Liszt Vieira | Escritor

Nietzche e a Reversão do Platonismo

Por Liszt Vieira
I – O PLATONISMO

A metafísica é marcada, segundo Nietzche, pela presença de uma certa questão que surge no seio do platonismo. Existem diálogos platônicos onde vamos encontrar um personagem essencial da obra platônica que sabemos tratar-se de Sócrates. Os diálogos platônicos se desenvolvem sempre em torno de uma determinada questão que Sócrates propõe a seus interlocutores. Esta questão referente a qualquer tema, seja a beleza, a coragem, ou a justiça, é sempre posta em termos de: “o que é isto?”, “o que é aquilo?”. O que é a justiça? O que é a beleza? O que é a coragem?.

Quando Sócrates pergunta “o que é a beleza?”, o seu interlocutor, Hípias, não hesita em responder que a beleza são corpos belos, obras belas. Mas Sócrates rejeita os exemplos de coisas belas, de causas eventuais, e exige a definição da beleza enquanto tal.

Se Sócrates recusa de Hípias, como resposta, causas eventuais ou exemplos tirados do mundo sensível em que vivemos, obviamente a pergunta socrática remete a uma outra ordem. Sócrates não quer saber o que são as coisas na medida em que elas possuem a qualidade de beleza, mas o que vem a ser a beleza em si mesma. Assim, a pergunta Socrática nos afasta das percepções sensíveis e nos coloca no domínio das essências.

Para Nietzche, a metafísica se constroi a partir dessa maneira de levantar a questão. Toda a vez que perguntamos sobre a significação ou sobre a essência de alguma coisa, nós estamos no domínio metafísico. A resposta de Hípias estava no campo do mundo sensível, isto é, Hípias falava sobre um determinado aspecto da beleza. Para ele, a beleza não podia ser apreendida para além daquilo que fosse belo. Para Hípias, como sofista, o que é belo o é sempre para alguém. As coisas que se apresentam como coisas belas implicam sempre a presença de alguém que aprecie tais coisas e este alguém é que vai dar às coisas a qualidade de beleza ou feiura.

Sócrates, contrário a Hípias, sai em busca das essências. Ele acha que para além daquilo que aparece existe uma essência. Ele rejeita a resposta de Hipias porque ele julga tal resposta extraida puramente do domínio sensorial, ou melhor, do domínio da “doxa”, da opinião, do senso comum. Nesse sentido, para o platonismo, o ser se encontra para além do mundo sensível.

Quando Sócrates pergunta “o que é a beleza?” e quando ele recusa como resposta exemplos extraidos do mundo sensível, ele quer saber o que é a verdadeira beleza, o que é a beleza em si, isto é, a essência da beleza. No platonismo, ela não pode ser buscada no mundo sensível porque neste nós somente nos encontramos com coisas que são belas e que para serem belas participam de alguma maneira da essência da beleza. Platão, por consequência, é levado a fundar o mundo verdade que se encontra para além do mundo sensível. É o mundo das idéias.

Para Nietzche, está aí a origem histórica de um grande erro. Essa questão da verdade, tal como aparece na metafísica, é uma invenção platônica. Platão funda o mundo da verdade no domínio das essências puras, inalcançável aos sentidos.

E esse mundo verdade serve de medida para o mundo sensível que nós habitamos. Nietzche vai dizer que a tarefa da sua filosofia consiste em reverter o platonismo, isto é, descobrir no platonismo as suas próprias motivações, descobrir a vontade que move Platão, descobrir o que ele queria quando constrói o seu universo filosófico, quando ele funda a metafísica enquanto tal. Nesse sentido, Nietzche empreende uma crítica ao platonismo, buscando dentro dele o elemento diferencial que move toda a obra platônica. Nessa crítica, já se pode apreender o método Nitzcheano que é a genealogia. Nietzche quer chegar à vontade de Platão.

O platonismo hoje em dia parece uma fábula. Mas se há algo do platonismo que permanece na modernidade é a vontade de Platão, uma vontade de selecionar, de buscar a verdade, a pureza, a essência. A vontade de Platão atravessa as idades. Nietzche, ao se deparar com Platão, não está apenas fazendo um inventário histórico ou uma história da filosofia. O que faz na realidade é uma crítica dos valores que se instituíram no Ocidente graças à contribuição do platonismo. Por exemplo, a história da filosofia é marcada pela busca da verdade, das essências, das naturezas como se, por detrás daquilo que aparecesse houvesse uma verdadeira natureza. Ela é marcada pela questão “o que é isso?”, questão essa que nos remete sempre para o domínio das significações.

Aristóteles faz uma crítica a Platão por ter introduzido o procedimento mítico na filosofia. Aristóteles quer partir para um domínio puramente racional, mas as premissas platônicas não são questionadas porque ele se insere no mesmo projeto de Platão. Ele não critica o fato de Platão ter querido a verdade pois ele também a quer. Parece que o cerne do platonismo permanece ao longo do desenvolvimento da metafísica ainda que determinadas questões sejam postas como anacrônicas, ultrapassadas.

II – A REVERSÃO DO PLATONISMO

Reverter o platonismo significa descobrir no seio da obra platônica as motivações de Platão. O que queria Platão quando construiu tal obra? Quais eram os interesses do platonismo ao criar o mundo das idéias? Quais os interesses que dão vida à obra platônica? Em três textos, “o Sofista”; “Fedro”; “o Político”, Platão apresenta o método da divisão. A proposta desse método é buscar a resposta para a questão: “o que é isso?”. Se eu pergunto “o que é a beleza?”, se quero o ser da beleza, estou em busca de uma definição e nessa medida eu rejeito todas as respostas que possam vir do domínio da opinião ou da doxa, por serem respostas eventuais. Portanto, a busca de uma definição implica obviamente um método. O método da divisão consiste em atingir a definição de uma determinada coisa ou de uma determinada natureza.

No “Político” o método da divisão implica, como ponto de partida um gênero, eleito arbitrariamente, que subssume diferenças as mais diversas. Platão parte por exemplo do gênero “artes” e vai verificar que existem artes de aquisição e artes de produção. Ele repartiu o gênero arte em duas repartições. Em seguida abandona uma dessas repartições e segue pela outra: por exemplo, ele segue a arte de produção e aí também vai encontrar dois sub-gêneros. Em seguida, sempre abandonando uma das tendências dessa divisão, ele vai selecionando e produzindo novas divisões até chegar ao elemento que ele busca. Esse elemento estaria na base da divisão estabelecida no sentido vertical. No “Político” ele chega a uma definição, aplicando esse método: “o politico é o pastor dos homens”. Ao chegar à definição parece que a tarefa do platonismo terminou. Sócrates enfim alcança uma definição e pode responder às objeções sofísticas. Mas isto não acontece porque quando ele chega à definição de que o político é o pastor dos homens, começam a aparecer milhares de pretendentes dentro do campo social. O médico, por exemplo, vai dizer que o pastor dos homens é ele e vai oferecer milhares de razões para justificar esta reivindicação. Um comerciante, idem; um marceneiro idem; um homem de guerras, idem. Na medida em que Sócrates dá essa definição parece que ele permite mil justificativas por parte dos pretendentes os mais diversos. Então a definição socrática carece de um fundamento, permanece como uma definição puramente nominal. Enquanto definição puramente nominal ela ainda permanece a serviço de diversos pretendentes que reivindicam tal definição para si.

Platão, nesse exato momento, interrompe o método de divisão e narra o mito do pastor arcaico: Chronos. Ele vai dizer que, nos primórdios da humanidade, nos primórdios da natureza, nas origens, existia governando o tempo, um deus que se chamava Chronos. E como esse deus exercia o governo da natureza , as coisas não se degradavam, não marchavam para a degradação. As coisas nasciam da terra, eram engendradas da terra e em lugar de evoluirem e se degradarem, involuiam. As pessoas não envelheciam, rejuvenesciam. As pessoas não nasciam, involuiam. Ou seja, o tempo tinha uma ordem inversa da que tem hoje. O tempo tinha uma ordem completamente contrária à ordem que Platão encontra no momento em que ele elabora a sua filosofia. As coisas seguiam um caminho inverso ao da degradação. Mas houve um crime provocado pelo homem que fez com que Chronos, tomado de pavor e repulsa, abandonasse o controle da natureza e quando isso acontece a natureza muda de sentido. Esse crime é o crime de Atreu e Triestes, dois irmãos onde um acusava o outro de ter usurpado um poder que não era seu. Atreu havia usurpado o poder que era de Triestes.

Atreu, um belo dia, movido pelo, ódio, simula estar arrependido e convida Triestes para banquetear em sua casa. Enquanto conversavam, Triestes deixa os 2 filhos brincando no páteo. Após o almoço Atreu diz a Triestes que ele acabara de devorar seus dois filhos nesse almoço. Diante disso, Chronos, revoltado, abandona o controle do tempo, o controle da natureza. A natureza então muda de sentido e caminha agora no sentido da degradação. Quando Platão nos narra este mito o que ele quer é dar a definição “pastor dos homens” porque o mito é, na realidade, uma narrativa das origens, uma narrativa das fundações.

O mito então vai fornecer ao método da divisão, aquilo que lhe falta, a saber, a ideia ou a essência que vem legitimar a definição encontrada. Quem é o pastor dos homens? Diz Platão: é o deus arcaico. O mito vem como complemento da dialética. Ele vem fornecer ao procedimento dialético, o fundamento que lhe falta.

No momento em que Platão nos diz que o pastor dos homens é o deus arcaico, ele põe todos os pretendentes em silêncio. A partir de Chronos é que se vai então fazer uma seleção dos pretendentes ao cargo de político. Chronos então parece para Platão como sendo a idéia que vai fornecer à vontade platônica o modelo para que ele possa operar a sua seleção. Aqueles que mais se aproximam deste modelo serão considerados cópias que trazem consigo uma semelhança interna ao modelo paradigmático. E aqueles que mais se afastam desse modelo serão considerados cópias de 2a espécie , de 3a espécie, de 4a espécie, cópias enfim desqualificadas. Mas, diz Platão, existe alguma coisa, neste mundo sensivel, que me inquieta porque existe alguma coisa neste mundo sensível que não se submete à ação do modelo, que se furta: é o simulacro. O simulacro é igual à potência do falso.
O problema do Nietzche está todo aqui. O mundo como vontade para Nietzche é o mundo do simulacro. Se Nietzche empreende uma crítica dos valores supra-terrenos, se o que ele quer nos ensinar é antes o sentido da terra, ele quer instalar um mundo como vontade mas vontade do falso, um mundo como a mais alta potência do falso, o mundo do simulacro.

III – A GENEALOGIA NIETZCHEANA:
VONTADE DE POTÊNCIA E ETERNO RETORNO

A genealogia substitue a pergunta “o que é? ” pela pergunta “quem quer?”. É essa a questão da genealogia: quem quer a verdade? A genealogia quer buscar esse elemento diferencial de onde são criados todos os valores e a verdade para Nietzche é um valor. Isso supõe o avaliador que é sempre alguém que aprecia e cria valores. Por detrás de qualquer valor dado como fato, há sempre uma força, há sempre uma vontade que quer um valor.

A pergunta “quem quer isso?” nos remete de imediato para esse elemento diferencial de onde emanam todos os valores e que se chama Vontade de potência. A pergunta “quem quer a verdade?” nos remete para aquele que aprecia e cria esses valores verdadeiros. A questão de Nietzche é uma crítica da própria verdade. Se ele faz da verdade um valor, isso supõe alguém ou alguma coisa que o crie. Na realidade, o que Nietzche faz é desnaturalizar a verdade, isto é, desnaturalizar as essências, acabar com a dualidade que Platão instaura entre essência e aparência. Porque a essência de uma determinada coisa vai ser dada em função da força que se apodera daquela coisa. A essência de alguma coisa tem uma história. Não podemos imaginar que aquela coisa possua uma natureza idêntica a si mesma que permanece ao longo de metamorfoses acidentais.

A própria coisa, na medida em que existe, já é expressão de apropriações diversas. Logo a essência de alguma coisa implica sempre sentido e valor de uma força que se apodera daquela coisa. E cada coisa vai ter uma multiplicidade de essências, dependendo das forças que se apoderam dela ao longo do processo histórico. Isto supõe uma ontologia. É uma ontologia da vontade, uma ontologia do eterno retorno. O problema genealógico quer dar conta do elemento diferencial das forças em relação. Nietzche não é um crítico das idéias. Ele faz uma crítica das idéias na medida em que ele atribue todas as idéias e todas as coisas existentes a valores.. Mas o que ele quer descobrir por detrás dos valores é o elemento diferencial donde emanam todos os valores possíveis. Por detrás do valor há sempre o avaliador, por detrás de alguma coisa há sempre algo que quer aquela coisa.

O elemento diferencial de onde emanam todos os valores, Nietzche o chama de Vontade de potência, que não significa de modo algum vontade de poder, mas sim de poder da vontade.

O mundo para Nietzche não é o mundo da indiferença. Pelo contrário, é o mundo da diferença pura porque a vontade quer afirmar a sua própria diferença. É o mundo sem identidade, é o mundo sem verdade, é o mundo sem essências. É o mundo de diferenças múltiplas e plurais. Nietzche tem muita afinidade com os pré-socráticos, principalmente com Heráclito. Ele quer pensar o mundo do devir sem a suposição de que haja um ser para além do devir. A equação que Nietzche monta para resolver esse problema de ser do devir é introduzir o ser no próprio devir. A questão de Nietzche é: só há um ser e o ser é o ser daquilo que devem. O que ele quer é saber qual é o ser daquilo que devem.

Isto leva à teoria do eterno retorno. Não há um ser para além do que devem. Não há um ser para aquém do que devem. Não há origem nem fim. Só há um devir num movimento permanente de tornar a vir. É isso que Nietzche caracteriza como o ser do devir enquanto tal.

Só há um ser e este ser se diz daquilo que devem, nós podemos dizer que o ser do que devem se diz tão somente de tudo aquilo que difere. Porque num mundo em devir, nada é idêntico a si mesmo, tudo difere. O ser se diz num único sentido e só se diz daquilo que difere. Uma única voz para tudo o que difere sem que haja possibilidade de sobrevivência de uma idêntidade, de uma essência eterna, imutável. De uma vez por todas fica abolido o mundo transcendente que servia de modelo para o mundo imanente que nós habitamos.

O simulacro não se submete à ação do modelo. Ele é uma imagem dessemelhante, é uma imagem falsa, é uma máscara. O que Nietzche quer é fazer uma filosofia das máscaras, uma filosofia do simulacro sem que haja por detrás de uma máscara uma verdadeira natureza. Por detrás de uma máscara, diz Nietzche, encontramos sempre uma outra máscara e ainda outra, e ainda outra. Nós somos seres múltiplos, seres de mil faces. Ele dizia: “eu sou todos os nomes da história”. Há uma afinidade de Nietzche com os sofistas.

IV – PLATÃO CONTRA OS SOFISTAS

Platão quer definir o sofista e para isto lhe aplica o método da divisão. E agora alguma coisa começa a dar errado no seio do platonismo porque o sofista permite a Platão que ele chegue a sete definições. Estranhamente o sofista cabe em todas as sete. Todas elas se aplicam ao sofista.

Platão fica perplexo pergunta se sofista teria um modelo. Se ele tivesse um modelo, ele não poderia ser regido pelo princípio de identidade, não poderia ser o modelo do mesmo porque alguma coisa para ter um modelo implica que seja idêntico a si mesmo. A própria definição já implica isso. Se eu estou dando a definição de alguma coisa, eu estou dando a essência daquela coisa e eu estou supondo que essa essência tem de ser regida pelo princípio da identidade. Do contrário, aquela coisa seria contraditória e se destruiria enquanto tal.

Nenhuma coisa pode ser isto e não isto ao mesmo tempo. Se eu digo, o politico é o pastor dos homens, essa é a essência do verdadeiro político. Essa essência só pode ser encontrada, fundamentada em termos supra-sensíveis porque no mundo das aparências nós estamos o tempo inteiro mudando.

O sofista seria um ser em metamorfose, isto é, não poderia ter um modelo. Platão tenta defini-lo mas não consegue porque ele cabe em todas as definições. Platão chega a dizer que ele parece água. Quando a gente pensa que o apanhou ele escorre por entre os dedos. Ele seria o simulacro.
Isto leva Platão a aproximar o sofista do “não ser”. O sofista estaria mais próximo da matéria louca do que do ser enquanto tal. O sofista é um homem, um homem da cidade mas é uma imagem sem semelhança porque ele não teria semelhança interna com um modelo ou com uma idéia da qual ele participasse. Ele seria antes uma idéia falsa, dessemelhante, isto é, um simulacro.

V – A VONTADE DE PLATÃO

Voltemos à questão genealógica de Nietzche: qual é a vontade platônica? O que quer Platão ao elaborar sua filosofia? Diz Nietzche: o que Platão quer é promover uma seleção no mundo sensível. Para isto ele se serve de um modelo e em função deste modelo ele estabelece uma hierarquia nos pretendentes, colocando abaixo da hierarquia, abaixo das cópias desqualificadas, essas imagens fantasmas, esses simulacros, essas imagens que se furtam à ação do modelo. Ele pretende com isso baní-las, afastá-las da cidade, recalcá-las, impedir que o simulacro se manifeste. Em última análise, a vontade platônica é uma vontade de seleção que implica o recalcamento de um elemento que se encontra na cidade.

Em resumo, há uma primeira divisão no platonismo que é a separação de essência e aparência. A essência é remetida ao mundo das idéias. A aparência fica no mundo sensível. Mas esse mundo sensível participa, de alguma maneira, do mundo do ser, seja uma participação em 1o, 2o, 3o grau, etc.

Isso leva a uma segunda divisão no próprio mundo da aparência: divisão entre cópias e simulacros. As cópias são aquilo que, de alguma maneira, participam do mundo do ser. Os simulacros são os que escapam à ação desse modelo, dessa essência. O que Platão quer, quando elabora o mundo da verdade, é promover no mundo sensível uma seleção. A metafísica, para Nietzche, implica numa moral porque o que Platão recusa, nessa seleção, é o domínio das diferenças. Funda o modelo da identidade, recusa o dominio das diferenças e quer que as diferenças sejam banidas da polis. A diferença passa a ser o grande mal da filosofia porque o projeto platônico vinga. A diferença, para ser pensada, tem de ser submetida ao modelo da identidade.

VI – DIFERENÇA PURA E JOGO DE FORÇAS

Gilles Deleuze, em “Diferença e Repetição” pretende liberar o conceito de diferença do domínio da representação. Ele quer pensar a diferença em si mesma. É um livro de inspiração Nietzcheana, inspirada nos dois conceitos de Nietzche: vontade de potência e eterno retorno. Dentro do modelo da representação a diferença só pode ser pensada, mediada pela identidade de um conceito. Só pensamos a diferença em termos de alteridade, oposição ou contradição. Mas a diferença pura, pensar algo que difere de si mesmo, isso o pensamento clássico, representativo, não dá conta. Eis porque a diferença é o grande mal.

A moral tem na filosofia um grande aliado que é Platão ou melhor, Sócrates. O problema de Nietzche é de certa forma com a moral, com a filosofia que emerge pois esta, para emergir, toma emprestada a máscara do sacerdote. Ela traz consigo uma simulação para poder passar na sua época e essa simulação é emprestada do sacerdote, da religião. O filósofo, o religioso, o moralista, se confundem na origem da filosofia.

O mundo do simulacro é o mundo da vontade de potência. A vontade de Platão também é real. Ainda que seja vontade de ficção, vontade de verdade, é vontade de potência também. A questão de Nietzche é saber como a vontade de potência, num determinado momento histórico, pode estar a serviço de um modo de vida reativo, que nega a vida. Por que no platonismo pensamento e vida estão separados? O que move Platão, para Nietzche, é nitidamente uma vontade de negar a vida. Como isso pode ocorrer se a vontade na sua origem quer a afirmação da sua própria diferença? Como pôde haver esse desvio, esse triunfo das forças reativas, como pôde aparecer fenômenos do tipo ressentimento e má consciência? Tudo isso implica uma genealogia histórica que, segundo Nietzche, teria origem no judaismo.

Foucault faz uma revisita a Nietzche e vai aprofundar, apreender o método genealógico aplicado à história. “Vigiar e Punir” é um exemplo disso.

Como pôde aparecer o escravo? Essa é uma questão que parece ter sido negligenciada por Hegel. “A genealogia da moral” começa com essas interrogações, começa aparentemente de uma forma ingênua: O que é o bem? O que é a moral? A partir daí ele vai traçando tipos. A questão de Nietzche é chegar a esses tipos. Ele quer fazer uma tipologia e uma topologia das forças que caracterizam esses tipos: o senhor, o escravo, que são expressões de forças diversas que estão dominando.

Os escravos podem dominar os senhores. As forças ativas ou nobres são as capazes de transformação, e as forças reativas ou vis são as conservadoras. Nesse sentido, Nietzche diz que é preciso proteger o forte contra o fraco.

Não se trata de um ponto de vista dialético porque Nietzche não é dialético. A dialética tem que ser antes explicada por esse jogo de forças: o domínio de forças sobre outras, impondo sobre elas sentido e valor para poder dominá-las. A história é uma sucessão de forças em relação, que Nietzche chama vontade de poder. Essa relação de forças não é somente mecânica. Há um querer interno que faz com que uma força se relacione com outra força. Esse querer é a vontade.

A força traz consigo dois poderes: poder de afetar e poder de ser afetado. O mundo para Nietzche é um jogo de forças em relação sem que haja coisas, fenômenos. Coisas e fenômenos, já são expressões de forças as mais diversas. Trata-se de um mundo em perfeito desequilíbrio, um jogo de forças permanente, um jogo de forças em devir.

As noções de eterno retorno, apresentada em “Zaratustra”, de vontade de potência, enfim a noção de genealogia como origem dos valores é que explicariam os conceitos de sentido e valor e permitiram, segundo Deleuze, ver o mundo como diferença e repetição.

Isso significa que na origem não há um suposto ser idêntico a si mesmo. O que há na origem é a diferença. O que há na origem, para Nietzche, é um desequilíbrio de forças, umas tentando dominar outras. É a força dominante impondo valores, sentidos. Na origem não há um ser. O que há na origem são forças diversas. Não há coisas. Tudo implica numa interpretação. Não há fenômeno. Não há aparência. O objeto enquanto tal já é expressão de múltiplas forças que se apoderam dele.

Nietzche supõe avaliação e interpretação como instrumentos críticos dos valores estabelecidos. Ele quer fazer uma crítica radical de todos os valores. Uma interpretação em cima de valores é uma interpretação que supõe valores mas desce ao momento diferencial desses valores. Não é bem uma interpretação. É antes uma criação: buscar elemento diferencial que cria os valores enquanto tais.

Interpretar a avaliar implicam encontrar por detrás dos valores dados, modos de existência: nobre, vil, alto, baixo. São modos de apreciar os fenômenos, perspectivas, tipos, modos de existência. É vil toda força que é incapaz de se transformar. É nobre toda força capaz de metamorfose. Isso define psicologicamente 2 tipos de existência: um tipo de existência reativa a serviço da conservação e um tipo de vida ativa a serviço da expansão. São dois tipos e não 2 valores Esses 2 tipos vão criar valores. Nietzche, com a genealogia explicará isso por intermédio de uma física, a física das forças.

VII – CONCLUSÃO

Eis que o Foucault foi buscar em Nietzche, um filósofo marginal, estigmatizado pela história da Filosofia oficial que sempre legitimou valores reativos. A filosofia clássica, de matriz platonico-aristotélica, tem horror ao movimento pois se baseia no repouso, no princípio da identidade e da não contradição, reduzindo a diferença à alteridade e oposição.

Mesmo a dialética hegeliano-marxista aprisiona a diferença no conceito de contradição e se incapacita, assim, para compreender os domínios da filosofia, arte e ciência onde prevalece o pensamento puro, liberto dos entraves orgânicos que subordinaram até hoje a condição humana.

Rejeitar o modelo de representação, de obediência, mergulhar no caos e no delírio que está no fundo do nosso espírito, tornar visível o que é invisível, buscar as afecções sensitivas puras, buscar as “potências não orgânicas da vida” (Worringer), eis para Deleuze, a função da arte, da ciência, do pensamento.

Este fim de século parece anunciar as condições para o advento do superhomem de Nietzche, o além-do-homem, a libertação do homem: a Inteligência Artificial com as máquinas de 3a geração (computadores) que libertam o cerébro para então poder criar, a eletrônica, os novos processos relacionais pelos códigos genéticos, e o “a gramatical” que nos liberta do modelo do significante. Tudo isso poderá apontar para a libertação do Homem se acompanhado de uma prática contra o Poder, se essas conquistas não se esterilizarem como meros instrumentos de controle social..

Ninguém melhor do que Foucault compreendeu isso. Ao se agenciar com a genealogia nietzcheana, Foucault produziu uma obra criativa, rica e original que desafiará por muito tempo os espíritos ortodoxos e dogmáticos.

19/08/2000