Liszt Vieira | Escritor

Transgênicos e a luta anti-globalização

A reunião dos países mais ricos do mundo, abrigados sob a sigla G-8, iniciada em 20/07/01, em Gênova, contou com a proteção de 20.000 policiais para conter dezenas de milhares de manifestantes que foram protestar contra a globalização dominante e suas implicações desastrosas para os povos do mundo. Já no primeiro dia irrompeu a violência: um morto, 85 feridos e dezenas de presos marcaram de forma trágica o Encontro do G8.

Além de participar em reuniões oficiais da ONU e outros organismos internacionais, buscando alternativas ao modelo econômico dominante – insustentável ecologicamente e injusto socialmente – algumas organizações da sociedade civil partiram para a estratégia de ação direta de enfrentamento da repressão policial que cerca as reuniões internacionais das entidades que manipulam o poder econômico e político global.

Essas forças sociais transnacionais se organizam em torno de uma agenda que defende a democracia – política, social e econômica – a sustentabilidade ambiental e a diversidade cultural. Enfrentam, quase sempre, os interesses contrários das empresas multinacionais e do mercado financeiro, bem como dos Estados nacionais e organizações internacionais associados a tais interesses.

Um das características marcantes do chamado processo de globalização é o enfraquecimento do Estado nacional e de seus atributos básicos. A soberania, autonomia e territorialidade se esvaziam pelo impacto de novos fenômenos e processos que transcendem a capacidade e até mesmo a possibilidade de decisão do Estado-nação. Comunicações eletrônicas, capital financeiro, poluição ambiental, tráfico de drogas, contrabando de armas, migrações, empresas transnacionais, invadem territórios deixando atrás Estados enfraquecidos e impotentes.

Não apenas empresas multinacionais, como também organizações não governamentais têm hoje mais poder no cenário internacional do que a maioria dos países do mundo. Exemplo disso é a atuação de ONGs como a Anistia Internacional, Médico sem Fronteiras, Greenpeace, WWF etc., além das redes congregando entidades nacionais e locais em todo o mundo.

Mas se a mídia vem dando grande destaque aos conflitos mundiais que acompanham as conferências internacionais, o mesmo não ocorre quando se trata de conflitos locais ou nacionais. Um bom exemplo é a luta da sociedade civil brasileira contra a imposição de alimentos transgênicos no mercado nacional por parte de multinacionais produtoras de sementes.

Como se sabe, um grupo reduzido de empresas multinacionais produtoras e vendedoras de sementes transgênicas domina o mercado. As principais são a Monsanto, Novartis, Aventis, Dupont e Dow Chemical.

A Dupont é a maior companhia mundial de sementes, seguida da Monsanto, ambas com receita acima de 1,8 bilhão de dólares cada uma. A Novartis – fusão da Ciba-Geigy com a Sandoz – é a terceira maior empresa do ramo com receita de quase um bilhão de dólares. Em seguida, vem a Aventis – fusão da Hoecht alemã com a Rhone-Poulenc francesa.

Apesar do apoio obtido junto a certos cientistas e alguns setores da mídia, as multinacionais de biotecnologia vêm sofrendo contundente derrota na Justiça brasileira que, aplicando a Constituição, entendeu que não é possível lançar irresponsavelmente organismos transgênicos no mercado sem um prévio estudo de impacto ambiental e social, como manda a lei.

As ações judiciais impetradas pelo Greenpeace e pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) foram vitoriosas nos tribunais federais em Brasília. Além de apoiadas na legislação brasileira, tais ações se fundamentam no princípio internacional da precaução, segundo o qual nenhum procedimento, processo, técnica, invenção ou descoberta deve ser aplicado se houver dúvida científica a respeito de seus possíveis danos à saúde humana ou ao meio ambiente.

Nesse sentido, as organizações da sociedade civil defenderam o interesse público ao exigir na Justiça que o plantio da soja transgênica fosse permitido exclusivamente para efeito de pesquisa, durante o período de cinco anos. Igualmente grave é o caso do milho: a Monsanto domina 60% do mercado de sementes de milho no Brasil, a Dupont 14%, a Novartis 11% e a Dow 5% (A Transnacionalização da Indústria de Sementes no Brasil, Wilkinson/Castelli, ActionAid-Brasil, 2000).

Ou seja, 90% das sementes de milho poderão virtualmente transformar-se em sementes transgênicas, agravando a dependência do agricultor em relação à indústria de biotecnologia e comprometendo seriamente a biodiversidade brasileira. Além disso, o Brasil perderia o crescente mercado dos consumidores que, em todo o mundo, cada vez mais rejeitam o alimento transgênico, o que acarretaria prejuízo comercial na exportação de grãos.

Diante desse quadro, tem sido lamentável a postura do governo federal, mais voltada aos interesses comerciais das empresas transnacionais do que à defesa da saúde do consumidor brasileiro. Sete empresas transnacionais de transgênicos formaram um fundo de 50 milhões de dólares para “construir um apoio público para os transgênicos” (O Estado de São Paulo, 25/07/00). Há quem considere que essa fabulosa verba de publicidade ajuda a explicar certos apoios aos interesses das transnacionais.

Recentemente, o presidente da república baixou decreto publicado no Diário Oficial de 19/07/01dispensando de rotulagem os produtos com menos de 4% de transgênicos na sua composição. Enquanto na Europa se exige rotulagem para produtos com mais de 1% de transgênicos, o decreto presidencial determina rotulagem indicando modificação genética somente para produtos contendo mais de 4% de organismos geneticamente modificados. Na prática, é um vigoroso passo adiante para liberar o comércio de transgênicos sem nenhum estudo sobre o impacto na saúde humana.

Recorde-se que, em fins de 2000, o presidente FHC baixou, em 27 e 28 de dezembro, 74 Medidas Provisórias, entre as quais encontra-se a M. P. n° 2137 que atribui novos poderes à Comissão Tecnológica Nacional de Biossegurança – CTNBio – para emitir pareceres conclusivos destinados à liberação no mercado brasileiro de organismos geneticamente modificados (OGM), os chamados transgênicos.

De qualquer forma, é no mínimo estranho que a CTNBio, enquanto órgão governamental incumbido de regular a produção e comercialização dos transgênicos, tenha se alinhado com as multinacionais, emitindo pareceres e decisões favoráveis à liberação dos transgênicos no mercado brasileiro, e sempre tenha perdido na Justiça.

A Medida Provisória que fortalece a CTNBio para tentar impedir as derrotas que o governo federal e a Monsanto vêm colhendo na Justiça é mais um capítulo na luta que opõe o interesse público ao interesse econômico das multinacionais.

Outro exemplo digno de nota foi a ação simbólica de destruição de uma plantação de soja transgênica pelo MST, com a participação do líder sindical francês José Bové, durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em fins de janeiro passado. A defesa do campesinato, da agricultura familiar, da produção de alimentos sadios para o mercado interno, o combate à fome e à desnutrição, estiveram de novo na pauta dos protestos do movimento cívico mundial em Gênova.

Afinal, 20% da população mundial se apropria de 80% dos recursos, naturais e financeiros, do planeta. Somente os EUA consomem quase um terço da energia disponível no mundo. E, dos seis bilhões de habitantes da Terra, quatro bilhões permanecem na pobreza, dos quais 826 bilhões de famintos. O processo de globalização predatório não cessa de aprofundar o fosso entre ricos e pobres, agravando a exclusão social. A (des)ordem neoliberal global enfrenta hoje os protestos de forças sociais transnacionais que lutam por uma globalização alternativa ancorada na sustentabilidade ecológica e na justiça social.

Como as elites dominantes se globalizaram e os Estados perdem cada vez mais a capacidade de formular políticas nacionais autônomas, como ficam os direitos de cidadania – inclusive os direitos sociais, econômicos e culturais – e a soberania nacional num mundo globalizado?

Apesar do abalo que vem sofrendo a cidadania pelo declínio do Estado territorial e da soberania nacional, a atuação transnacional das organizações da sociedade civil na salvaguarda da democracia e dos direitos humanos, na luta pelo desenvolvimento sustentável e pela diversidade cultural, parece indicar que está em curso a tendência de constituição de uma sociedade civil global emergente como contra-poder à globalização autoritária dominante.

É no calor das lutas de resistência à globalização dominante que se vai forjando uma consciência de cidadania mundial, condição necessária para que os povos possam enfrentar os efeitos perversos da globalização econômica e constituir, nesse processo, um contra-poder hegemônico global. Do resultado deste embate dependerá o destino da democracia, a sustentabilidade do planeta e a sorte de seus habitantes.
Liszt Vieira
Prof. PUC-Rio
Autor de Os Argonautas da Cidadania e Cidadania e Globalização