JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA, POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Liszt Vieira – Defensor Público
Com a emergência da operação conhecida por Lava Jato, destinada ao combate da corrupção, as três instituições voltadas ao combate do crime vêm sofrendo transformações que as afastam de seu papel tradicional. Com efeito, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Poder Judiciário vêm assumindo um protagonismo que vai além de sua clássica missão prevista na Constituição.
Tradicionalmente, o juiz tinha de ser convencido das provas produzidas pela Polícia ou Ministério Público e frequentemente absolvia o réu em caso de insuficiência de provas. In dubio pro reo era um princípio sagrado. Hoje, no contexto da Lava Jato, o juiz assume a perspectiva da investigação e da acusação e o M.P., se as provas não são suficientes, apela para a “convicção”, como ocorreu na denúncia contra o ex-presidente Lula, o que torna a denúncia mais política do que jurídica.
Estamos diante de um processo de politização do M.P. e do Judiciário que constitui a outra face da judicialização da política que não cessa de aumentar frente ao esvaziamento político e moral do Poder Legislativo.
Além da seletividade e partidarização, o M.P, a Polícia e o Judiciário, que deveriam se fiscalizar mutuamente, passam a atuar em parceria com o objetivo de combater a corrupção. No entendimento do professor Rogério Arantes, da USP, este caminho é perigoso. “Não podemos passar de um triângulo das bermudas – onde tudo se perdia e reinava a impunidade – para um triângulo de ferro que venha a punir ao arrepio do Estado de Direito” (Entrevista a El País, 24/09/2016).
É interessante recordar o que ocorreu no caso do julgamento do chamado “Mensalão”. A denúncia oferecida pelo Procurador Geral alegava a existência de uma organização criminosa. O ministro relator no STF, Joaquim Barbosa, percebeu a fragilidade da denúncia e inverteu a sequência de julgamento, começando pelos crimes menores e mais periféricos, sobre os quais havia mais evidências, até chegar à formação de quadrilha, a mais central e a mais frágil das acusações. Com a votação dividida, os embargos infringentes interpostos levaram à absolvição de todos os acusados por crime de quadrilha. Em termos jurídicos, terminou o julgamento com crimes sem autoria.
Indubitavelmente, o que vemos em curso é um processo de fortalecimento e autoafirmação do M.P, da Polícia e do Poder Judiciário. Talvez o ponto de partida tenha sido a malograda Operação Satiagraha que empregou métodos heterodoxos, ignorando a legislação processual, para alcançar seu objetivo. O delegado responsável acabou processado, condenado e vive hoje exilado na Suiça. De lá pra cá, a Polícia e o M.P. não repetem os mesmos erros, mas perseveraram em seu animus acusatório priorizando não a busca da justiça, mas o fortalecimento de suas próprias instituições.
O STF: DECISÕES LENTAS E MONOCRÁTICAS
É opinião corrente, às vezes até mesmo no mundo jurídico, que as decisões do STF são tomadas de forma colegiada, após discussão coletiva. Na realidade, os ministros do Supremo agem frequentemente de forma individual, influenciando e gerando efeitos em relações jurídicas, sociais, econômicas e políticas na vida real externa ao STF. Os exemplos são conhecidos: declaração pública de opinião antes do julgamento – em violação direta do artigo 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) que proíbe aos juízes emitir opiniões pela imprensa – pedidos de vista com tempo ilimitado, decisões monocráticas que fixam jurisprudência. O processo de judicialização da política se vale, entre outros, desses mecanismos.
No caso das decisões monocráticas, não é excepcional a possibilidade de uma ação judicial internamente minoritária produzir efeitos externos contrários à preferência da maioria dos ministros do Tribunal. Os dados abaixo, extraídos de artigo do Prof. Diego Werneck Arguelhes (Revista Direito, Estado e Sociedade n.46, jan/jun 2015 – PUC-Rio) apontam nesse sentido.
– Mais de 90% das decisões foram monocráticas entre 2011 e 2015.
– Nos casos de ADIN e ADPF, 94% das decisões são monocráticas.
– Nas decisões do Plenário, 93% foram decisões unânimes e 5% com um único voto vencido (em geral do Ministro Marco Aurélio).
– O Relator vence em quase 100% dos casos.
Os exemplos são inúmeros. Eis alguns, entre muitos outros: a liminar do Ministro Gilmar Mendes suspendeu a posse de Lula como Ministro do Governo; a liminar do Auxílio Moradia para juízes (R$ 4.377,43 para cada juiz, ao custo total de 860 milhões), está sendo retida pelo Ministro Luiz Fux e nunca foi ao Plenário; o ministro Gilmar Mendes reteve um ano e meio o processo relativo ao financiamento eleitoral por parte de empresas etc.
Os pedidos de vista são muitas vezes devolvidos fora do prazo, alcançando muitas vezes mais de um ano. Em tese, a devolução deveria ocorrer em 30 dias. Em dezembro de 2013, na média, eles eram destravados depois de 346 dias. Hoje, são devolvidos em média após 443 dias.
Não há prazo para conceder ou negar uma liminar. A média da Corte é de 44 dias. O prazo regimental para publicar acórdãos é de 60 dias, mas a média está em 167. E não se diga que falta pessoal: o STF possui um quadro de 269 funcionários por Ministro, incluindo concursados, comissionados e terceirizados.
O STF tomou 18% menos decisões coletivas em 2016 do que em 2015. As decisões colegiadas, tomadas em plenário ou nas turmas, compostas por cinco ministros cada uma, diminuíram de 18 mil para 15 mil de um ano para o outro, enquanto o total de ordens do STF se manteve em cerca de 117 mil. De acordo com dados oficiais, as decisões coletivas corresponderam a 12% do total em 2016 e as decisões monocráticas foram 3% mais volumosas em 2016 do que no ano anterior, passando de 99 mil para 102 mil (Folha de São Paulo, 26/12/2016).
“O Supremo está virando tribunal de cada um por si, julga monocraticamente. Criamos tribunal de decisões monocráticas porque nesse quantitativo não se dá conta”, afirmou o Ministro Luis Roberto Barroso. E o Ministro Luiz Fux declarou em junho de 2016 que o STF tinha por volta de 70 mil processos para julgar, enquanto a Suprema Corte dos Estados Unidos, apenas 70. E que o Superior Tribunal de Justiça tinha mais de 200 mil recursos, ao mesmo tempo em que seu equivalente alemão tinha três mil.
Em entrevista ao jornal Valor de 22/12/2016, o cientista político Rogerio Arantes lembrou que “nada menos que 99% das decisões do STF são tomadas por ministros individuais e não pelos 11 em plenário”. E, em artigo no jornal O Globo, de 7/12/2016, o professor Joaquim Falcão afirmou que o Supremo “afoga-se com cerca de 70 mil processos ao ano. Mais de 6 mil por ministro. Em 2015, em 84% das decisões o ministro decidiu sozinho. Ao plenário, foram somente 2,4% delas. Onze Supremos”. E mais adiante: “Até 2013, em vez de cerca de 60 dias, ministros prendiam os processos por mais de 300 dias… Levam mais de um mês para simples, mas indispensável, publicação de acordão”.
O gráfico abaixo, extraído do site da FGV, Supremos em Números, é elucidativo a respeito.
O Supremo interfere na realidade não apenas pelo que decide, mas também pelo que deixa de decidir. O silêncio do Supremo é eloquente. A demora nas decisões do Supremo gera insegurança jurídica. Já foram protocolados no Senado diversos pedidos de impeachment de ministro do STF. De 2000 a 2014, houve apenas cinco. Em 2015, dois pedidos foram protocolados e, em 2016, onze requerimentos foram apresentados para impedir seis ministros, conforme o quadro abaixo, publicado em O Estado de São Paulo, 15/01/2017.
Um exame cuidadoso mostra que o Supremo só é rápido quando se trata de assegurar sua própria competência, ameaçada por alguma outra decisão judicial. O STF corrige os erros contra seu poder de decisão, mas não corrige ou é lento para corrigir injustiças. Um exemplo significativo foi a decisão do então Ministro Teori Zavacki anulando a decisão anterior de um juiz de primeira instância que autorizou a Polícia Federal a invadir o Senado para prender policiais a serviço da presidência daquela Casa.
Em suma, o STF tem se caracterizado pela ação fora do Tribunal – o Ministro Gilmar Mendes é campeão nesse quesito – pelo livre controle do que e quando julgar, e pela inexistência de regras de conduta.
Além disso, um Ministro sozinho tem o poder de alterar o statu quo e mudar uma realidade por decisões monocráticas que não passaram pelo colegiado e que podem até contrariar a maioria. Nos dois exemplos abaixo, o plenário do Supremo pronunciou-se sobre decisão liminar que afastou o presidente da Câmara e outra que afastou o presidente do Senado.
Em 5/05/2016, o ministro do STF Teori Zavascki, em liminar, determinou o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do mandato de deputado federal e da presidência da Casa. Na tarde do mesmo dia, os 11 ministros do STF decidiram manter a suspensão do mandato parlamentar e o afastamento por tempo indeterminado do deputado da presidência da Câmara. Em 12/09/2016, Cunha foi cassado pela Câmara dos Deputados.
Em 5/12/2016, o ministro Marco Aurélio determinou, em liminar, o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado por ele ter se tornado réu, por decisão do Supremo, em pedido da PGR. No dia seguinte, a Mesa do Senado rejeitou essa decisão liminar e manteve Renan Calheiros na presidência do Senado, alegando que a decisão era monocrática e que seria necessário aguardar manifestação do plenário do Supremo. Em 7/12/2016, o plenário, em decisão conciliadora, manteve o senador Renan Calheiros na presidência do Senado, mas afastando-o da linha sucessória do Presidente da República. Essa decisão, acusada de “jeitinho brasileiro”, teve forte conotação política, pois o objetivo era evitar que o vice presidente do Senado assumisse por se tratar de senador do PT que poderia adiar ou travar a pauta dos projetos do Governo, principalmente o ajuste fiscal que congela os gastos sociais por 20 anos e a reforma da Previdência.
Outro exemplo de interferência no processo legislativo foi a liminar do ministro Luis Fux, em 14/12/2016, anulando a decisão da Câmara no projeto conhecido como 10 Medidas Contra a Corrupção e ordenando que o Senado devolvesse o projeto à Câmara para iniciar nova votação. O Professor José Ribas, da PUC-Rio, afirmou tratar-se de “sequestro” da política parlamentar pelo Supremo Tribunal Federal, diante da sua clara interferência no conteúdo da “narrativa” legislativa. (“Deus ex Machina: O Sequestro da Política pelo Supremo” blog de José Ribas e Ranieri Resende).E a morte trágica do ministro Teori Zavascki, considerado “técnico”, abriu espaço para a nomeação de um ministro de caráter mais político e feição conservadora.
O Supremo muitas vezes invadiu a competência do Legislativo, o que se agravou na gestão do ex-deputado Eduardo Cunha. Alguns observadores passaram a falar em “governo dos juízes”, em “agentes de exceção” ou pelo menos em “protagonismo do sistema judicial na política”. Os exemplos abaixo efetivamente apontam nessa direção.
- Conduções coercitivas ilegais; b) Abuso de prisões preventivas; c) Delações de pessoas presas preventivamente; d) Interceptação telefônica de advogados; e) Vazamentos de informação ilegais; f) Juízes lutando politicamente pelo fim da presunção de inocência; g) MPF fazendo campanha pelo endurecimento da lei e redução de garantias; h) Juiz autorizando escutas ilegais e divulgando, ilegalmente seu conteúdo; i) STF emendando CF para acabar com a presunção de inocência; j) Promotores permitindo o uso de algemas em adolescentes; k) TJSP criando a tese da legitima defesa mediante massacre; l) O mesmo tribunal processando juíza por mandar soltar presos ilegais; m) Atores presos por satirizarem a atuação da polícia em peça teatral; n) Juiz invadindo a competência do STF para determinar buscas e prisões nas dependências do Congresso; o) Associação de juízes lutando politicamente contra PL que tipifica mais detalhadamente o abuso de autoridade.
Um dos casos mais chocantes foi a autorização concedida em 30 de outubro de 2016 pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal, Alex Costa de Oliveira, para a Polícia Militar desocupar uma escola cortando água e luz, proibindo entrada de alimentos e determinando o “uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono”. Ou seja, o juiz autorizou a tortura!
A partir da Reforma do Judiciário (EC 45/04) que introduziu o instituto da Súmula Vinculante, o STF fortaleceu sua posição no sistema de divisão de poderes, e foi várias vezes acusado de invadir prerrogativas do Congresso Nacional, como no caso da votação da cláusula de barreira (RE 635739) e da fidelidade partidária (ADI 5081/DF). Mas foi a partir do julgamento da Ação Penal 470 que se observou uma mudança expressiva de atitude em relação às garantias previstas no direito penal e processual penal.
Entre as inovações adotadas no julgamento daquele processo, destaca-se a aplicação da “teoria do domínio do fato”, numa chave interpretativa que permitiu fundamentar a responsabilidade de pessoas em posições de comando mesmo sem provas sobre ações ou omissões concretas. Decisões recentes confirmam essa tendência como a possibilidade de prisão em segunda instância (HC 126292) e a utilização de inquéritos e ações penais em curso como maus antecedentes para a dosimetria das penas.
A ação combinada da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário no combate à corrupção vem se chocando com os princípios da soberania e da divisão de poderes. Os fatos apontados acima revelam um poder judiciário que, em articulação com outras instituições judiciárias, exorbita da autonomia concedida pela Constituição de 88. O que se verifica, portanto, é que o Judiciário, com o apoio da mídia, ultrapassa suas atribuições constitucionais específicas. Em decorrência, os organismos representantes da soberania popular vêm perdendo terreno para as instituições judiciárias de controle, configurando o que foi denominado pretorianismo jurídico (Avritzer, 2015).
MINISTÉRIO PÚBLICO: INCREMENTO DOS PODERES
Assistimos, nos últimos anos, à criação de novas instituições de controle, como a Controladoria Geral da União (CGU), à ampliação das prerrogativas de algumas já existentes – como ocorreu com o Tribunal de Contas da União (TCU) – ou ainda a uma completa mudança institucional, como foi o caso da Polícia Federal (Arantes, 2015).
O fortalecimento dos direitos de cidadania possibilitado pela Constituição de 88 tem sido modulado, na atual década, pelo crescente conflito entre as instituições de controle e as que exercitam a soberania popular. A autonomia das instituições judiciais – aqui incluídos, além do Poder Judiciário, o Ministério Púbico e a Polícia Judiciária – intensificou-se a ponto de adquirir contornos de independência, favorecendo uma espécie de pretorianismo sobre as instituições políticas (Avritzer, 2015).
Se, por um lado, tivemos a expansão dos espaços extraparlamentares de participação da cidadania, por outro vimos o fortalecimento das instituições judiciais na sua pretensão de exercer controle político de mediação do interesse público, o que provoca tensão como os órgãos de exercício da soberania popular.
Além de sua tradicional função acusatória de propor ação penal pública para crimes comuns, o Ministério Público, a partir da Constituição de 1988, recebeu outras funções como, por exemplo, defender direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, que o levou a tornar-se mediador da cidadania (Arantes, 2002), bem como fiscalizar políticos e burocratas.
Já antes da Constituição de 88, o Ministério Público havia ampliado sua autonomia funcional com a Lei da Ação Civil Pública, de 1985, que lhe propiciou novas ferramentas como o Inquérito Civil e o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Em pouco tempo, o desenvolvimento institucional do Ministério Público possibilitou-lhe assumir a posição de representante do interesse público (Arantes, 2002; 2007) ou mediador da cidadania, principalmente pela defesa judicial dos direitos sociais, difusos, coletivos e interindividuais, propiciando ainda seu avanço no combate à corrupção, o que conformou seu perfil de órgão de controle político.
Nos últimos anos, a Polícia Federal, com autorização judicial e participação do Ministério Público, ganhou prestígio com as sucessivas operações de combate à corrupção envolvendo políticos e empresários. Com o apoio da mídia, a via penal tornou-se, assim, mais atrativa ao Ministério Público.
É interessante recordar que não era assim durante o governo do ex-presidente FHC. Em editorial (15/08/2000), o Jornal O Globo, em face da atuação do Procurador da República Luiz Francisco de Souza, que implicava uma série de políticos ligados ao então presidente da república, chamava a atenção para os perigos da “ofensiva contra a imagem do próprio Presidente da República”, condenando as ações que “confundissem indícios com provas, possibilidades com certezas e, acima de tudo, desejos com fatos” e pontuando que “o interesse público pede principalmente algo bastante elementar: que guardem suas denúncias para o fim do processo investigatório e não as alardeiem no início, quando são ainda suspeitas”.
Naquela época, predominava ainda a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. A prisão do banqueiro Daniel Dantas foi duramente criticada pelo então presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, que ordenou sua libertação. As escutas telefônicas consideradas ilegais levaram ao afastamento do delegado Protógenes Queiroz. O combate policial à corrupção não podia então violar os direitos e garantias individuais previstos na Constituição.
Essa postura foi rompida a partir da Operação Lava Jato. Observa-se, conforme já assinalado, uma tendência à politização seletiva da justiça e à criminalização da política, configurando uma espécie de pretorianismo judicial, em que a atuação institucional é substituída pelo protagonismo de alguns atores do sistema de justiça e das instituições judiciárias (Avritzer, 2015).
Esse processo escapa à lógica do Estado Democrático de Direito, já que seus atores ignoram muitas vezes direitos individuais ao assumirem prioritariamente estratégias de criminalização de políticos ligados ao governo do PT. Um exemplo foi a condução coercitiva do ex-presidente Lula sem intimação prévia e sem negativa em atendê-la, em clara violação da Constituição e da legislação penal. Outro exemplo foi a divulgação ilegal da sua conversa gravada com a então Presidente da República, utilizada pelo STF como prova para impedir a nomeação do ex-presidente Lula como Ministro do Governo.
Em meados de 2016, o Ministério Público lançou uma “cartilha” de 10 Pontos com propostas de mudanças processuais com vistas ao combate da corrupção. Conforme a denúncia da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, consubstanciada na Campanha “Contra a Corrupção Sem Perda de Direitos”, tais propostas implicam em supressão de direitos individuais previstos na Constituição.
Não há dúvidas de que as sucessivas operações integradas da Polícia Federal, em articulação com o Ministério Público e o Poder Judiciário, têm potencial para ampliar a eficiência no combate à corrupção e crimes correlatos, mas isso só se concretizará com a necessária mediação dos órgãos de soberania e, principalmente, se forem respeitados os direitos individuais.
O que tem predominado na Operação Lava-Jato é a seletividade da atuação das instituições judiciais, muitas vezes comprometidas com elites políticas e econômicas, e com a apropriação particularista da noção de interesse público que pretendem defender.
O processo de judicialização da política em curso tem utilizado como importante instrumento o instituto da delação premiada, um mecanismo de Direito Penal típico em sistemas de common law, que aqui passou a ser utilizado face às dificuldades na punição dos crimes praticados em concurso de agentes, num contexto do aumento e da sofisticação da criminalidade.
A delação premiada é um instituto vinculado ao modelo jurídico anglo-saxão que favorece as práticas negociáveis no âmbito jurídico visando à obtenção de resultados práticos a serem apresentados à sociedade. Os benefícios, previstos pela Lei 12.850/2013, variam de perdão judicial, redução da pena em até 2/3 e substituição por penas restritivas de direitos, desde que a colaboração seja voluntária e efetiva. E o benefício oferecido é dependente do resultado alcançado.
Quadro 1 – Comparação da pena aplicada antes e depois dos acordos de delação premiada no âmbito da Operação Lava-Jato.
Delator | Qualificação | Antiga Pena (antes da delação) | Pena negociada(após a delação) |
Alberto Youssef | Doleiro | 82 anos e 8 meses | 3 anos (regime fechado) |
Augusto Mendonça | Executivo (Toyo Setal) | 16 anos e 8 meses | 4 anos (regime aberto) |
Dalton Avancini | Executivo (Camargo Corrêa) | 15 anos e 10 meses | 3 anos e 3 meses(3 meses em regime fechado, com progressão) |
Eduardo Leite | Executivo (Camargo Corrêa) | 15 anos e 10 meses | 3 anos e 3 meses(3 meses em regime fechado, com progressão) |
Fernando Baiano | Operador do Esquema | 16 anos, 1 mês e 10 dias | 4 anos(1 ano em regime fechado, com progressão) |
Julio Camargo | Lobista(Tovo Setal) | 26 anos | 5 anos (regime aberto) |
Mario Goes | Lobista | 18 anos e 4 meses | 3 anos, 5 meses e 25 dias(25 dias em regime fechado, com progressão) |
Nestor Cerveró | Burocrata(Ex-diretor internacional da Petrobras) | 17 anos, 3 meses e 10 dias | 3 anos(regime fechado e prisão domiciliar e prisão domiciliar) |
Paulo Roberto Costa | Burocrata(Ex-diretor de abastecimento da Petrobras) | 39 anos e 5 meses | 2 anos e 6 meses(6 meses em regime fechado, com progressão) |
Pedro Barusco | Burocrata(Ex-gerente da Petrobras) | 18 anos e 4 meses | 2 anos (regime semiaberto) |
Rafael Ângulo | Doleiro(Funcionário de Youssef) | 6 anos e 8 meses | 2 anos (regime semiaberto) |
João Procópio | Doleiro(Funcionário de Youssef) | 3 anos | 2 anos e 6 meses(prisão domiciliar) |
Fonte: Folha de São Paulo, a partir dos dados disponibilizados pela Justiça Federal, ao final de 2015.
A associação da delação premiada à prisão preventiva tem servido não apenas como estratégia de ampliação da autonomia do Ministério Público, mas também como estratagema para uma profunda ampliação da discricionariedade do juiz, como vemos no caso da Operação Lava-Jato.
A delação premiada é antecedida pela prisão preventiva. A liberdade só é concedida após a concretização do acordo, o que fere, frontalmente, o Código de Processo Penal (art. 312), que limita a prisão aos casos de risco à ordem pública e econômica, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal.
Quadro 2 – Medidas Judiciais Coercitivas na Lava-Jato (Março/2014 – Março/2016)
Mandados de Busca e Apreensão | Mandados de Condução Coercitiva | Mandados de Prisão | Acordos de Colaboração (Delação Premiada) |
Preventiva | Temporária | Investigados em liberdade | Investigados Presos |
64 | 69 | 35 | 14 |
482 | 117 | 133 | 49 |
(Avritzer, L. e Marona, M., 2016)
Essa postura tem sido justificada pela tradicional impunidade de criminosos ou pela morosidade do Poder Judiciário. Em decorrência, a legitimidade da atuação judicial é abalada pela perda da independência em favor da popularidade. A independência judicial, duramente construída na luta pela redemocratização do país e garantida pela Constituição de 88, perde substância face ao crescente processo de pretorianismo judicial (Avritzer, 2015).
Como efeito desse processo, constatamos as seguintes consequências.
- uma tendência à desinstitucionalização do Judiciário pelo protagonismo pessoal de alguns atores (Marona, 2015), bem como uma tendência à seletividade, que tem caracterizado principalmente as decisões da Operação Lava Jato.
- o Ministério Público, com base no artigo 127 da Constituição, ampliou sua atuação no campo dos direitos difusos e coletivos e avança hoje no combate à corrupção.
- as mudanças na Polícia Federal nos anos 2000 aparelharam a polícia judiciária e aumentaram muito sua capacidade operacional.
- Apesar de a força-tarefa da Lava Jato de Curitiba ser composta por 14 membros, enquanto o MPF possui cerca de 1.100 integrantes, e os MPs estaduais em torno de 11 mil membros, a Lava Jato tem servido como modelo para uma nova forma de atuação do Ministério Público no campo penal, assumindo postura política no combate à corrupção.
A pesquisa “Ministério Público: Guardião da democracia?”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESEC, da Universidade Candido Mendes, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, divulgada na Folha de São Paulo em 6/12/2016, revelou perfil elitista e distorções na atuação do Ministério Público.
A pesquisa mostra que, em média, o promotor no Brasil é homem, branco, 43 anos, focado no combate à corrupção. 70% dos promotores e procuradores são homens e 77% são brancos. A alta escolaridade dos genitores indica a origem social elevada: 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados tinham curso superior. Essa proporção, no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, é de 9% para homens e 8,9% para mulheres.
Os membros do M.P. concentram-se mais na sua tradicional tarefa de acusação penal e, mais recentemente, no combate à corrupção, e ignoram ou negligenciam funções imprescindíveis à segurança da sociedade, como o controle externo das polícias e a fiscalização das punições legais.
Os dados da pesquisa mostram que o Ministério Público “não vem cumprindo, ou cumprindo mal, as vastas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988, sobretudo em áreas que deveriam ser de atuação prioritária: controle externo das polícias, supervisão da pena de prisão e defesa de direitos coletivos”.
A polícia brasileira é uma das mais violentas do mundo. Em 2015, as forças policiais brasileiras mataram nove pessoas por dia. A Constituição de 1988 definiu o controle externo da atividade policial como atribuição exclusiva do Ministério Público. Segundo a coordenadora da pesquisa, Julita Lengruber, isso resultou num rotundo fracasso: “há certa ‘cumplicidade’ entre o órgão e as polícias, sobre tramitação de processos penais iniciados com prisão em flagrante, na qual promotores repetem na denúncia a versão policial dos fatos, sem averiguar sua veracidade, nem a legalidade do flagrante, nem tampouco a possível ocorrência de tortura ou maus tratos”.
Em suma, a pesquisa mostra que o trabalho de promotores e procuradores tem se concentrado mais em atividades acusatórias do que em garantia de direitos.
Destarte, o processo de judicialização da política sofreu profundas modificações, com um duplo deslocamento. Em primeiro lugar, deslocamento da esfera cível de atuação para a criminal. Em seguida, deslocamento da atuação em favor de direitos difusos e coletivos para priorizar o controle à corrupção, violando muitas vezes direitos e garantias individuais.
A politização da Justiça – a outra face da judicialização da política – tende a priorizar a dimensão repressiva de combate à corrupção, o que leva as instituições judiciais à perspectiva de dar tratamento criminal à atividade política.
DEFENSORIA PÚBLICA: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO
O art. 5.º, LXXIV, da Constituição Federal, assegura a prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. E no artigo 134 a Constituição estabelece que a Defensoria Pública é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, além de ser órgão fundamental à administração da justiça.
São as seguintes as funções institucionais da Defensoria Pública: promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses; patrocinar a ação penal privada e a subsidiária da pública, a ação civil, a defesa em ação penal, a defesa em ação civil e reconvir; atuar como curador especial nos casos previstos em lei e exercer a defesa da criança e do adolescente; atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários; assegurar aos seus assistidos o contraditório e a ampla defesa; atuar junto aos Juizados Especiais; patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado.
Em termos mais amplos, a Defensoria Pública está estreitamente ligada à defesa dos direitos de cidadania. Tradicionalmente, o termo cidadania envolve uma série de direitos tais como direitos civis e políticos (chamados de primeira geração), sociais (de segunda geração) e difusos (de terceira geração). Aí se encontram também os direitos relacionados à identidade (negros, mulheres, gays etc.). Além disso, num conceito mais amplo de cidadania, encontramos ainda a luta por melhores condições de vida (educação, saúde, transporte público etc.).
O Estado do Rio de Janeiro é pioneiro na criação de Defensoria Pública no Brasil. No antigo Estado do Rio de Janeiro, a Lei Estadual n° 2.188, de 21 de julho de 1954, criou, no âmbito da Procuradoria Geral da Justiça, os 06 primeiros cargos de Defensor Público, que constituíram a semente da Defensoria Pública naquele Estado, cujo modelo organizacional foi adotado, em 1974, pelo novo Estado do Rio de janeiro, resultante da fusão do antigo com o da Guanabara. A Constituição do Novo Estado do Rio de Janeiro, promulgada em 23 de julho de 1975, instituiu, em seu texto, a Assistência Judiciária, como órgão do Estado, denominação que, mais tarde, foi substituída pela designação Defensoria Pública (Defensoria Pública no Brasil – Minuta Histórica, José Fontenelle Teixeira da Silva).
Pode-se dizer, grosso modo, que a Defensoria Pública atravessou no Brasil duas fases principais. A primeira diz respeito à defesa de direitos individuais dos chamados juridicamente necessitados ou hipossuficientes. Era necessário comprovar essa condição com atestado de pobreza para que o Juiz concedesse o benefício da justiça gratuita. Na área penal, bastava o réu não ter advogado para que o juiz o encaminhasse ao Defensor Público. A atuação da Defensoria Pública enfrentou muitas vezes a oposição da OAB pelo Brasil afora.
A segunda fase tem a ver com a tutela coletiva de direitos. No que tange ao acesso à justiça, a passagem da defesa dos interesses individuais aos coletivos enfrentou conflitos e se beneficiou, entre outras, da perspectiva de Cappelletti de priorizar não os “produtores” do sistema jurídico mas sim os “consumidores” do sistema. O conceito de acesso à justiça foi ampliado e passou a incluir, além da atuação no plano judicial, a promoção de cidadania e solução de controvérsias no plano extra-judicial. Tornou-se, assim, um direito humano fundamental, eis que “a titularidade dos direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação” (Cappelletti, 2002).
Em sua obra “Acesso à justiça”, Mauro Cappelletti e Bryant Garth dividiram em três ondas a evolução do acesso à justiça. A primeira onda se refere à assistência judiciária aos pobres e visa a compensar sua inferioridade econômica. A segunda onda inclui a representação dos interesses difusos em juízo e a terceira onda, denominada “enfoque do acesso à justiça”, propicia uma concepção mais ampla de acesso à justiça, prevendo inclusive a proposição de técnicas processuais adequadas para alcançar seus objetivos.
Se na primeira onda, a Defensoria esbarrou por vezes na oposição da OAB, na segunda onda teve de enfrentar o questionamento do Ministério Público. A Lei n. 11.448/07, incluindo a Defensoria Pública entre os legitimados para a ação civil pública, foi alvo de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), ADIN 3.943-1, sob a alegação de que, tendo sido criada para atender, gratuitamente, cidadãos sem condições de se defender judicialmente, seria impossível para a Defensoria Pública atuar na defesa de interesses coletivos, por meio de ação civil pública.
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 7 de maio de 2015, julgou improcedente a ADIN 3943 e considerou constitucional a atribuição da Defensoria Pública em propor ação civil pública. Os ministros entenderam que o aumento de atribuições da instituição amplia o acesso à Justiça e é perfeitamente compatível com a Lei Complementar 132/2009 e com as alterações à Constituição Federal promovidas pela Emenda Constitucional 80/2014, que estenderam as atribuições da Defensoria Pública e incluíram a de propor ação civil pública.
A relatora, ministra Carmen Lucia, argumentou que não há qualquer vedação constitucional para a proposição desse tipo de ação pela Defensoria, nem norma que atribua ao Ministério Público prerrogativa exclusiva para ajuizar ações de proteção de direitos coletivos. A ministra salientou que, além de constitucional, a inclusão taxativa da defesa dos direitos coletivos no rol de atribuições da Defensoria Pública é coerente com as novas tendências e crescentes demandas sociais de se garantir e ampliar os instrumentos de acesso à Justiça. Em seu entendimento, não é interesse da sociedade limitar a tutela dos hipossuficientes. Ela lembrou, ainda, que o STF tem atuado para garantir à Defensoria papel de relevância como instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado.
As atuações coletivas da Defensoria Pública em prol das pessoas carentes estende-se, assim, ao campo dos direitos difusos. E essa atuação não se restringe à área judicial. Inclui também atuações coletivas extrajudiciais , como a celebração de termos de ajustamento de conduta.
O I Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública afirma que “a Defensoria Pública pode propor ações civis ou coletivas, em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos de pessoas que se encontrem na condição de necessitados, ou seja, de quem tenha insuficiência de recursos para custear a defesa individual, mesmo que, com isso, em matéria de interesses difusos (que compreendem grupo indeterminado de lesados), possam ser indiretamente beneficiadas terceiras pessoas que não se encontrem na condição de deficiência econômica, até porque não haveria como separar os integrantes desse grupo atingido”.
Após sua consolidação, em todo o país, na defesa de interesses individuais, a Defensoria Pública avançou, assim, para ocupar posição de destaque na defesa de interesses coletivos. Como vimos, a partir de maio de 2015, o STF reconheceu a legitimidade da Defensoria para propor ação civil pública na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos de pessoas com insuficiência de recursos.
O gráfico abaixo ilustra a evolução da ação civil pública na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Dados fornecidos pela Corregedoria da Defensoria Pública RJ
Um bom exemplo do novo papel da Defensoria Publica foi sua resposta à campanha do Ministério Público “Dez Medidas Contra a Corrupção” que propõe suprimir direitos para melhor combater a corrupção. A Defensoria lançou campanha própria denominada “Dez Medidas em Cheque” questionando a supressão de direitos e mostrando que não é possível combater ilegalidades com atos ilegais ou supressão de direitos assegurados na Constituição.
Entre os principais pontos questionados, encontram-se a restrição de habeas corpus, o uso de provas ilícitas e o teste de integridade para agentes públicos. O quadro abaixo resume esse debate.
O Globo, 9/11/2016, Página 6
A Defensoria Pública tornou-se uma instituição de ponta na luta pela defesa dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal. Numa conjuntura em que o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal se articulam para combater a corrupção e atropelam direitos individuais, a Defensoria destaca-se como um Contra-Poder na defesa intransigente dos direitos de cidadania ameaçados.
REFERÊNCIAS
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