Liszt Vieira | Escritor

Glauber Rocha e a Linha Vermelha

“No Brasil o que a lei dá o parágrafo tira.” Esta frase genial de Glauber Rocha cai como uma luva a respeito dos projeto da Linha Vermelha.

A comissão Estadual do Controle Ambiental (Ceca), presidida pelo presidente da Feema, Adir Bem Kaus, dispensou a elaboração do estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e do respectivo relatório de impacto ambiental (Rima) para a construção da obra viária que ficou conhecida como Linha Vermelha. O fundamento legal da decisão foi o parágrafo 2º do Art. 1º da Lei estadual n.º 1.356’88, quer permite o licenciamento de projetos de ampliação sem prévia elaboração do EIA/Rima.

É curioso que, numa lei toda ela voltada para garantir a exigência do Rima, o legislador haja incluído um parágrafo absolutamente inconstitucional que, pelo menos na interpretação da Ceca, neutraliza todos os outros parágrafos e artigos da lei. Pouco importam aqui as intenções originais de seu autor, pois uma lei, depois de aprovada, torna-se pública e pertence à sociedade. Estaríamos, assim, diante de uma aplicação literal da frase lapidar de Glauber Rocha.

Ocorre que, antes da lei estadual, o Rima é uma exigência constitucional. O inciso IV do parágrafo 1º do Art. 225 da Constituição Federal exige estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. E a Resolução n.º 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina, em seu Artigo 2º, que dependerá de elaboração de EIA/Rima o licenciamento de atividades modificadoras de meio ambiente, entre as quais acha-se enumerada estrada de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento, o que é o caso da Linha Vermelha.

Assim, a legislação federal exige Rima para as obras de maior porte que enumera, sejam ou não ampliação. Dispensar o Rima para obras de ampliação levaria a absurdos inadmissíveis. Suponhamos que um empresário mais afoito ou um político tresloucado proponha aterrar a Baía de Guanabara para construir em seu lugar um complexo industrial. O Sr. Presidente da Feema decidiria então dispensar o Rima, pois se trataria, evidentemente, de ampliação do atual Aterro do Flamengo. Ou, se for mais ousado, dispensaria o Rima do projeto de demolição do Ministério do Exército para a ampliação da atual estação ferroviária da Central do Brasil, ou ainda, para ser mais ecológico, para a ampliação do jardim da Praça da República.

Qualquer obra, sobretudo as viárias pode ser considerada ampliação de outras. Pouco importa, para a lei federal, se uma obra é ou não ampliação. A Linha Vermelha, construída sem EIA/Rima, é, do ponto de vista jurídico, ilegal. Por esta razão, entre outras, o Instituto de Ecologia e Desenvolvimento (IED) ingressou com uma ação civil Pública para suspender as obras da Linha Vermelha até a realização do EIA/Rima, como exige a legislação federal.

A lei exige o Rima porque somente um estudo prévio pode determinar o impacto ambiental e social das obras de grande porte e, se for o caso, definir alternativas mais econômicas e mais úteis socialmente. Afinal, trata-se de obra realizada com dinheiro público. O Rima pode até mesmo recomendar a não execução da obra; por isso, a lei exige o estudo prévio. E, ao que se saiba, a lei vale também para os governantes, não só para os governados.

É curioso observar que o atual presidente da Feema assinou manifesto, h[a alguns anos, como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), exigindo Rima para a construção da Linha Vermelha. Da mesma forma, o secretário municipal de Obras, Sr. Luís Paulo Correia da Rocha, que também integra a Comissão da Linha Vermelha, defendeu tese de mestrado na Coppe – UFRJ criticando o projeto da Linha Vermelha.
Mudar de opinião após chegar ao poder não chega a ser muita novidade. E os dois técnicos citados revelaram-se bons discípulos de seu chefe, que, em virada surpreendente, celebrou um acordo político com o presidente Collor, que passou a dar tratamento privilegiado ao Rio de Janeiro. A ética política está fora de moda: a hora é do mais puro pragmatismo.

Que a Linha Vermelha é ilegal, todo mundo sabe. Mas a formidável demonstração de força da aliança espetacular Collor-Brizola, abençoada pela mídia, inibiu manifestações críticas de diversos setores, inclusive da maioria dos membros dos Poderes Judiciário e Legislativo.

Se, do ponto de vista jurídico, a obra é ilegal, do ponto de vista social a Linha Vermelha é elitista: 140 milhões de dólares vão beneficiar cerca de 125.000 pessoas no trajeto Galeão-Zona Sul, via São Cristóvão, enquanto milhões continuarão engarrafando em ônibus e automóveis na Avenida Brasil. Em brilhante artigo publicado no JB de 07/05/91, o Professor Licínio da Silva Portugal, do Programa de Engenharia de Transportes da Coppe – UFRJ, fulminou, com rara competência, os argumentos a favor da Linha Vermelha. No mesmo sentido, o Prof. Rômulo Dante Orrico Filho, Coordenador do citado Programa da Coppe, elaborou parecer técnico, anexado aos autos da ação civil pública impetrada pelo IED contra o Estado do Rio de Janeiro, demonstrando que a Linha Vermelha não vai descongestionar a Avenida Brasil e apontando alternativas mais eficazes mais baratas.

A decisão de construir uma via expressa perpetua a prioridade concedida à sua Excelência, o automóvel individual. É surpreendente que um governo popular reproduza essa prioridade em detrimento do transporte público coletivo de massas. O transporte por ônibus, metrô, trem e barcas poderia receber significativa melhoria e ampliação com o dinheiro destinado à Linha Vermelha.

O Poder Público decidiu pela obra alegando a realização no Rio da Conferência da ONU – ECO 92, quando alternativas melhores existem. Tais alternativas certamente viriam à tona na audiência pública, exigida em lei, que obriga a discutirem o Rima com representantes da sociedade civil: técnicos, professores, parlamentares, lideranças comunitárias, etc.

O órgão técnico do Governo Estadual dispensou o Rima em nome de um parágrafo segundo que, se não existisse, seria inventado, pois o lobo nunca precisou de argumentos convincentes par comer o cordeiro. Um poderoso lobby se formou desencadeando louvores apologéticos e apoios entusiásticos.

Restam bolsões de resistência na opinião pública que sabem que, no Brasil, a legislação ambiental é sempre aplaudida e quase nunca cumprida, pois os parágrafos estão sempre prontos a tirar muito do pouco que a lei dá.

Presidente do Instituto de Ecologia e Desenvolvimento.
JB – Opinião – 14/06/91