Liszt Vieira
9/8/2022
O presidente da FIESP, Josué Gomes, declarou em 4 de agosto passado que “Não existe liberalismo sem democracia e Estado de Direito”. No plano teórico, essa frase tem algum sentido. Afinal, os pensadores clássicos do liberalismo, de Tocqueville a Adam Smith, de Montesquieu a Locke, defendiam os direitos individuais, a livre iniciativa e mantinham desconfiança em relação ao Estado, influenciados pela teoria hobbesiana de que o Estado é um mal necessário tendo em vista que “o homem é o lobo do homem”. Tocqueville chegou a dizer que “a anarquia não é o maior dos males que uma democracia deve temer, mas o menor”. A tirania era o grande inimigo do liberalismo.
O tempo se encarregou de mostrar que a força do liberalismo não se apoiou nos direitos individuais e políticos, mas na livre iniciativa econômica. A poção mágica do liberalismo passou a ser a formulação de Adam Smith, para quem o mercado tem uma “mão invisível” que aloca os recursos de forma ideal.
Assim, o liberalismo na prática negou as políticas sociais de caráter redistributivo e passou a olhar o Estado como inimigo do mercado. O Estado mínimo tornou-se um dogma difundido em boa parte do mundo ocidental, principalmente após o famoso “Consenso de Washington” que, em 1989, apregoava o neoliberalismo baseado em reformas estruturais, privatizações, livre comércio, reforma tributária, desregulamentações etc.
Na realidade, o neoliberalismo se instituiu como proposta desde a chamada Escola de Chicago, tendo como um de seus grandes divulgadores o economista Milton Friedman, guru do Ministro brasileiro de Economia, Paulo Guedes. Quando o furacão Katrina devastou a cidade de Nova Orleans, nos EUA, em agosto de 2005, provocando mais de 1.800 mortes e US $ 125 bilhões em danos, Friedman saudou a tragédia como positiva, porque destruiu muitas escolas, abrindo caminho para sua privatização, conforme relato de Naomi Klein em seu livro A doutrina do choque: O auge do capitalismo do desastre.
Na América Latina, o modelo paradigmático do neoliberalismo foi o Chile de Pinochet que sacramentou o casamento do liberalismo com a ditadura militar. Essa foi a escola do ministro Guedes, que lá trabalhou e aprendeu que o liberalismo econômico dispensa a democracia e muitas vezes prefere a ditadura. Antes do golpe fascista no Chile em setembro de 1973, já outros países haviam provado o veneno do liberalismo entrelaçado com a ditadura. O Brasil, desde 1964 e até mesmo antes, é um bom exemplo de que a frase do presidente da FIESP não corresponde à realidade. Os liberais apoiam a ditadura quando sentem que seus privilégios econômicos estão ameaçados.
Mas a tendência mundial após a pandemia é o resgate do papel do Estado em detrimento do reinado absoluto do Mercado. A crise da COVID-19 mudou o discurso de Estado mínimo tradicionalmente adotado por vários economistas liberais. Antes apoiavam o corte de recursos orçamentários destinados à área social – saúde, educação, pesquisa científica, meio ambiente etc. – em nome do equilíbrio nas contas públicas. Hoje, alguns abandonaram o dogma liberal da “mão invisível do mercado”, de repente tornaram-se keynesianos e passaram a apoiar o aumento dos gastos sociais do Estado.
No mundo de hoje, há visíveis sinais de enfraquecimento da hegemonia americana, com o fortalecimento econômico da China e a tendência – adiada pela guerra na Ucrânia – de a Europa se aproximar da Eurásia, o que levaria à inevitável formação de um mundo multipolar e ao declínio do liberalismo. Mas a política econômica do atual governo brasileiro está longe disso, e o neoliberalismo aqui dominante continua santificando o mercado e demonizando o Estado. Como a chamada trickle-down economics (economia do “gotejamento”, segundo a qual a renda concentrada acabaria redistribuída e beneficiaria camadas inferiores) perdeu credibilidade, um novo modelo tornou-se necessário para sustentar politicamente o regime neoliberal. Esse novo modelo, em alguns lugares, assumiu a forma de neofascismo.
Esse sacrifício da democracia é geralmente justificado pelas elites políticas e econômicas com base no argumento de que as políticas econômicas neoliberais conduzem a um maior crescimento do PIB. Mas esse crescimento, quando ocorre, não beneficia o grosso da população e na verdade provoca o aumento da desigualdade social.
Apesar disso, a narrativa de que o neoliberalismo beneficiaria a todos manteve certa credibilidade até o início dos anos 2000. Mesmo aqueles que foram prejudicados pelo regime neoliberal muitas vezes nutriam a esperança de que o alto crescimento mais cedo ou mais tarde “gotejaria” até eles – uma esperança alimentada incessantemente pela mídia dominada pelas elites. Essa esperança evaporou quando a fase de alto crescimento do capitalismo neoliberal terminou em 2008 com o colapso da bolha imobiliária dos Estados Unidos, dando lugar a uma crise prolongada e estagnação na economia mundial.
À medida em que a velha doutrina da trickle-down economics perdia sua credibilidade, um novo modelo seria necessário para sustentar politicamente o regime neoliberal. A solução teria vindo na forma de uma aliança entre o capital corporativo globalmente integrado e elementos neofascistas locais. Alguns exemplos, entre outros, são os governos de Narendra Modi na Índia, Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos.
A aliança global entre o neoliberalismo e o neofascismo é uma questão complexa que coloca muitas interrogações. Por quanto tempo o neofascismo pode oferecer abrigo a um neoliberalismo em crise? O neofascismo aliado ao neoliberalismo é incapaz de acabar com o desemprego em massa. O fascismo clássico garantiu o emprego por meio dos gastos industriais do governo, principalmente em armamentos, financiados por meio de empréstimos, gerando um grande déficit fiscal. O neofascismo contemporâneo é incapaz de fazer isso pois o aumento dos gastos governamentais, que deveria ser financiado pela tributação dos capitalistas ou por um déficit fiscal, é rejeitado pelos neoliberais.
Esta situação coloca um problema para o controle do poder pelo neofascismo. A incapacidade de aliviar a crise do neoliberalismo pode levar à sua derrota nas eleições (assumindo que não as manipule ou elimine totalmente). Possivelmente, foi o que ocorreu nos Estados Unidos com a derrota de Trump e o que, segundo as pesquisas, tende a ocorrer no Brasil em outubro de 2022 se as eleições realmente forem respeitadas. Mas, mesmo se o neofascismo perder no curto prazo, ele continuará sendo uma forte alternativa para retornar ao poder se os governos sucessores retomarem a política econômica neoliberal, como tem sido o padrão há algum tempo.
Em ano eleitoral, o neofascismo brasileiro abandonou os dogmas neoliberais para ultrapassar o teto de gastos a fim de conceder benefícios diretos à grande massa de pobres e miseráveis. O ministro Guedes engoliu sua anacrônica ortodoxia neoliberal e passou a apoiar aquilo que antes condenava. Para sobreviver, o neoliberalismo faz concessões e aceita um disfarce social-democrata às vésperas da eleição. Mas a conjuntura mudou e o mercado, ainda dividido, ficou abalado com o apoio enfático de banqueiros, empresários, juristas e representantes diversos da sociedade civil à Carta aos Brasileiros em apoio à democracia, ameaçada com o “golpe” anunciado diversas vezes pelo presidente B. que já repetiu ad nauseam sua decisão de rejeitar o resultado eleitoral, em caso de sua provável derrota.
Também pesa na balança a ameaça de sanções econômicas do governo americano às empresas que porventura vierem a apoiar um eventual golpe contra a eleição no Brasil. O governo americano já enviou três diplomatas para comunicar aos militares brasileiros que eles devem respeitar o resultado eleitoral. Afinal, Bolsonaro apoia Trump que apoia Putin, dois inimigos de Biden. Lula seria um mal menor. É verdade também que um governo Lula traz certa previsibilidade, o que não ocorreria com um segundo governo neofascista do presidente B.
Além disso, o Governo americano mandou outro recado, Os Estados Unidos travaram a tramitação de um pedido das Forças Armadas brasileiras para comprar mais de 200 mísseis antitanques portáteis, afirma a agência Reuters. A compra pode custar US$ 100 milhões, foi solicitada ainda no governo Trump e recebeu o aval da administração Joe Biden. Segundo a agência, parlamentares americanos estão preocupados com os ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral (O Globo, 8/8/2022 e Folha, 9/8/2022).
Os militares brasileiros têm longa tradição de golpe de Estado. 1937, 1954, 1955, 1961, 1964, 2016, são os mais lembrados, mas a própria República nasceu de um golpe militar “a que o povo assistiu bestializado”, na famosa frase de Aristides Lobo. Mas todos os golpes militares no Brasil e na América Latina – e não só – tiveram apoio americano. Seria possível um golpe, mesmo “híbrido”, sem tanque na rua, sem o apoio dos EUA?
Breve saberemos. Mas ninguém acredita que o atual presidente aceite pacificamente o resultado da eleição sem provocar algum tipo de rebelião ou grave distúrbio, mesmo se conseguir proteção permanente com o cargo de senador vitalício que vai propor ao Congresso quando se convencer de que a derrota é inevitável. Como nada garante que conseguirá aprovar uma PEC com essa sinecura sem precedentes, correrá sério risco de condenação em diversos processos abertos para investigar os inumeráveis crimes que cometeu. Em 2023, o Brasil vai virar uma das páginas mais tristes de sua História. Jogará na lata de lixo o neofascismo e com ele, esperamos, o neoliberalismo.