Artigos Diversos

Globalização Econômica x Cultural

29/04/2020   Li agora a entrevista do Fiori. Como sempre, muito boa. Mas há pontos polêmicos. Ele diz que os nacionalismos vão se fortalecer e que a União Europeia vai se dissolver, principalmente se Trump ganhar. Ele só vê a globalização pelo lado negativo, ou seja, pelo lado financeiro e econômico. Os benefícios trazidos pela globalização em termos culturais, sociais e jurídicos são ignorados. Alguns exemplos são a comunicação eletrônica instantânea, tratados internacionais de proteção social e ambiental, de combate a crimes como tráfico de drogas etc. Mas, ao contrário do que ele diz, a cooperação internacional pode se fortalecer após a crise, os nacionalismos podem se enfraquecer, principalmente se Trump perder. O capitalismo vai continuar, mas sua versão neoliberal pode sofrer mudanças. Creio que não será mais possível cortar tantas verbas sociais destinadas à saúde, educação etc. em nome do mercado livre. A desigualdade vai provavelmente continuar, mas não com a violência selvagem que existe em vários países, com o Brasil à frente. Duvido que continue valendo no Brasil a decisão de cortar o investimento do Estado por 20 anos, caso único no mundo. Entre os que dizem que nada vai mudar e os que dizem que tudo vai mudar, há muitas nuances e combinações possíveis, em países diferentes

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A hora e a vez do impeachment: da guerra de posição à guerra de movimento

Se o inimigo avança, a gente recua. Se o inimigo estaciona, a gente fustiga. E se o inimigo recua, a gente avança (Mao Tse Tung) 25/04/2020 O discurso de renúncia do ex-ministro Sergio Moro contém denúncias de diversos crimes de responsabilidade – falsidade ideológica, prevaricação, advocacia administrativa – praticados pelo presidente Bolsonaro que insiste em violar a autonomia da Polícia Federal. Ao afirmar que a questão não é “quem”, mas “por que” – ou seja, o que importa não é quem virá, mas por que demitir o atual Diretor Geral da Polícia Federal – Moro deixou no ar o que todos já sabem: Bolsonaro quer proteger os crimes cometidos por seus filhos e amigos. Na realidade, o presidente já cometeu muitos crimes, todos denunciados pela imprensa e ignorados pelo Congresso e pelo STF, até há pouco tempo, pelo menos. Mas a denúncia de Moro poderá ser o empurrão que faltava para a abertura do processo de impeachment. Provavelmente, vai sacudir a oposição que recusava pedir o impeachment com medo de “fortalecer” Bolsonaro que ainda conta com seus 30% de apoio (?). É necessário fazer aqui um rápido recuo para entender porque a oposição de esquerda, em geral, recusava pedir o impeachment do presidente. A oposição no Brasil tem travado contra o fascismo uma guerra de trincheiras e não uma guerra de movimento. A esquerda brasileira recebeu forte influência da visão de Gramsci que criticou a guerra de movimento e defendeu a guerra de posição. Além disso, as derrotas das organizações que travaram luta armada contra a ditadura militar também contribuíram para esta atitude de adotar a guerra de posição como estratégia. Por detrás, o que ilumina essa discussão é o conceito gramsciano de hegemonia. O contexto histórico dos conceitos de guerra de posição e hegemonia em Gramsci é a disputa que havia contraposto Lênin (tática da “frente única”) a Trotski (teoria da “revolução permanente”) a respeito dos modos de desenvolver a luta revolucionária depois da revolução russa de outubro de 1917. “Parece-me que Ilitch compreendeu – afirma Gramsci no Quaderno n. 7 – que havia ocorrido uma mudança da guerra de movimento, vitoriosamente aplicada no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente. No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil e, diante dos abalos do Estado, podia-se divisar imediatamente uma robusta estrutura de sociedade civil”. Por outro lado, Gramsci afirmou que “uma classe é dominante em dois modos, isto é, dirigente e dominante. É dirigente das classes aliadas e dominante das classes adversárias. Por isso, já antes da chegada ao poder uma classe pode ser dirigente (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas continua a ser dirigente”. Em outra parte (Primo Quaderno), esclareceu que “Pode-se e deve-se exercer uma ‘hegemonia política’ mesmo antes da chegada ao governo e não é necessário contar apenas com o poder e sua força material para exercitar a direção ou hegemonia política”. Essa concepção tem de ser vista no Brasil de hoje em outra chave. O governo eleito em 2018 já perdeu visivelmente a hegemonia política. Mal consegue ser dirigente de seus pares e, enquanto Governo, é um fracasso retumbante. “Vim para destruir, não para construir”, afirmou o próprio presidente. Na realidade, Bolsonaro e seu bloco de apoio não tem mais hegemonia e vem perdendo sua característica de poder dominante. O Governo já perdeu várias disputas com o Congresso, o Judiciário e os Estados da Federação. E, com o avanço da pandemia, tende a perder parte de sua base inicial de apoio de 30%. Bolsonaro pratica a guerra de movimento com características de Guerra de Guerrilha. Ataca e recua, mas vinha conquistando posições. A oposição em geral tem se limitado a disparar de dentro de suas trincheiras. Só muito recentemente, em especial após a manifestação antidemocrática do domingo 19/4 que pediu AI-5 e ditadura com o apoio explícito do presidente, é que algumas iniciativas mais ofensivas começaram a ser tomadas. No atual contexto, é suicídio político praticar a guerra de posição e rejeitar ações na lógica da guerra de movimento. Alguns sinais, porém, mostram que setores da esquerda começaram a se mover. No dia 22/4 último, o PDT entrou com um pedido de impeachment. Outros partidos devem seguir o mesmo caminho. Dois advogados, com o apoio discreto da OAB, impetraram mandado de segurança para limitar os poderes do presidente. E o STF aceitou o pedido de investigação, proposto pela PGR, dos parlamentares e empresários que patrocinaram a manifestação do domingo 19/4, embora o nome do presidente “estranhamente” não estivesse incluído no pedido de investigação. Mais expressivo ainda foi a decisão do Ministro Celso de Mello, decano do STF, que mandou o presidente da Câmara Rodrigo Maia se manifestar sobre pedido de impeachment de Bolsonaro apresentado em março passado. Ressalte-se que Maia já recebeu e engavetou 14 pedidos de impeachment até 24/4 e deve receber mais doravante. E, poucas horas após a demissão de Moro, a PGR pediu ao STF inquérito para investigar acusações de Moro a Bolsonaro. Bolsonaro avançou demais, não consegue controlar o terreno e dá mostras de que começa a recuar. Seus generais no governo já começaram a oferecer cargos no Congresso em troca de apoio político, com o objetivo de comprar os parlamentares do Centrão. É o velho “toma lá, dá cá”. Os conhecidos corruptos Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto estão cotados para importantes cargos no Governo. Uma das regras da guerra de guerrilhas é a famosa frase atribuída a Mao Tse Tung: “Se o inimigo avança, a gente recua. Se o inimigo estaciona, a gente fustiga. E se o inimigo recua, a gente avança”. Bolsonaro está na defensiva, a hora é de avançar. Ele trocou o Diretor Geral da Polícia Federal porque sabe que ela chegou perto dos crimes de seus filhos e dos financiadores de sua milícia digital que continua inundando o país com fake news. E talvez saiba também sobre a relação do

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São Jorge x Dragão

23/04/2020   Como todo ano, reproduzo esta nota que escrevi para o dia de São Jorge, santo famoso por haver matado o dragão. Há alguns anos, a Igreja Católica retirou o nome de São Jorge da lista oficial de santos (hagiografia). São Jorge foi considerado santo lendário. Houve protestos em muitos países onde São Jorge é popular, Brasil inclusive. São Jorge é padroeiro de diversos países, como Inglaterra, e de diversas cidades como Barcelona, Londres, Gênova, Moscou, Beirute etc. A Igreja reabilitou São Jorge, mas não reabilitou o dragão, que continuou considerado animal imaginário. Ora, se São Jorge existiu, o dragão também existiu. Muita gente acredita em São Jorge, mas não acredita em dragão. Outros, principalmente no Oriente, acreditam no dragão, mas não em São Jorge. Como nunca ninguém falou em extinção de dragão, como é o caso dos dinossauros, há quem afirme que o dragão continua existindo. No Oriente, o dragão é muito popular, símbolo de poder em alguns países, ou de fertilidade, em outros. No Ocidente, o dragão é às vezes usado como símbolo do demônio. Em termos de número de habitantes, há no mundo mais gente acreditando em dragão do que em São Jorge, com todo o respeito. De minha parte, confesso minha simpatia pelo dragão, a quem homenageio no dia de hoje, junto com São Jorge, pelo respeito devido às lendas e mitos que integram a cultura dos diversos países.  

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O impeachment e seus críticos

Fortuna iuvat audacem   22/04/2020   Creio que não há mais dúvidas sobre o plano político do presidente. Bolsonaro adotou a estratégia de destruição da democracia por aproximações sucessivas e manobras de diversificação. Apoia as manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do STF. Ataca a democracia e no dia seguinte, pressionado, recua. Mas sempre avança dois passos, e recua um. Sua base de apoio, em torno de 25 a 30%, reivindica o AI-5 e a ditadura. Desde Freud e Reich a psicanalistas contemporâneos, muitos já estudaram a submissão irracional das massas a um Messias, a um tirano, como no caso fascista de Hitler e Mussolini. Até aí, nada de novo. A novidade tupiniquim é que nosso Mussolini tropical não enganou ninguém. Quase foi expulso do Exército por haver proposto botar uma bomba num quartel como reivindicação salarial. Foi feito um acordo e o então tenente foi reformado como capitão, posto que nunca exerceu na ativa. Em 27 anos de deputado, não fez nada a não ser elogiar a ditadura militar. Pertenceu 20 anos ao partido de Maluf e nunca criticou a corrupção. Afirmou que seu herói é o assassino Coronel Ustra que torturou e matou prisioneiros indefesos, homens e mulheres, inclusive grávidas. Ainda na campanha eleitoral, defendeu a tortura, armas para todos (faz lobby para a indústria de armas). Como deputado, defendeu a guerra civil para matar 30 mil, entre eles o ex-presidente FHC. É a necropolítica em ação. Sempre discriminou mulher, gay, negro e índio. Como presidente, disse “Vim para destruir, não para construir”. Começou a destruir a educação, pesquisa científica, cultura, meio ambiente, política externa independente, direitos humanos etc. Mesmo assim, contou com apoio de pessoas instruídas, como, por exemplo, a maioria dos médicos que só deixaram de apoiá-lo quando ele negou a importância do coronavirus, chamado de gripezinha, e saiu às ruas, rejeitando as normas de proteção da OMS e apoiando manifestações contra a Constituição e a Democracia. Apesar de tudo isso, ou talvez por isso mesmo, conta, além do mercado, com o apoio dos evangélicos e dos militares, hoje encastelados no poder às centenas. Sua visível paranoia o leva a demitir qualquer ministro que venha sobressair fazendo bem o seu trabalho. Foi o que ocorreu com o ex-ministro Mandetta, antigo crítico do SUS que se rendeu à necessidade real de combater a pandemia. Para evitar demissão, os outros ministros sumiram na atual crise do COVID-19, com destaque para o desaparecimento de Moro e Guedes. Em Brasília, e não só, técnicos e especialistas são afastados de cargos públicos de coordenação, supervisão e direção em favor de evangélicos e militares. Enquanto a ditadura não vem, Bolsonaro fala para sua arquibancada e cria o caos, mas isso não impede os generais do Governo de comprarem parlamentares com cargos, na velha prática do toma-lá-dá-cá. Diante desse caos, as direções dos partidos de oposição já firmaram opinião contra o pedido de impeachment, alegando que isso poderia fortalecer o presidente. Praticamente, cruzaram os braços, limitando-se a uma retórica crítica discursiva. A liderança da oposição real está nas mãos do presidente da Câmara e do Senado, ambos do DEM. Na esquerda, algumas heroicas vozes isoladas. A abertura de um processo de impeachment, que leva meses, seria um fato novo na conjuntura que iria galvanizar apoios desde a esquerda até à direita “civilizada”. Em maio ou junho próximo, provavelmente, teremos no Brasil o pico da pandemia. A votação do impeachment, se o processo fosse aberto hoje, não seria antes disso. E, muito provavelmente, o apoio ao presidente vai cair significativamente com o aumento exponencial do número de infectados e mortos pelo coronavirus. O simples pedido de impeachment pelos partidos de oposição, com o apoio de importantes organizações representativas da sociedade civil, como a OAB, ABI, Entidades Sindicais, Associações Profissionais etc., desempenharia o papel de balizador referencial da conjuntura que imporia desde já limites à insanidade do Calígula que desgoverna o país. Mesmo com 30% de apoio à barbárie, os brasileiros que se identificam com os valores da civilização não podem mais esperar um Deus Ex Machina que caia do céu e venha salvar o Brasil desse idiota irresponsável, que executa diariamente seu plano de criar o caos para daí emergir uma tirania a fim de restabelecer a ordem. Esperar que o apoio ao presidente caia para 20 ou 15% em vez de 30% é dar um tratamento aritmético à crise política. A Democracia está ameaçada e pouco se faz para suprimir a ameaça, renovada frequentemente pelos manifestantes fascistas que continuam agindo com o apoio do presidente e seu “gabinete de ódio”. Mas alguns sinais de reação efetiva começam a surgir. Um mandado de segurança impetrado por dois advogados no STF pede a limitação dos poderes do presidente. Soa isolado, não foi assumido por nenhuma instituição, mas é uma iniciativa louvável que conta com o apoio discreto da OAB. Outro sinal foi a decisão em 21/4 último do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações antidemocráticas do domingo 19/4, com a presença e o apoio do presidente. É verdade que a PGR não incluiu o nome do presidente na lista de políticos a serem investigados, mas a investigação, se for para valer, atacará políticos da base imediata de apoio a Bolsonaro. Além disso, note-se que alguns parlamentares de oposição passaram a assumir posições mais ofensivas, divergindo de suas lideranças partidárias. O processo de impeachment tem riscos. Mas risco maior corremos todos os democratas se preponderar a inação das lideranças de oposição que permanecem contidas na camisa de força de suas retóricas políticas discursivas. Risco maior corre a democracia com as manifestações em frente ao Congresso, ao STF e até mesmo ao QG do Exército pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal e o retorno da ditadura sem controle legislativo ou judiciário, tudo com a presença e o apoio explícito do presidente, que está ganhando terreno em sua caminhada autoritária. Diante do quadro atual, é lamentável que os partidos de oposição se limitem a criticar

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Os Médicos e Bolsonaro

13/04/2020   A grande maioria dos médicos votou em Bolsonaro e continuava apoiando até há pouco. Enquanto Bolsonaro defendia tortura, dizia que seu herói era um famigerado torturador, propunha armar todo mundo para uma guerra civil, discriminava gay, negro, indígena e mulher, comportava-se como um cafajeste ignorante, idiota e irresponsável, dizia impropérios para todo lado, sem critério nenhum, atacando desde a China até a esposa do presidente da França; enquanto seu governo cortou recursos da saúde, educação, pesquisa científica, meio ambiente e de toda área social, esses médicos não viram problema. Somente agora, com a negação da importância da pandemia e com seu comportamento tresloucado, uma parte dos médicos deixou de apoiar Bolsonaro. Isso diz muito sobre o Brasil.

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Autoritarismo, democracia e neoliberalismo: dupla encruzilhada

10/04/2020 Para enfrentar a pandemia, os Governos de vários países estão tomando medidas drásticas e autoritárias que se afastam do modelo democrático-liberal do estilo ocidental. O “tipo ideal” do novo modelo é sem dúvida a Hungria. Na Hungria, uma nova lei concedeu ao Primeiro Ministro Viktor Orban o poder de ignorar o Parlamento e suspender as leis existentes. Ele agora pode governar por decreto. Qualquer pessoa que divulgue informações que possam prejudicar a resposta do governo à epidemia poderá enfrentar até cinco anos de prisão. A legislação dá ampla margem ao Ministério Público para determinar o que é considerado informação distorcida ou falsa. A Hungria virou um modelo de como um país pode ficar mais autoritário. O passo inicial é acabar com a liberdade de expressão e de imprensa. Em seguida, atacar as organizações da sociedade civil. E, após calar quase todas as vozes dissonantes, atacar outros direitos da população e as eleições. Em alguns lugares, novas leis de emergência reviveram velhos temores da lei marcial. O Congresso filipino aprovou uma legislação que concedeu poderes de emergência ao presidente Rodrigo Duterte que pode mandar prender quem for encontrado na rua. Os legisladores retomaram um projeto de lei anterior que previa autorização para o presidente encampar empresas privadas. O primeiro-ministro de Israel fechou os tribunais e iniciou uma vigilância intrusiva dos cidadãos. O primeiro-ministro da Tailândia passou a impor toque de recolher e censurar a mídia. Jornalistas foram processados e intimidados por criticar a ação do governo em relação à pandemia. O Chile enviou os militares para praças públicas, antes ocupadas por manifestantes. A declaração chilena de um “estado de catástrofe” e a presença dos militares nas ruas da cidade silenciaram os protestos que abalaram o país por meses. As eleições planejadas foram canceladas. Na Bolívia, o Governo suspendeu a eleição presidencial marcada para o início de maio. Na Europa ocidental, os países democráticos também estão usando a pandemia para ampliar seu poder. Na Grã-Bretanha, por exemplo, os ministros têm o poder de deter pessoas e fechar fronteiras. Uma lei de coronavírus aprovada rapidamente no Parlamento dá ao governo o poder de deter e isolar pessoas indefinidamente, proibir reuniões públicas, incluindo protestos, e fechar portos e aeroportos, sem muita análise. A legislação concede amplos poderes aos agentes de fronteira e à polícia, o que pode levar a detenções indefinidas e reforçar as políticas contra imigrantes. “Esses são poderes que nunca seriam imagináveis em tempos de paz neste país”, são medidas “draconianas”, “corremos o risco de encontrarmo-nos facilmente em um estado perpétuo de emergência”, afirmou Silkie Carlo, diretora do Big Brother Watch, uma organização de direitos humanos (New York Times, 30/3/2020). À medida em que a pandemia de coronavírus avança no mundo e os cidadãos angustiados exigem ação, muitos governantes estão invocando poderes e conquistando autoridade praticamente ditatorial, com pouca resistência. Governos e grupos de defesa de direitos concordam que esses tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias. Os Estados precisam de novos poderes para fechar suas fronteiras, impor quarentenas e rastrear pessoas infectadas. Muitas dessas ações são protegidas pelas regras internacionais. Mas alguns governos estão usando a crise da saúde pública como pretexto para assumir novos poderes que não têm muito a ver com a pandemia, com poucas salvaguardas para evitar abuso de poder. Essas leis excepcionais estão sendo implantadas rapidamente em uma ampla gama de sistemas políticos – desde Estados autoritários como a Jordânia, Estados de Exceção como a Hungria ou democracias tradicionais como a Grã-Bretanha. E existem poucos mecanismos previstos para rescindir os poderes assim que a ameaça passar. As novas leis que ampliam a vigilância do Estado e permitem que os governos prendam indefinidamente as pessoas, violando as liberdades de reunião e expressão, poderiam também ser usadas para regular atividades da vida civil, política e econômica nas próximas décadas. Os governos que inicialmente criticaram a China por confinar milhões de cidadãos passaram a adotar medidas semelhantes. O fechamento dos tribunais de Israel pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu adiou seu próprio processo sob acusações de corrupção. Ao rastrear os movimentos das pessoas pelo controle do celular, previsto apenas em caso de terrorismo, o governo de Israel pode punir aqueles que desafiam ordens de isolamento com até seis meses de prisão. Grupos de direitos humanos alertam que os governos podem absorver mais poder enquanto seus cidadãos estão em quarentena. Eles temem que as pessoas não reconheçam os direitos que cederam até que seja tarde demais para recuperá-los. Não está claro o que acontecerá com as leis de emergência quando a crise passar. No passado, leis promulgadas apressadamente, como o Ato Patriótico em seguida aos ataques em 11 de setembro às torres gêmeas em Nova York, sobreviveram às crises que deveriam enfrentar. Com o tempo, os decretos de emergência incorporam-se aos dispositivos legais e se normalizam, afirmou Douglas Rutzen, presidente do Centro Internacional para Leis sem Fins Lucrativos, em Washington, que acompanha novas leis e decretos durante a pandemia. “É realmente fácil construir poderes de emergência”, disse Rutzen. “e é difícil desconstruí-los” (New York Times, 30/3/2020). Segundo a cientista política alemã Anna Lührmann, vice-diretora do Instituto de Variações da Democracia, entidade ligada à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, pela primeira vez neste século a maior parte dos países do mundo não é uma democracia, e essa tendência deve aumentar nos próximos anos por causa da pandemia do coronavírus. O levantamento apontou que 92 países atualmente têm regimes autoritários, contra 87 democráticos. Mesmo as chamadas democracias consolidadas, como os EUA e a maior parte da Europa Ocidental, têm restringido direitos básicos, como a liberdade de ir e vir e o direito de protestar, por causa do coronavírus. Quando a pandemia acabar, esses países poderão possivelmente ficar mais autoritários. A quantidade de protestos por democracia no mundo aumentou no ano passado. Isso vai ser afetado pela pandemia porque o movimento de resistência aos governos autoritários é basicamente de rua, de grandes protestos, o que atualmente não é possível. Por outro lado, o impacto da pandemia começa a abalar os pilares do neoliberalismo. A ideia de

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Um espectro ronda o neoliberalismo: o espectro do capitalismo de Estado

29/03/2020 Para enfrentar a crise da pandemia, a intervenção estatal, antes demonizada, está agora sendo solicitada e elogiada pelos comentaristas conservadores que anteriormente a criticavam. O capitalismo de Estado está sendo visto como solução. A crise econômica do coronavirus pressiona mudanças nessa direção. Mas isso não significa necessariamente um sistema econômico mais progressista e justo, como poderia ser o caso de uma social democracia radical ou de um socialismo. Não significa necessariamente redução da desigualdade social e desenvolvimento sustentável com justiça social. A relação entre poder e propriedade não é geralmente tocada num regime de capitalismo de Estado. Não se vislumbra um novo horizonte igualitário, uma ideologia da propriedade social e da educação. Em sua obra, principalmente em seu último livro Capital e Ideologia, o economista francês Thomas Piketty mostra que os regimes baseados na desigualdade não são irreversíveis, são construídos a partir de uma narrativa “proprietarista, empresarial e meritocrática”, de uma “sacralização quase religiosa da propriedade” que anima nossas sociedades e bloqueia a visão de uma nova utopia socialista. Pelo discurso neoliberal, as desigualdades antes eram despóticas e arbitrárias, mas hoje vivemos em democracia e as desigualdades são justificadas, porque todos teriam acesso ao mercado e à propriedade. Esse discurso da “ideologia da desigualdade” alimentou o aumento das desigualdades em todo o mundo a partir dos anos 80 do século passado. Entretanto, algumas experiências de desenvolvimento no pós guerra mostraram que foi pela igualdade e investimento em educação que se obteve a prosperidade coletiva, e não pela sacralização da propriedade e da desigualdade, que, no dizer de Piketty, impede a resolução de graves problemas como o aquecimento global e se constitui em grande perigo para as sociedades humanas. À medida em que a economia global sucumbe ao COVID-19, surge no horizonte o espectro do capitalismo de Estado. Nos EUA, os despejos de inquilinos estão sendo adiados, a folha de pagamento de algumas empresas vai ser garantida pelo Estado, e o governo Trump, entre outras medidas, obrigou a General Motors a fabricar respiradores. A reconversão industrial surge como alternativa! E no Reino Unido, já estão discutindo renacionalizar companhias aéreas em dificuldades e outras empresas. Desde a eleição de Donald Trump nos EUA e a votação do Brexit no Reino Unido, os arautos do livre mercado foram deslocados do poder ou forçados a aceitar uma doutrina diferente, em geral a de uma forma autoritária e nacionalista de neoliberalismo. O capital nacional passou a preponderar. O símbolo foi o America First de Trump. O caso brasileiro é exceção, escapa a essa lógica nacionalista e se curva às empresas multinacionais e, no plano político, aos interesses dos EUA. Na realidade, o Estado sempre está a serviço do capital privado. O capitalismo nunca fica sem o Estado, destinado a exercer funções não lucrativas de interesse público. Com a atual crise, porém, o Estado vai assumir funções econômicas antes lucrativas que, depois da pandemia, podem voltar a sê-lo. Em muitos lugares, esse capitalismo de Estado persistirá, apesar da pressão do setor privado. Um bom exemplo é o caso de Singapura, considerado agora como modelo econômico pós-Brexit para o Reino Unido. O governo de Singapura continua a ser um dos principais acionistas da indústria e comércio, possui empresas de sucesso e competitivas. Em vários outros lugares, empresas estatais são bem administradas e competitivas, contrariando a imagem tradicional de paquidermes burocráticos. Empresas estatais e agências de investimento controladas pelo Estado, como fundos soberanos, estão se multiplicando e crescendo em todo o mundo. A acumulação global de capital é impulsionada cada vez mais pelo capital centralizado nas mãos do Estado. A batalha do governo Trump com a China não é motivada por algum desejo de proteger a ordem internacional baseada em regras liberais. Pelo contrário, é uma batalha do capital nacional. A China deixou de apenas montar mercadorias e passou a projetar e produzir de forma competitiva, abalando o antigo equilíbrio da economia mundial. A grande propriedade estatal chinesa é necessária para garantir o domínio político no plano doméstico e para expandir a integração de empresas chinesas no comércio internacional. Nos EUA, isso é alcançado hoje por uma forma de nacionalismo econômico na política comercial, industrial e de investimentos, visando ao controle exclusivo das inovações científico-tecnológicas. Com exceção dos países “colonizados”, as burguesias nacionais no Ocidente estão percebendo a necessidade do Estado para competir na economia global. O Brasil – repita-se – é caso único de uma extrema direita que rejeita o nacionalismo e se coloca à disposição dos interesses norteamericanos. O patriotismo e a soberania dos militares brasileiros são de caráter exclusivamente territorial, sem nenhum conteúdo econômico. Os países estão fechando fronteiras, mas isso não impede a entrada do coronavirus, que dispensa passaporte. A solidariedade e cooperação internacional são imprescindíveis para sair da crise. O nacionalismo econômico vai ter vida curta. O mundo é um sistema interdependente. A globalização interligou as pessoas em toda parte. Não apenas no plano econômico-financeiro, dominado hoje pelo mercado financeiro. Isso é visível na comunicação eletrônica, cultural, turística e nos impactos ambientais e sociais da produção econômica. Alguns instrumentos e instituições internacionais já foram construídas em âmbito transnacional, como a ONU, a União Europeia etc. Embora não exista uma governança global efetiva, essas instituições têm peso político e às vezes força jurídica em suas recomendações, mas a soberania nacional tem se revelado um obstáculo para assumir medidas de proteção de direitos, da saúde, do meio ambiente, entre outras, que afetam toda a humanidade. Por outro lado, os interesses imperialistas frequentemente ignoram tais recomendações internacionais. No Brasil, o presidente e seus filhos perceberam que a crise econômica pode derrubar o Governo e resolveram seguir a orientação do seu guru astrólogo que mora nos EUA: a pandemia não existe. O Governo dobrou a aposta e ficou isolado, contra a Ciência, o Congresso, os Governadores, a sociedade civil e a maioria da opinião pública. Provavelmente, vai manter o apoio de seu público irracional, que deve girar hoje em torno de 25% do eleitorado. Os Governadores ensaiaram uma desobediência civil com cuidado, porque dependem de verba federal. O

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Coronavírus: um raio em céu azul?

19/03/2020 Numa visão puramente economicista, alguns decretaram o fim da globalização, ignorando sua importante dimensão social, ambiental e cultural. A pandemia, passando por cima das fronteiras nacionais, vem agora mostrar, mais uma vez, que vivemos num mundo globalizado. A crise provocada pela doença COVID-19 – abreviação de Corona Virus Disease 2019 – revela a extrema fragilidade da globalização neoliberal. Um colapso financeiro é provável. A crise atual vai jogar o mundo numa recessão e contribuir para mostrar o caráter perverso do capitalismo financeiro globalizado. O crescimento global será sensivelmente afetado. A começar pelo crescimento chinês que está caindo. Alguns já evocam uma recessão futura na China (Le Monde, 4/3/2020). O crescimento da economia chinesa entre 1983 e 2013 foi de 10,2% por ano, em média, mas uma redução ocorreu nos últimos dez anos, com “apenas” 8,1% em média entre 2008 e 2018, 6,6% em 2018 e 6,1% em 2019. O perigo da recessão global está agora ameaçando todos os países, industrializados ou não. No mundo atual, o capitalismo financeiro faz a lei que busca fortalecer o mercado e enfraquecer o Estado, as multinacionais dominam a economia nacional, a desregulamentação do mercado se tornou a regra. Tudo isso apesar de os recursos naturais do planeta estarem se esgotando e ameaçando a sobrevivência da humanidade. Na atual crise, as emissões globais de gases de efeito estufa e todas as outras poluições caem acentuadamente sob o efeito da queda acentuada na produção global. Nos EUA e na China, por exemplo, já é visível a diminuição da poluição atmosférica. Essa queda pode durar alguns meses e se recuperar ou produzir um colapso financeiro. Isso causaria ainda mais exclusão, desemprego e angústia que superariam os eventuais benefícios ecológicos, pois uma pandemia global afetaria fortemente as populações mais pobres. Assim, dizer que o coronavirus é revolucionário, como afirmaram alguns, é uma ideia infeliz, pois a desigualdade social vai provavelmente aumentar. No Brasil, o Governo anunciou que vai autorizar as empresas a cortarem salário pela metade! Um coronavírus teria um impacto econômico mais limitado em um mundo onde as finanças estivessem sob controle público, onde predominasse o bem comum, e não o interesse particular, onde a maioria das produções essenciais (incluindo energia) fosse realocada, onde a sobriedade material e energética suplantasse o consumismo, e onde o domínio econômico e político das multinacionais fosse controlado por uma política de sustentabilidade socioambiental. No contexto de globalização financeira neoliberal, o coronavírus caiu como um raio em céu azul, para lembrar a famosa frase de Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Assim, a crise atual pode revelar as fraquezas extremas da globalização neoliberal e contribuir para sua condenação. A partir de agora, os chamados liberais, se forem honestos, vão admitir a importância do Estado. O mercado não resolve os problemas trazidos pela pandemia. A iniciativa privada vai depender das políticas públicas. As empresas não propõem nenhuma medida para combater os danos produzidos pela COVID-19. Estão acostumadas com um capitalismo que privatiza os lucros e socializa os prejuízos. A base social irracional do bolsonarismo, principalmente os evangélicos neopentecostais e católicos de extrema direita, se forem honestos, terão de reconhecer a importância da ciência e da tecnologia. Se caírem doentes, não vão recorrer ao fundamentalismo religioso para afastar esse vírus “trazidos pelo demônio”, como afirmam diversos pastores. E os que apoiaram o bolsonarismo por interesse, como o mercado e os militares, terão de rever seu apoio a um presidente que, pessoalmente, é um cafajeste repugnante e, politicamente, um destruidor das normas democráticas visando à implantação de uma ditadura. A pandemia provocada pelo COVID-19 tem um aspecto didático. Descortinou a fragilidade da globalização capitalista com dominância financeira, que desregula o mercado e reduz ao máximo o papel do Estado. No Brasil, caso único no mundo, o Estado está proibido de investir. A lei de teto dos gastos cortou recursos da educação, saúde, pesquisa científica, cultura, meio ambiente etc. O Brasil é talvez o único país que declarou guerra a seus cientistas, professores e artistas. Como o setor privado não investe – por várias razões, inclusive por falta de demanda face aos cortes do Governo no poder aquisitivo da população – estávamos caindo cada vez mais em recessão que a crise provocada pelo coronavirus pode agora transformar em depressão econômica. Isso se agrava ainda mais num país como o Brasil que assassina florestas, destrói o meio ambiente, em nome de uma ideologia predatória de crescimento. Enquanto continuarmos devastando a Amazônia e os locais onde a vida selvagem se reproduz, os seres humanos podem ser gravemente contaminados. Essa possível origem da pandemia está ganhando cada vez mais adeptos, apesar de a Organização Mundial de Saúde ter afirmado que a origem do vírus ainda não está determinada. A crise atual provocada pelo coronavírus não coloca em xeque apenas o capitalismo, modo de produção dominante no mundo. Afinal, a produção econômica do chamado socialismo realmente existente foi muito poluidora. A tal ponto que os EUA só concordaram em 1988 com a realização da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento porque a situação ambiental dos países então socialistas era muito pior. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, os EUA tentaram pisar no freio, mas não conseguiram impedir a realização da Conferência Rio-92. Diferentemente da última crise global em 2008, que tinha mais um caráter financeiro, o impacto do coronavirus aponta para uma crise de civilização, não apenas uma crise econômica. Mostra a necessidade de um novo modo de vida, não apenas de produção. Um modo de vida baseado na cooperação e solidariedade, não mais no individualismo e no mercado. Um desenvolvimento baseado na sustentabilidade socioambiental e não na visão atual de um crescimento puramente quantitativo que não leva em conta o bem estar da maioria. A doença COVID-19, mais cedo ou mais tarde, será controlada, deixando em sua esteira a perda de vidas humanas e uma assustadora crise econômica. Mas um vírus muito mais perigoso poderá continuar a ceifar vidas e produzir miséria: o vírus do neoliberalismo. Seu enfraquecimento já visível é um dos grandes impactos

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Ferreira Gullar ou André Gide?

12/03/2020 Assisti a um bom programa sobre Ferreira Gullar no canal Curta. A única coisa que me incomodou é que continuam insistindo na frase – que deu o título do documentário – atribuída a Ferreira Gullar e que na verdade não é dele. O próprio Ferreira Gullar, num artigo antigo publicado na Folha de São Paulo, citou o autor da frase “A arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida”. O autor foi o escritor francês André Gide. Em algum momento, alguém atribuiu essa frase ao próprio Ferreira Gullar que talvez tenha deixado correr o equívoco, não se sabe.

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‘Fake news’: crença, razão e barbárie

06/03/2020 A aceitação acrítica das fake news é um problema sério da contemporaneidade, que enfrenta cada vez mais o desafio do que se passou a chamar pós-verdade. É cada vez maior o número de pessoas que não estão interessadas em saber se a informação recebida corresponde ou não à realidade. Essas pessoas aferram-se a opiniões baseadas em suas crenças. A crença tem uma conotação religiosa, espiritual, que se diferencia de conclusões ou previsões baseadas em fatos da realidade. Posso afirmar que, se eu largar um objeto, ele cairá no chão. O mesmo ocorrerá se outra pessoa fizer a mesma experiência. Não preciso conhecer a física newtoniana que explica o fenômeno, muito menos sua inaplicabilidade no mundo infinitesimal onde muda a coisa observada se mudar o observador, segundo demonstrou a física quântica. Assim, não há crença se eu afirmo que a 100 graus a água ferve. Ou que, girando a maçaneta, a porta abre, se não estiver trancada. Trata-se de uma certeza baseada em dados da realidade. Tampouco haverá crença no caso do dinheiro aceito por todos na sociedade. Estamos aqui diante de um caso de confiança – trust – em que todos aceitam ou têm de aceitar o dinheiro como meio de pagamento por força legal, baseada em costumes tradicionais. Na linguagem de Marx, dinheiro é o “equivalente universal”. É comum a afirmação de que a crença é uma atitude pré-moderna, pré-científica, embora, na antiguidade grega, Platão já opusesse a opinião – doxa – ao verdadeiro conhecimento – episteme. Na era moderna, tornou-se célebre o conceito do filósofo e sociólogo alemão Max Weber sobre o “desencantamento do mundo”. O homem moderno passou a tomar atitudes em função da razão, em vez de crenças, tradições e magia. O mundo deixa de ser explicado por forças sobrenaturais que podem ser manipuladas magicamente para ser controlado apenas através da ciência e da tecnologia. É a civilização baseada no iluminismo, na razão, no debate, na argumentação, que está sendo agredida e ameaçada pela aceitação generalizada das fake news. A opinião e a crença são irracionais porque dispensam a verificação baseada em fatos da realidade. Notícia falsa não é uma invenção da modernidade. Mas, com os modernos meios de comunicação de massa, todas as notícias se expandiram e se tornaram instantâneas, as verdadeiras e as falsas. Toda sociedade tem seus mitos de fundação. Esses mitos têm enorme importância simbólica e garantem a coesão social e a integração cultural de uma nação, cidade, aldeia, tribo ou bando. Mas podem também ser considerados fake news de natureza ideológica, religiosa e cultural. Somente com a revolução científica do século XVI em diante é que as “verdades” passaram a ser construídas a partir de fatos. Agora, porém, estamos vendo um retrocesso importante: muitos abandonam o fato e se refugiam na opinião. O que é chamado atualmente de “pós-verdade” guarda semelhança com o longo período histórico da “pré-verdade” em que os fatos eram desprezados como fonte de conceitos ou opinião: prevaleciam as lendas, os mitos e os dogmas. Para compreender isso, surgem várias explicações. Há quem veja a influência da mídia “fazendo a cabeça” das pessoas. Cabe aqui um paralelo com a máquina de propaganda nazista na Alemanha dos anos 30 do século passado. O regime nazista propagou aos quatro ventos que os judeus eram culpados de todos os problemas do país. Os judeus tornaram-se o principal bode expiatório, ao lado de socialistas, comunistas e ciganos, todos dizimados no massacre genocida de 6 milhões de pessoas. Ressalvadas as grandes diferenças históricas, o método utilizado pela mídia brasileira a partir dos anos 2.000 foi também o de apontar um bode expiatório responsável por tudo. Durante anos, a mídia martelou que o PT era o culpado de todos os males que afligem o país. A elite brasileira, por meio da mídia, massacrou a imagem do PT junto à população, tentando apagar que o Brasil, sob o governo Lula, tornou-se a sétima economia do mundo, o desemprego caiu para 6%, a desigualdade social diminuiu, todos os índices de qualidade de vida melhoraram – educação, saúde, cultura, meio ambiente etc. – e o Brasil tornou-se respeitado internacionalmente. Outra linha de análise prioriza o interesse de classe. O ódio de segmentos da classe média a Lula se deveria ao fato de tais segmentos terem visto as classes de alta renda se enriquecerem, os pobres melhorarem de vida, enquanto a classe média – que quer ser rica e rejeita os pobres – ficou parada vendo os ricos se afastarem e os pobres se aproximarem. São exemplos característicos reclamações tais como “a empregada doméstica ficou mais cara”, “Congonhas está cheio de pobre, parece uma Rodoviária” etc. Todo o discurso que associou o PT à corrupção foi usado como manobra instrumental da luta pelo poder. Toda a corrupção anterior e posterior foi ignorada. O ex-presidente Temer, legítimo representante da tradicional corrupção institucional, governou com tranquilidade. A classe média e os ricos não bateram panela nem foram às ruas. O perigo da redistribuição de renda estava afastado com o golpe do impeachment da então presidenta Dilma. Assim, a informação falsa é aceita porque corresponde a opiniões e sentimentos previamente existentes. Ela vem confirmar o que a pessoa acha, confirma uma opinião que não se preocupa em saber se está ou não ancorada na realidade. Em suma, o sucesso das fake news se deve ao fato de elas caírem em solo fértil, previamente fecundado para acreditar em qualquer informação que fortaleça uma opinião irracional previamente existente. Em contrapartida, os argumentos racionais nem sempre ou raramente são eficazes. Os bolsominions em geral são tangidos por palavras de ordem e declarações autoritárias, misóginas, homofóbicas, racistas, de um presidente que, no plano pessoal, é um cafajeste repugnante e, no plano político, um candidato a ditador que está corroendo a cada dia as regras e instituições democráticas. Para isso, conta com o aplauso de sua base de apoio que aceita a tirania, quer acabar com a separação tripartite de poder, fechando o Congresso e o Supremo Tribunal. A separação de poder é vista como complexa e coloca contradições e conflitos que, percebidos como anarquia, obrigariam

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Estupidez x Inteligência

12/02/2020   Para refletir: “Não há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode vestir todas as roupas da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem” (Robert Musil, Sobre A Estupidez).

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Industriais contra a indústria

09/02/2020   O silêncio da indústria a respeito da desindustrialização galopante do Brasil merecia maior destaque na mídia, que silencia sobre esse estranho silêncio da Indústria brasileira. A relação de manufaturados nas exportações totais chegou a atingir 59%, depois baixou para 40%. Nos anos 1980, o peso da indústria de transformação no PIB era de 33%, depois caiu para 16%. Nos últimos cinco anos, o comércio exterior desse setor passou de um superávit para um déficit de 65 bilhões de dólares. Um brado de alerta foi lançado pelo Presidente do Clube de Engenharia do RJ, Pedro Celestino, que, em entrevista aos jornalistas Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, denunciou que “a Indústria assiste em silêncio à destruição do país”. Afirmou que a Petrobras vem sendo depenada e o BNDES está sendo destruído. “Quem financiará o desenvolvimento industrial brasileiro?”, indagou ele, ao estranhar o “silêncio estrondoso da indústria”. Afinal, em torno da Petrobras existem mais de 5 mil empresas privadas que empregam centenas de milhares de trabalhadores. Esse comentário me lembrou a atitude dos intelectuais de esquerda e do Partido Comunista no início dos anos 60 do século passado. Eles decidiram o que era ou não de interesse da “burguesia nacional” que ignorou suas análises e apoiou o golpe militar de 64. Boa parte da indústria estava associada ao capital estrangeiro e, ainda em plena Guerra Fria, a chamada burguesia nacional morria de medo do fantasma do comunismo. A questão que se põe agora é intrigante. A Federação de Indústrias de São Paulo – FIESP – apoia o governo Bolsonaro, certamente por interesse político de seu presidente Paulo Skaf. E os industriais paulistas? Não falam nada? Todos viraram rentistas? A desindustrialização elimina indústrias e empregos e não se viu até agora no mundo industrial nenhuma reação significativa a essa política econômica antinacional. Em outras Federações de Indústria, como a FIRJAN, no Rio de Janeiro, por exemplo, reina um silêncio ensurdecedor. Os industriais brasileiros assistem calados à destruição da indústria nacional. Estão todos ganhando dinheiro no mercado financeiro? Não se dedicam mais à atividade produtiva? A crise na China decorrente do coronavírus pode impactar a importação de componentes e insumos, bem como a exportação de alguns produtos. Mas isso seria um agravante e não a causa do esvaziamento da indústria brasileira, como já começou a ser noticiado pela mídia (O Globo, 7/2/2020). Ao comentar a queda livre da indústria brasileira, alguns jornalistas afirmam que começa a surgir uma oposição ao comado da FIESP e da FIRJAN. Mas pouca coisa existe de concreto, até agora, ressaltando-se o artigo do ex-presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva (Folha, 21/1/2020), com severas críticas a Paulo Skaf, condenando a partidarização da entidade e a “morte anunciada” da indústria. Embora o surgimento dessa oposição tenha lógica, nem tudo o que é lógico é real, e nem tudo o que é real é lógico. Paulo Skaf conta ainda com o apoio de mais de cem dos 132 sindicatos patronais que a entidade representa (O Globo, 6/2/2020). O caso da EMBRAER é sintomático. Foi absorvida pela Boeing que poderá, se quiser, fechar a fábrica no Brasil para reabrir nos EUA ou na Ásia, onde a mão de obra é mais barata. Da EMBRAER depende toda uma indústria de autopeças que iria desaparecer se realmente essa transferência vier a ocorrer no futuro. Trump defende a indústria americana. Bolsonaro também. Este é um ponto comum entre ambos. Guedes quer esvaziar os bancos públicos que financiam a empresa nacional e privatizar a empresa pública nacional em favor do capital estrangeiro. A História mostra que, sem investimento público, não existe desenvolvimento. Todo país tem um banco público que financia as empresas nacionais que investem no próprio país ou no exterior. Empresas americanas, europeias, chinesas, indianas etc. recebem financiamento público e investem no mundo inteiro. O exemplo mais conhecido é o Eximbank, dos EUA, mas muitos outros países têm agências semelhantes, como o nosso BNDES. No Brasil, uma ou outra empresa brasileira investiu em Moçambique, Angola e Cuba, três países pequenos, e isso foi explorado e considerado corrupção. O presidente Bolsonaro denunciou a “caixa preta” do BNDES que contratou uma auditoria nos EUA. A auditoria concluiu que não havia nenhuma irregularidade. A única corrupção, ainda inexplicada, é que a auditoria acabou custando 3 vezes mais caro do que o previsto inicialmente no contrato! Custou 48 milhões de reais (Estadão, 24/1/2020), ou 42,7 milhões, segundo o próprio presidente do BNDES, Gustavo Montezano (G1, 29/1/2020). A partir do golpe do impeachment em 2016, as elites brasileiras assumiram o modelo financeiro-rentista e o projeto de industrialização nacional foi abandonado, em nome da teoria das “vantagens comparativas “. As classes dominantes “naturalizaram” o sistema extrativista agroexportador que socializa os prejuízos- principalmente a destruição do meio ambiente- e privatiza os lucros obtidos com a exportação de produtos primários de baixo valor agregado. A ideologia neoliberal divulgada aos quatro ventos pela mídia ganhou corações e mentes, mas provoca necessariamente a estagnação com forte perda de empregos industriais, agravada pelo processo de automatização e robotização em curso. Essa perda não é compensada pelo aumento de ofertas de emprego no setor de serviços. Esse quadro é agravado pela política neoliberal de extrema direita do governo Bolsonaro que pretende privatizar e transformar em mercadoria bens públicos essenciais. Essa receita certa do desastre é coroada pela cereja do bolo: a proibição de investimento público do Estado, sem o que não há desenvolvimento econômico. Assim, ao lado da destruição da educação, pesquisa científica, saúde, cultura, meio ambiente, direitos humanos, política externa independente, a indústria nacional está sendo estrangulada e o capital deixa de ser produtivo, deixa de criar riqueza e emprego, e foge para o mercado financeiro. Sinal dos tempos.

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O Documentário Indústria Americana vai ganhar o Oscar?

27/01/2020   O documentário Indústria Americana, financiado pelo casal Obama, disputa o Oscar de melhor documentário. Vou torcer pelo documentário brasileiro Democracia em Vertigem, mas acho que Indústria Americana deve ganhar por mostrar a superioridade do sistema americano de produção em relação ao chinês. Ou seja, faz propaganda americana. Um industrial chinês compra uma fábrica que havia fechado em Ohio, dá emprego aos trabalhadores americanos desempregados e traz da China centenas de operários. Ele quer que essa fábrica nos EUA tenha a mesma produtividade que sua fábrica na China, onde os operários trabalham 12 horas por dia, têm apenas dois dias de folga por mês, e as horas extras são obrigatórias. Além do choque cultural – cantoria dos operários de manhã cedo em formação militar, por exemplo – o industrial chinês faz pesada campanha para impedir a sindicalização dos operários, perseguindo os sindicalizados. Não tenho nenhuma simpatia pelo capitalismo americano, mas é inevitável pensar que o imperialismo chinês, se vier, será pior do que o americano.

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Evangélicos e fascistas irmanados em Bolsonaro

21/01/2020   Segundo previsão dos estatísticos, em 2032 a maioria da população brasileira será evangélica. Isso constitui uma transformação importante para um país que já foi chamado de “maior país católico do mundo”. Não se trata apenas de um aumento quantitativo na população. Esse incremento numérico se faz acompanhar de uma participação maior na política e no poder. A “longa jornada” para o Poder já foi iniciada. Ao mesmo tempo, observa-se o aumento do pluralismo religioso. Entre 1970 e 2010, os “sem religião” saltaram de 702 mil para 15,3 milhões de pessoas (José Eustáquio Alves – ENCE/IBGE, Carta Maior, 22/5/2019). No atual Governo, importantes postos no aparelho de Estado já estão ocupados por evangélicos. Não se trata apenas da ministra Damaris. Em vários Ministérios e Agências Federais, cargos de diretoria são oferecidos a pastores evangélicos que indicam para ocupá-los seus “irmãos de fé”, ou seja, seus fiéis amigos da igreja. Essa presença forte da religião na política ameaça os princípios republicanos do Estado laico. A bem da verdade, os governos Lula e Dilma também foram apoiados por grupos neopentecostais. O governo Dilma transferiu para comunidades terapêuticas evangélicas recursos públicos destinados ao combate às drogas, medida que foi questionada pelo Conselho Federal de Psicologia na época (Entrevista da pesquisadora Maria das Dores Campos Machado, Estadão, 10/1/2020). Tudo indica que esses grupos religiosos apoiam quem está no poder e abre espaços para a ampliação de sua influência. Mas o governo Bolsonaro operou uma “mudança paradigmática” na relação com os evangélicos. Ministros e importantes cargos de segundo escalão foram nomeados após indicação ou consulta a lideranças evangélicas. O próprio presidente se diz evangélico e anunciou transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém atendendo a pedido do governo de Israel e também por solicitação de igrejas evangélicas. Teve de recuar, mas não desistiu da ideia. “Bolsonaro não tem outra opção, ele vai mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. Se não mudar a embaixada, esquece o apoio dos evangélicos”, afirmou a Pastora Jane Silva, presidente da Comunidade Internacional Brasil e Israel (Carta Maior, 13/8/2019). Mas Bolsonaro sofre forte pressão contrária à transferência da embaixada, principalmente dos ruralistas, que temem prejuízo para a economia brasileira, e dos militares, cuja tradição positivista não se harmoniza com os dogmas religiosos. Afinal, como dizem os palestinos, o conflito entre Israel e Palestina é territorial e político, não é religioso. E o general Hamilton Mourão chegou a dizer que essa medida pode transferir “a questão do terrorismo internacional” para o Brasil (Folha de São Paulo, 23/11/2018). No mesmo momento em que os evangélicos ocupam crescentes espaços de poder, o Governo Bolsonaro implementa uma política cultural de natureza nazista. O ponto culminante, até agora, foi a Declaração do ex Secretário de Cultura, Roberto Alvim, de conteúdo e estética nazistas, reproduzindo discurso de Goebbels, o grande idealizador da propaganda nazista na Alemanha de Hitler. A prioridade do Secretário Alvim era desencadear no Brasil uma Guerra Cultural contra valores e princípios de direitos humanos, consagrados na Constituição, e por ele considerados comunistas. Desta vez, se deu mal. A reprodução do discurso de Goebbels causou escândalo na sociedade. Os presidentes da Câmara e do Senado pediram a demissão imediata do Secretário de Cultura. A Mídia em geral reagiu indignada. E last, but not least, o Embaixador de Israel telefonou a Bolsonaro para protestar e pedir a exoneração do Secretário. Ficou claro que um limite política e moralmente intransponível foi ultrapassado. Se deixado solto, o Secretário Alvim e sua guerra cultural desembocariam um dia na proposta de construção de câmaras de gás, ou algo similar. Esse perigo não está afastado, mas – ao que tudo indica – os judeus seriam poupados, tendo em vista o apoio de Bolsonaro ao governo de Trump e de Israel. Os candidatos ao extermínio seriam os socialistas, comunistas e socialdemocratas, que insistem na ideia, estranha ao neoliberalismo, de lutar pela justiça social e pela redução da desigualdade social. O Secretário Alvim não estava só. Vejam a seguinte Declaração estapafúrdia do atual Ministro da Educação, logo após tomar posse: “Os comunistas estão no topo do país. Eles são o topo das organizações financeiras. Eles são os donos dos jornais. Eles são os donos das grandes empresas. Eles são os donos dos monopólios” (The Intercept Brasil, João Filho, 14/4/2019). O fascismo brasileiro está substituindo a demonização nazista dos judeus pela demonização dos comunistas. E, no Brasil, até os social-democratas são chamados de comunistas. O Secretário de Cultura foi demitido, mas o projeto de guerra cultural vai continuar. É projeto do Bolsonaro e de seu guru, aquele astrólogo que mora nos EUA. Na realidade, a guerra aos “comunistas” é a guerra à democracia, à diferença, aos direitos humanos, à inteligência, à arte e à cultura. É a guerra contra a educação, a pesquisa científica, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a política externa independente. Os evangélicos aceitaram ser soldados dessa guerra. Querem impor os valores morais de sua religião à toda a sociedade, crentes ou não. Por isso, em nome de seus princípios religiosos, apoiam e participam dessa política fascista que sufoca a liberdade de expressão cultural e artística. Evangélico não é nazista, nazista não é evangélico. Mas, ao apoiarem o mesmo Governo e a mesma política autoritária, desenvolvem na prática uma aliança objetiva. Apoiam o projeto fascista de implantar uma tirania em troca da consolidação de seus princípios morais transformados em lei erga omnes, obrigatória a todos.   Assim, os evangélicos abocanham cargos e usufruem do poder sabendo que são cúmplices dos conteúdos e resultados da ação do Governo. Jesus Cristo morreu torturado, e os evangélicos apoiam o Presidente que defende a tortura. Cristo pregou a paz, e os evangélicos defendem o Presidente que propõe quatro armas para cada um e defende a guerra civil. Cristo pregou o amor a todos, e os evangélicos apoiam o Presidente que discrimina gays, índios, negros e mulheres. Os evangélicos se dizem comprometidos com a verdade, e apoiam um Presidente que utiliza a mentira e fake news como instrumento de ação política. O grupo mais significativo dos

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Desigualdade global está fora de controle, diz estudo

20/01/2020   Um grupo de apenas 2.153 indivíduos no mundo com patrimônio superior a US$ 1 bilhão detém mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas, o equivalente a 60% da população global, conforme indica um novo levantamento da rede de organizações não-governamentais Oxfam. O estudo chega à conclusão de que o número de bilionários dobrou na última década e a desigualdade econômica está fora de controle.  

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