No mundo atual, muitos problemas tornaram-se imediatamente globais, impossíveis de serem resolvidos por meio de políticas nacionais isoladas. Os mercados se globalizaram, o meio ambiente não conhece fronteiras, os meios eletrônicos de comunicação muito menos. Inúmeros tratados internacionais foram aprovados na segunda metade do século XX na área ambiental, científica, cultural, econômica, social, criminal etc.
Os impactos da globalização reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes, conferindo-lhes perspectivas não territoriais e extranacionais. O Estado reformula seu papel em função de variáveis econômicas externas, como expansão do comércio mundial, políticas macroeconômicas e maior mobilidade internacional do capital. A mentalidade das elites dominantes se desterritorializou a tal ponto que mesmo a ‘segurança’ é definida mais em termos da economia global do que em relação à defesa da integridade territorial.
Desta forma, face às graves implicações sociais da globalização econômica, nem o Estado, nem o mercado, estão interessados em incentivar a mobilização popular, mantendo a cidadania passiva e apolítica. Coube à sociedade civil, voltada à defesa do interesse público, a tarefa de mobilizar as energias cívicas da população para defender, no plano transnacional, os princípios da cidadania fertilizados com os ideais de democracia política, diversidade cultural e sustentabilidade ambiental.
Surgiu, assim, em todo o mundo, um sem número de associações de militantes idealistas que oferecem resistência à globalização dominante, propondo uma globalização alternativa, um projeto emergente de construir uma sociedade civil global visando à democratização das relações internacionais.
Um dos principais objetivos desses atores não estatais é assegurar normas que regulem as operações das empresas transnacionais. Um dos cenários desse confronto tem sido as Nações Unidas com suas conferências globais sobre temas sociais, econômicos e ambientais, onde essas associações civis transnacionais tiveram intensa participação. Hoje, organizações como Anistia Internacional ou Greenpeace, por exemplo, têm mais poder no cenário internacional do que a maioria dos países.
Todas essas manifestações de protesto realizadas nas reuniões internacionais de Seattle, Washington, Montreal, Genebra, Praga, Nice, Davos e, agora, Quebec, são demonstrações da resistência à globalização autoritária por parte do movimento mundial de cidadãos. Elas apontam, sem dúvida, para o fortalecimento transnacional da sociedade civil, de que o Fórum Social Mundial em Porto Alegre foi um bom exemplo.
Trabalhando de forma mais constante e menos ruidosa, milhares de organizações da sociedade civil pressionam diariamente as instâncias internacionais de tomada de decisões, transmitindo-lhes suas próprias posições com o objetivo de confrontá-las com os interesses dos governos e das corporações transnacionais.
Segundo o professor Boaventura de Souza Santos, os protestos contra a (des)ordem neoliberal global constituem uma afirmação vigorosa de que as lutas democráticas transnacionais já são hoje um pilar importante do sistema político internacional. Para ele, a grande maioria dos manifestantes protesta contra a globalização predadora, protagonizada pelo capitalismo global, mas em nome de uma globalização alternativa, mais justa e equitativa, que permita uma vida digna e decente à população mundial, e não apenas a um terço dela.
O próprio presidente do Banco Mundial, na reunião de Praga, afirmou: “Algo está errado se os 20% mais ricos da população mundial recebem mais de 80% do rendimento mundial. A continuar essa situação – em que mais de metade da população mundial vive com 2 dólares por dia, até menos – o mundo caminha para um colapso social” (Folha de São Paulo, 2/11/2000).
Uma das propostas mais importantes desse movimento mundial de cidadãos é a aplicação da Taxa Tobin que prevê a cobrança de 1% sobre cada transação financeira para fins sociais. Segundo os membros da ATTAC, 0,05% seria suficiente para cobrir duas vezes as necessidades fundamentais da humanidade.
As organizações da sociedade civil assumiram assim a postura de um contra-poder ao executivo global formado pela OMC, Banco Mundial, FMI e a OCDE, o qual decide soberanamente, sem qualquer abertura democrática, acerca do destino de todos os habitantes do mundo. Expressaram, das formas mais diversas, a demanda por justiça e igualdade que irrompe em contrapartida ao processo de globalização. Constituiram-se em uma fiscalização essencial em meio ao poderio das organizações internacionais e notadamente das empresas multinacionais.
A repressão policial às manifestações de protesto em Quebec, como as anteriores, constitui apenas a ponta do iceberg. A ascensão de novas forças sociais no plano mundial demonstra que os Estados não detêm o monopólio da esfera pública e que, ao contrário, existem formas não estatais de governança que podem ser usadas para promover a democracia e o desenvolvimento sustentável, regular o mercado e defender a civilização contra a barbárie.
Liszt Vieira
Prof. PUC-Rio e UFF
Autor de Os Argonautas da Cidadania e de Cidadania e Globalização