outra, em nada esperar, se tudo é acaso. Indiferença da festa oposta à indiferença do tédio. Tudo depende daquilo que se queira ver aparecer: se é o Ser, o mundo é monótono, pois o ser não sobrevêm nunca. Se é o acaso, o mundo é uma festa, o acaso sobrevindo sempre.

O mundo da festa é um mundo de exceção. O do tédio é um mundo monótono. Ao trágico do não-ser opõe-se, assim, à tristeza do ser.

Alguns princípios da ecologia política

Podermos agora passar a examinar as questões colocadas tradicionalmente pela ecologia política. A ecologia vista não como ciência ambiental visando a uma nova técnica de administrar a relação homem-natureza. Mas a ecologia apoiando criticamente o esforço de se promover a “reconciliação da razão com a natureza” (16). A ecologia como parte de uma visão cósmica do Universo, de uma nova teoria da liberdade, de uma nova estética de existência.

A pedra de toque das doutrinas de desenvolvimento econômico é a noção de progresso. O progresso é uma noção que justifica qualquer degradação ambiental, uma vez que ele promoveria um desenvolvimento social, econômico, e uma melhoria na qualidade de vida. Mas a noção de progresso e crescimento e uma noção meramente quantitativa. Os benefícios trazidos pelo chamado “Progresso” foram concentrados numa parcela minoritária da população, sobretudo nos países subdesenvolvidos, onde a maioria da população não chegou a receber os benefícios do chamado Progresso. Assim, o aumento quantitativo da produção material não traduziu uma melhoria na qualidade de vida de população (17).

Mesmo nos países desenvolvidos, a sociedade industrial avançada, quer capitalista, quer socialista, chegava a um impasse no que diz respeito à questão ambiental. Por maiores que fossem as divergências no plano ideológico entre os sistemas capitalista e socialista, eles apresentavam semelhanças. Semelhanças essas que foram relegadas a plano secundário pelos conflitos ideológicos do século XX.
Na verdade, a relação predatória com o meio ambiente prevalece nos dois sistemas, que obedecem a uma lógica produtivista, quantitativista, baseada na exploração dos recursos naturais não renováveis e dos combustíveis fósseis, que, como se sabe, tendem a esgotar-se no prazo de 100 a 200 anos.

Assim, a ecologia política surge como uma crítica à sociedade industrial avançada, à noção quantitativa e produtivista de progresso e crescimento econômico e à centralização de decisões no sistema produtivo e na estrutura de poder político. A Democracia supõe, necessariamente, a descentralização do poder econômico e político, que tanto quanto possível devem estar ao alcance e serem acessíveis às populações locais, através das propostas de autogestão (18).

Tecnologias alternativas centralizadoras como a nuclear, por exemplo, são rejeitadas, por serem desnecessárias, caras e perigosas. Rejeita-se o gigantismo de obras faraônicas em favor de obras de pequeno e médio porte que possam incorporar a mão-de-obra local. Os custos ecológicos devem ser incorporados nos custos dos investimentos econômicos.

É preciso submeter todo e qualquer desenvolvimento a uma crítica ecológica, não apenas econômica. A qualificação ecológica do desenvolvimento supõe uma visão de toda a aparelhagem econômica, técnica e científica que permita à sociedade a sua sobrevivência, de tal forma que o meio ambiente não seja visto como objeto inerte, mas sim como patrimônio coletivo fundamental à sobrevivência das condições de vida democráticas. A uma tecnologia que leva ao autoritarismo, ao centralismo e à dependência, opõe-se uma outra que sirva à democracia, à descentralização e à utilização mais racional dos recursos produtivos.

A ecologia política abraça a teoria do ecodesenvolvimento, patrocinada principalmente pelo economista Ingacy Sachs. O ecodesenvolvimento desloca o problema do dilema quantitativo – crescer ou não – para o exame de qualidade do crescimento. Desta forma, é possível estabelecer politicamente princípios de crescimento econômico controlados, que se estabeleçam em estruturas técnicas e produtivas que minimizem a destruição ambiental e maximizem a igualdade social, a saúde e o bem-estar.

As soluções do tipo “cosmético”, ou seja, a produção de “aparelhos antipoluição, substâncias químicas descontaminantes “, ou coisas do gênero, são rejeitados porque, além de se limitarem a combater os efeitos externos do problema, seguem a mesma lógica do sistema dominante. Não há o menor sentido em inaugurar uma nova linha de produção para combater os efeitos do próprio sistema de produção, ou melhor, do próprio modelo de produção.

Por outro lado, também se rejeitam as propostas de crescimento “zero”. Além de inaceitáveis do ponto de vista econômico, elas mantêm a atual desigualdade social do sistema de divisão internacional do trabalho. Os países estacionariam no seu nível de crescimento e permaneceriam no seu nível de miséria e estagnação.

O dilema do desenvolvimento não está em crescer ou não crescer, mas sim em como crescer, o que implica uma mudança qualitativa das estruturas produtivas, sociais e culturais da sociedade. O ecodesenvolvimento propõe um sistema de contabilidade de custos ecológicos e sociais, que deve ser incluído nos projetos econômicos.

Outro princípio do desenvolvimento é o reaproveitamento do lixo e da desconcentração urbana e industrial. As grandes cidades tronam-se metrópoles e megalópoles ingovernáveis, não há solução dentro delas. A solução está fora delas: na Reforma Agrária para fixar o homem do campo à terra e na criação de pólos de desenvolvimento industrial nas pequenas e médias cidades.

A partir destes princípios gerais, a ecologia política desenvolve-se em todos os países para enfrentar as ameaças que pesam sobre a humanidade neste fim de século: a guerra nuclear, a energia atômica acumulada, o efeito estufa e o aquecimento da camada de ozônio na atmosfera, além da possibilidade de acidentes em usinas nucleares (19).

Assim, os grandes temas de contestação ecológica são a questão da sobrevivência da humanidade na escala planetária, a crítica das ferramentas e do modo de produção industrial e a crítica do Estado e de heterogenia política.

A utopia ecológica: descentralizar o poder político e econômico

Gigantismo das estruturas econômicas, burocracias complexas, concentrações de poder. Esse “trio” parece ser o principal sustentáculo da reprodução do modelo das sociedades urbano-industriais. Diante dele, o cidadão comum se percebe impotente, alienado e perplexo, impossibilitado de controlar o que produz ou decidir o que deseja consumir. A política também se torna uma espécie de consumo passivo e eventual, parra época de eleições, através do voto a um do partidos aceito institucionalmente. Na verdade, o poder está longe e intocável.
Grupos ecologistas, pacifistas, alternativos, alguns partidos, em todo o mundo, já entenderam que a palavra chave que pode começar a desmontar esse sistema imbricado é descentralização do poder. O que quer dizer autonomia e autogestão no lugar da produção em grande escala: o menor e o pequeno no lugar do grandioso e faraônico; qualidade de vida no lugar de quantidade de lucros; fortalecimento do local e regional em vez da centralização estatal.

Há fortes indícios de que, ainda que se queira levar em conta fatores como produtividade e oferecimento de emprego, a opção descentralizadora, na economia, é bem mais racional. Uma constelação de pequenas fábricas autogeridas é comprovadamente mais produtiva do que uma única grande fábrica automatizada. Pequenas lavouras associadas, muito mais eficazes do que uma gigantesca monocultura.
No caso do Brasil, estudos já demonstraram que construção de muitas mini-hidrelétricas, no lugar de Itaipus gigantes ou centrais como angra, não apenas seria uma forma de obtenção de energia menos agressiva ao ecossistema, como seria econômica e tecnicamente mais produtiva (20).

O mesmo acontece no campo, onde as pequenas propriedades (menos de 50 ha), que ocupam apenas 12% da área agrícola do Brasil, produzem cerca de 50% dos alimentos. E isso, claro, com muito menos apoio oficial que as grandes propriedades, as monoculturas predatórias e as enormes empresas agrícolas, que, em muitos casos, produzem exclusivamente visando à exportação, enquanto aqui há fome. A monocultura de soja, por exemplo, ocupou 88% de áreas anteriormente usadas para o cultivo de alimentos básicos (21).

A descentralização econômica, fortalecendo a economia local e regional, mas sobretudo voltada para atender às necessidades básicas da população, de forma a tornar cada região mais autônoma e auto-suficiente, não só e mais harmônica com a natureza, mas é a principal forma de permitir que os trabalhadores comecem a controlar o produto do seu trabalho.

Democracia e descentralização. A descentralização do poder político, portanto, é o motor de uma sociedade reconstituída. Precisamente o oposto do que ocorre hoje em nosso país, é preciso tornar o Estado transparente e permeável à participação popular. Permitir que os cidadãos tenham controle dos recursos públicos e decidam sobre sua aplicação. É preciso desobstruir os canais permanentes de participação, fortalecendo as entidades representativas da sociedade civil. É urgente fortalecer a cidadania e os direitos individuais e coletivos, diminuindo os superpoderes do Estado. Associações de moradores, sindicatos e centrais sindicais, grupos autônomos devem ser voz ativa nas decisões do governo.

Mecanismos democráticos e desconcentradores do poder estatal, como Plebiscitos, Direito de Vizinhança, Direito de Petição, Participação de Entidades Civis nas Comissões Técnicas das Câmaras de Vereadores, Assembléias Legislativas e Congresso Nacional são alguns exemplos que indicam ser possível democratizar, desburocratizar e decentralizar o poder. Trata-se, na verdade, de trazer o poder e a política para a vida cotidiana e não deixá-los em algum longínquo ponto inatingível para o cidadão comum.

O paradigma ecológico é mais do que um Estado reconstituído. É uma sociedade democrática, libertária, socialista e harmônica nas suas relações com a natureza e nas dos homens entre si.

Uma sociedade onde tecnologias intrinsecamente centralizadoras e autoritárias, como as tecnologias nuclear, bélica e de escalas não humanas sejam banidas e em que “tecnologias doces” sejam usadas sobretudo para libertar o trabalhador, reduzindo radicalmente a jornada de trabalho, para os tempos de lazer, prazer, trabalhos alternativos, cultura e participação política (22).

Uma sociedade que possa auto-instituir-se de forma permanente e contínua, onde os trabalhadores controlem o produto no processo produtivo e os cidadãos controlem as instituições no processo político.
Utopia? Pode ser, mas o fato é que cada dia somos mais os que descobrimos que é preciso trabalhar com um pé no sonho e um pé na realidade. Sonhar com os pés no chão. É preciso e é possível, reinventando a vida, reinventar o futuro (23).
Liszt Vieira – Presidente do Instituto de Ecologia e Desenvolvimento (Rio de Janeiro); Fundador do Partido Verde e Ex-Deputado Estadual PT-RJ.

(1) As divindades originárias seriam o Caos, o Tártaro, a Terra (que pariu o Céu) e Eros.
(2) BORNHEIM, G, In: Os filósofos pré-socráticos. São Paulo, Ed. Cultrix, 1985.
(3) “Tudo está cheio de deuses” ( Tales de Mileto).
(4) GONÇALVES, C. W. Para o que segue, cf.: Os (Des) Caminhos do Meio Ambiente. São Paulo, Es. Contexto, 1989
(5) GONÇALVES, C. W. loc. Cit.
(6) BERGSON, Henri. Evolução Criadora, 156ª ed. , Paris, Ed. PUF, 1986
(7) As teses de Rusolf Bahro encontram-se no livro “A Alternativa”. Bahro parece ainda muito influenciado por um certo “fetichismo das forças produtivas” característico do Marxismo. Como se sabe, Marx admirava o Maquinismo e Lênin tentou introduzir o Taylorismo na União Soviética.
(8) Assim como o Homem evoluiu do instinto para a inteligência, evoluirá, segundo Bergson, da inteligência para intuição. A inteligência artificial dos computadores de um futuro talvez próximo, verdadeiras máquinas pensantes superiores à capacidade da inteligência humana, é um indicador da possibilidade dessa adaptação evolutiva na direção apontada por Bergson.
(9) Cf.: FRITJOF, Capra O Ponto de Rotação. São Paulo, Ed. Cultrix, s.d.
(10) Cf.: DUPUY, Jean Pierre. Introdução à Crítica da Ecologia Política. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1980
(11) MORIN, Edgard. O Método II: A vida da vida. Portugal, Publicações Europa-América, s.d.
(12) Iden, ibidem.
(13) Cf. par o que segue: VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a História. In: Como se escreve a História. Brasília, Cadernos da UnB, s.d.
(14) Verificar, para o que segue: DELEUZE, Gilles. Espinoza e os Signos. Portugal, Ed. Rés, s.d. (Coleção Substância). Philosophie et Pratique. Paris, editions Minult, 1980.
(15) Para o que segue, conferir: ROSSET, Clément. Lógica do Pior. Rio de Janeiro, Ed. Espaço e Tempo, 1989. Lánti-nature. 2ª ed., Paris, Es. PUF, 1986.
(16) A “Reconciliação da Razão com a Natureza” é uma das propostas fundamentais da Escola de Frankfurt, sobretudo de Horkheimer e Adorno.
(17) “O argumento segundo o qual o crescimento reduz as desigualdades é uma escroqueria intelectual sem fundamento.” ATALI, Jacques e GUILLAUME, Marc. L’Anti-Economique. Paris, Ed. PUF 1974.
(18) A opção ecológica é claramente incompatível com a racionalidade capitalista e com o socialismo autoritário. Mas não é incompatível com a opção socialista libertária ou autogestionária. Verificar: GORZ, André e BOSQUET, Michel. Ecologia et Politique. Paris, Editions du Sevil, 1978.
(19) Conferir: LOVELOCK, James. A Terra é um ser vivo. A hipótese Gaia. Paris, Le Rocher, 1986. LUTZENBERGER, José A. Gaia. Anuário Guia Corpo a Corpo. São Paulo, Ed. Símbolo, s.d.
(20) A própria Eletrobrás está sendo obrigada a se render perante esta tese ecologista. Verifique: PEQUENA usina, saída para crise energética. O Globo. Rio de Janeiro, 24 jul. 1989, p. 15.
(21) Todos os dados foram extraídos do livro: PÁDUA, José A. e LAGO, Antônio. O que é Ecologia. São Paulo, Ed. Brasiliense, s.d.
(22) O “melhor” pode ser obtido com menos. Pode-se viver melhor trabalhando e consumindo menos. Conferir: GORZ, André e BOSQUET, Michel. Loc.cit.
(23) A utopia não cessa de expandir-se. Conferir: ROBIN, Jacques. Inventar um Futura par ao Planeta – A opção Ecológica. Paris, Le Monde Diplomatique, jul. 1989.
Revista São Paulo em Perspectiva, 3 (4):5-12, out./dez. 1989