Relatório Ambiental
CRIME E NATUREZAA Lei de Crimes Ambientais:perspectivas em conflito erecomendações para sua implantaçãoRelatório FinalSetembro, 1999Liszt VieiraCOORDENADOR GERALSumárioIntrodução, 5 1. Antecedentes da Lei de Crimes Ambientais, 6 Sanção, 7Medidas Provisórias, 8Inovações Da Lei, 10Empresas, 12Poluição, 12Flora E Fauna, 13Administradores, 14Penas, 15 2. A Visão da Justiça, 163. A Visão Ambientalista, 24 Percepção E Avaliação Da Lei Pelos Ambientalistas, 26Conclusões E Recomendações Na Percepção Dos Ambientalistas, 31 4. A Visão Econômica: a cidade, o campo e a Amazônia, 32 A Lei E Os Empresários Urbanos, 32Os Empresários E Estudiosos Do Campo, 37A Lei E A Preservação Da Amazônia, 41 5. A Visão dos Agentes Públicos, 45 Aspectos Positivos, 45Aspectos Negativos, 46Conclusões E Recomendações Dos Agentes Públicos, 48 6. A Divulgação da Lei e a Imprensa, 49 O Conhecimento Da Lei Nos Meios Jornalísticos, 49A Divulgação Da Lei, 51Conclusões E Recomendações, 52 7. Quadro Síntese, 53 8. Considerações Gerais, 55 9. O Estudo Databrasil – resultados e sugestões, 65 10. Orientação Metodológica, 69 Introdução Este Relatório foi estruturado de modo a relembrar, inicialmente, e como pano de fundo, uma breve história da Lei dos Crimes Ambientais. Em seguida, apresenta-se uma síntese do pensamento de parcela significativa das elites brasileiras, registrando-se os principais resultados e recomendações derivados do estudo empreendido pelo Databrasil. Os demais capítulos do Relatório identificam o que chamamos de visão de diferentes categorias de atores sociais sobre a Lei de Crimes Ambientais, categorias definidas a partir da área de sua atuação, a saber:· Área jurídica – desembargadores, juízes, promotores, defensores públicos; – Área ambientalista – representantes de organizações não governamentais;– Área empresarial – representantes de entidades de classe;– Área governamental – representantes de órgãos públicos, executores da política ambiental;– Área de jornalismo ambiental – jornalistas e editores A opinião de cada um desses grupos é reproduzida segundo os critérios de fidedignidade e de não identificação nominal das pessoas entrevistadas pelo Databrasil. Nos casos em que identificamos o entrevistado, e destacamos a opinião emitida, esta, em geral, já é de conhecimento público e/ou já foi objeto de divulgação. Os textos destacados em itálico são extraídos de transcrições de fitas gravadas durante as entrevistas e as discussões em grupo, gravações estas realizadas com a concordância dos presentes. No Volume II deste Relatório, estão anexados alguns textos e publicações sobre a questão em pauta.1. Antecedentes da Lei de Crimes Ambientais O relator da Comissão de juristas encarregada de elaborar o ante-projeto que redundou na Lei 9605/98, Antonio Herman Benjamin, localiza em meados da década de 60 o surgimento de várias Leis promulgadas com o objetivo de regrar diferentes aspectos e atividades com interface ambiental: o Código Florestal , de 1965; a Lei de Proteção à Fauna , o Código de Pesca e o Código de Mineração , todos de 1967; a Lei da Responsabilidade por Danos Nucleares , de 1977; a Lei do Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição , de 1980 e a Lei de Agrotóxicos, de 1989 . Mas, segundo o autor, foi mesmo com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente , de 1981, que verdadeiramente tem início a proteção ambiental no Brasil, com o legislador ultrapassando a abordagem dispersa que caracterizava a legislação até então promulgada. A Lei não se limitou a estabelecer princípios, objetivos e instrumentos da política nacional do meio ambiente, mas incorporou de vez, no ordenamento jurídico brasileiro, o estudo de impacto ambiental. Ademais, instituiu um regime de responsabilidade civil objetiva para o dano ambiental e deu ao Ministério Público legitimação para agir nessa matéria . Um importante estágio nessa evolução legal foi a promulgação, em 1988, após a redemocratização do país, de uma nova Constituição que, entre suas inovações, trouxe todo um capítulo sobre o meio ambiente , além de prever a função sócio-ambiental da propriedade .Sanção Sob vários ângulos, esses tipos penais estavam abertos à crítica. Primeiro, pelo seu caráter assistemático, o que fazia com que, as condutas contra a fauna fossem previstas como crime e apenadas com rigor (com proibição de fiança, por exemplo), enquanto aquelas contra a flora não passavam de contravenções, pouco importando tivesse o infrator derrubado um ou 100.000 hectares de floresta nativa. Além disso, como conseqüência da má redação de vários dispositivos e da visão fragmentada do meio ambiente que adotavam, não era difícil aos réus conseguirem sua absolvição. Terceiro, quase todas as figuras penais eram dolosas.Em 1984, um projeto de reforma do Código Penal, já incluía um capítulo dos crimes ambientais. Esse projeto de reforma do Código Penal morreu. Na seqüência, o Secretário de meio ambiente do governo Collor, José Lutzemberg, formou uma comissão para elaborar o código ambiental. Para ajudá-la, foi encomendado um estudo à OAB de São Paulo. Em seguida, o Ministro Nelson Jobim, formou uma comissão para elaborar um novo projeto onde, além dos representantes de São Paulo, foram integrados representantes da OAB do Rio de Janeiro, de Santa Catarina, de associações de engenheiros etc. O Projeto foi então encaminhado pelo Executivo como substitutivo a um projeto de Lei originado do Instituto BrasiIeiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis – IBAMA – que tratava das sanções administrativas, mas que incluía também crimes ambientais – e tinha como relator o Senador Lúcio Alcântara. O então Ministro da Justiça pediu que o senador, em seu relatório, substituísse a parte penal do texto original, o que ocorreu, tendo o senador introduzido também alterações na parte administrativa do projeto do IBAMA. O Projeto teve uma difícil, mas razoavelmente rápida, tramitação legislativa. Aprovado sem grandes modificações no Senado, o texto da Comissão perdeu, entretanto, na Câmara dos Deputados, por pressão de uma coalizão de industriais, mineradores, madeireiros, e proprietários rurais, vários de seus dispositivos originais. Posteriormente, por vetos presidenciais, a Lei foi ainda mais enfraquecida. Medidas Provisórias No estado de São Paulo, pioneiro em controle de poluição, a exigência de licença ambiental vinha desde 1976, ano em que foi promulgada a Lei Estadual n. 997, de 31.5.76. Com a promulgação da Lei 9.605/98, com seus 82 artigos, a CETESB e a Secretaria do Meio Ambiente, preocupadas com
Direito Ambiental
Estruturado em torno dos direitos individuais, o ordenamento jurídico brasileiro sempre foi incapaz de dar conta das novas necessidades e demandas sociais que eclodiram a partir da Segunda metade do século, com a aceleração do processo de urbanização e industrialização. O modelo selvagem de desenvolvimento adotado em nosso país levou à marginalização social da maioria dos brasileiros ao mesmo tempo em que destruía o seu meio ambiente. A busca desenfreada da quantidade de lucros provocou a degradação da qualidade de vida, deteriorando os recurso naturais que poderiam ser utilizados em benefício da maioria da população. Nestas condições os chamados interesses difusos, como o direito ao meio ambiente sadio, eram tratados no Direito Brasileiro apenas por via reflexa e o cidadão encontrava dificuldades intransponíveis para enfrentar sozinho o grande poderio econômico e político das empresas poluidoras, privadas ou estatais. O avanço das lutas democráticas que se seguiram ao regime militar ampliou a consciência dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos, fortalecendo os movimentos sociais da cidadania que passam a reconhecer, identificar ou mesmo criar direitos até então inexistentes ou inadmissíveis. Encontram-se aí os chamados interesses difusos ou coletivos, como o direito ao meio ambiente, que acabou se incorporando à nossa legislação. A própria Constituição Brasileira incorpora o moderno princípio que considera o meio ambiente não coo um direito apenas individual ou público, mas como um bem de uso comum do povo. Esta concepção se harmoniza com as novas perspectivas do direito ambiental que coloca à disposição dos cidadãos mecanismos e instrumentos trans-individuais de defesa dos interesses difusos, tais como a Ação Civil Pública, o Inquérito Civil, a legitimação das associações ambientalistas para ingressarem em Juízo, a obrigatoriedade dos estudos prévios de impacto ambiental, as Curadorias de Meio Ambiente e outros instrumentos que causaram profundas modificações na legislação brasileira. Não obstante os significativos avanços na legislação, estas conquistas do Direito Ambiental não vêm se efetivando na prática com a intensidade necessária, face a insensibilidade e incapacidade do Estado para enfrentar os novos desafios. Prisioneiros de escusos interesses econômicos e políticos, os agentes do Poder Público não traduziram em política ambiental efetiva os princípios e normas vigentes na legislação. O próprio Poder Judiciário, estruturando tradicionalmente em torno de uma concepção individualista do Direito, não se mostra apto para acompanhar e responder o ritmo crescente das demandas sociais. O despreparo e timidez da grande maioria de seus quadros e a falência de suas estruturas tradicionais provocam a ineficiência, ou mesmo a ausência, do Poder Judiciário, impedindo a aplicação das normas de proteção ambiental ou distorcendo a sua interpretação. Finalmente, é forçoso reconhecer que a sociedade civil tem pressionado pouco o Poder Judiciário. As associações de defesa ambiental têm utilizado de forma insuficiente a Ação Civil Pública, talvez por falta de informação ou descrença na Justiça. Entretanto, é inegável que um número maior de ações mais claras e definidas de cumprimento da legislação ambiental. Por outro lado, é hoje entendimento universal que o Direito Ambiental não pode se resumir a um sistema jurídico nacional. A natureza não conhece fronteiras, pois as agressões ambientais praticadas num país freqüentemente provocam impactos sociais e ambientais que transcendem seus limites territoriais. Torna-se imperioso, portanto, o estabelecimento de normas e padrões internacionais de proteção ambiental. O conceito tradicional de soberania há que ser repensado para possibilitar novas relações internacionais baseadas na solidariedade e cooperação de forma a garantir a defesa do meio ambiente em escala planetária, sem prejuízo dos legítimos interesses nacionais. Para tornar exeqüível essa possibilidade, é necessário, como as ONGs em todo o mundo vêm propondo, a criação de uma entidade ambiental internacional no seio das Nações Unidas, a exemplo da Organização Mundial de Saúde e Organização Internacional do Trabalho. As conquistas nacionais ou internacionais do Direito Ambiental não devem ocultar o fato de que a lei não é um ponto final, mas um instrumento de luta dos movimentos sociais que, na sua dinâmica concreta, vão criando novas demandas que muitas vezes tornam obsoletas as leis existentes, exigindo a criação de novas normas legais. Assim, é cada vez mais expressivo o número de pessoas que compreendem que democrático não é o país que apenas consolida leis democráticas, mas aquele que possui mecanismos para que a sociedade possa auto-instituir-se de forma permanente. Presidente do Instituto de Ecologia e Desenvolvimento e membro da Coordenação Nacional do Fórum das ONGs Brasileiras para a ECO 92. JB – Opinião – 23/12/91
Glauber Rocha e a Linha Vermelha
“No Brasil o que a lei dá o parágrafo tira.” Esta frase genial de Glauber Rocha cai como uma luva a respeito dos projeto da Linha Vermelha. A comissão Estadual do Controle Ambiental (Ceca), presidida pelo presidente da Feema, Adir Bem Kaus, dispensou a elaboração do estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e do respectivo relatório de impacto ambiental (Rima) para a construção da obra viária que ficou conhecida como Linha Vermelha. O fundamento legal da decisão foi o parágrafo 2º do Art. 1º da Lei estadual n.º 1.356’88, quer permite o licenciamento de projetos de ampliação sem prévia elaboração do EIA/Rima. É curioso que, numa lei toda ela voltada para garantir a exigência do Rima, o legislador haja incluído um parágrafo absolutamente inconstitucional que, pelo menos na interpretação da Ceca, neutraliza todos os outros parágrafos e artigos da lei. Pouco importam aqui as intenções originais de seu autor, pois uma lei, depois de aprovada, torna-se pública e pertence à sociedade. Estaríamos, assim, diante de uma aplicação literal da frase lapidar de Glauber Rocha. Ocorre que, antes da lei estadual, o Rima é uma exigência constitucional. O inciso IV do parágrafo 1º do Art. 225 da Constituição Federal exige estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. E a Resolução n.º 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina, em seu Artigo 2º, que dependerá de elaboração de EIA/Rima o licenciamento de atividades modificadoras de meio ambiente, entre as quais acha-se enumerada estrada de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento, o que é o caso da Linha Vermelha. Assim, a legislação federal exige Rima para as obras de maior porte que enumera, sejam ou não ampliação. Dispensar o Rima para obras de ampliação levaria a absurdos inadmissíveis. Suponhamos que um empresário mais afoito ou um político tresloucado proponha aterrar a Baía de Guanabara para construir em seu lugar um complexo industrial. O Sr. Presidente da Feema decidiria então dispensar o Rima, pois se trataria, evidentemente, de ampliação do atual Aterro do Flamengo. Ou, se for mais ousado, dispensaria o Rima do projeto de demolição do Ministério do Exército para a ampliação da atual estação ferroviária da Central do Brasil, ou ainda, para ser mais ecológico, para a ampliação do jardim da Praça da República. Qualquer obra, sobretudo as viárias pode ser considerada ampliação de outras. Pouco importa, para a lei federal, se uma obra é ou não ampliação. A Linha Vermelha, construída sem EIA/Rima, é, do ponto de vista jurídico, ilegal. Por esta razão, entre outras, o Instituto de Ecologia e Desenvolvimento (IED) ingressou com uma ação civil Pública para suspender as obras da Linha Vermelha até a realização do EIA/Rima, como exige a legislação federal. A lei exige o Rima porque somente um estudo prévio pode determinar o impacto ambiental e social das obras de grande porte e, se for o caso, definir alternativas mais econômicas e mais úteis socialmente. Afinal, trata-se de obra realizada com dinheiro público. O Rima pode até mesmo recomendar a não execução da obra; por isso, a lei exige o estudo prévio. E, ao que se saiba, a lei vale também para os governantes, não só para os governados. É curioso observar que o atual presidente da Feema assinou manifesto, h[a alguns anos, como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), exigindo Rima para a construção da Linha Vermelha. Da mesma forma, o secretário municipal de Obras, Sr. Luís Paulo Correia da Rocha, que também integra a Comissão da Linha Vermelha, defendeu tese de mestrado na Coppe – UFRJ criticando o projeto da Linha Vermelha.Mudar de opinião após chegar ao poder não chega a ser muita novidade. E os dois técnicos citados revelaram-se bons discípulos de seu chefe, que, em virada surpreendente, celebrou um acordo político com o presidente Collor, que passou a dar tratamento privilegiado ao Rio de Janeiro. A ética política está fora de moda: a hora é do mais puro pragmatismo. Que a Linha Vermelha é ilegal, todo mundo sabe. Mas a formidável demonstração de força da aliança espetacular Collor-Brizola, abençoada pela mídia, inibiu manifestações críticas de diversos setores, inclusive da maioria dos membros dos Poderes Judiciário e Legislativo. Se, do ponto de vista jurídico, a obra é ilegal, do ponto de vista social a Linha Vermelha é elitista: 140 milhões de dólares vão beneficiar cerca de 125.000 pessoas no trajeto Galeão-Zona Sul, via São Cristóvão, enquanto milhões continuarão engarrafando em ônibus e automóveis na Avenida Brasil. Em brilhante artigo publicado no JB de 07/05/91, o Professor Licínio da Silva Portugal, do Programa de Engenharia de Transportes da Coppe – UFRJ, fulminou, com rara competência, os argumentos a favor da Linha Vermelha. No mesmo sentido, o Prof. Rômulo Dante Orrico Filho, Coordenador do citado Programa da Coppe, elaborou parecer técnico, anexado aos autos da ação civil pública impetrada pelo IED contra o Estado do Rio de Janeiro, demonstrando que a Linha Vermelha não vai descongestionar a Avenida Brasil e apontando alternativas mais eficazes mais baratas. A decisão de construir uma via expressa perpetua a prioridade concedida à sua Excelência, o automóvel individual. É surpreendente que um governo popular reproduza essa prioridade em detrimento do transporte público coletivo de massas. O transporte por ônibus, metrô, trem e barcas poderia receber significativa melhoria e ampliação com o dinheiro destinado à Linha Vermelha. O Poder Público decidiu pela obra alegando a realização no Rio da Conferência da ONU – ECO 92, quando alternativas melhores existem. Tais alternativas certamente viriam à tona na audiência pública, exigida em lei, que obriga a discutirem o Rima com representantes da sociedade civil: técnicos, professores, parlamentares, lideranças comunitárias, etc. O órgão técnico do Governo Estadual dispensou o Rima em nome de um parágrafo segundo que, se não existisse, seria inventado, pois o lobo nunca precisou de argumentos convincentes par comer o cordeiro. Um poderoso lobby se formou desencadeando louvores apologéticos e apoios entusiásticos. Restam bolsões de resistência na
Morrer pela pátria? Notas sobre identidade nacional.
Morrer pela pátria? Notas sobre identidade nacional.* Publicado na Revista de Sociologia Política “Política & Sociedade”, v.5, nº 09, outubro de 2006. MORRER PELA PÁTRIA? Notas sobre Identidade Nacional L’oubli, et je dirai même l’erreur historique, sont un facteur essentiel de la création d’une nation (Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une nation) I – O Ressurgimento das Identidades Culturais O objetivo do presente artigo é discutir a questão da identidade nacional em tempos de globalização e mostrar como o enfraquecimento atual do Estado-Nação acarreta o ressurgimento de identidades culturais sufocadas durante o período de formação e consolidação do Estado nacional. A identidade nacional é tradicionalmente apresentada como “comunidade imaginada” (Anderson,1996), “criação histórica arbitrária” (Gellner,1988), ancorada em diversos elementos como, por exemplo, a narrativa de nação, ênfase nas origens, na continuidade, na intemporalidade e na tradição (Hall, 2002), na invenção da tradição e no mito fundacional (Hobsbawn,1990), na memória do passado, na perpetuação da herança e no esquecimento dos conflitos de origem (Renan, 1996). Sabemos hoje que a idéia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são todas híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc. As diferenças culturais foram sufocadas em nome da construção da identidade nacional. É inegável que a ideologia do nacionalismo e do patriotismo constituiu importante ferramenta na formação do Estado nacional. O conceito de identidade nacional padece, assim, de certo viés monolítico. É comum encontrarmos expressões do tipo “o brasileiro é assim”, “o argentino é desse jeito”, “o francês é daquele”, num reducionismo que se choca com a diversidade cultural. Existem, é claro, patamares de homogeneidade, como a língua, por exemplo. Mas a existência de múltiplas identidades culturais invalida a noção de cultura nacional unificada. No caso do Brasil, já se afirmou que a identidade nacional se confundiria com a identidade cultural baseada na grande heterogeneidade de traços culturais ligados à variedade dos grupos étnicos que coexistiam no espaço nacional e que se distribuíam diversamente conforme as camadas sociais (Queiroz, 1989). Apesar de sua riqueza, essa abordagem deixa de lado aspectos importantes da questão da identidade nacional no Brasil, talvez o único país da América Latina que não conquistou a independência nacional – ela foi concedida de cima para baixo, sem luta. A República foi uma quartelada a que o povo assistiu “bestializado” (Carvalho, 1987). E à Independência, nem bestializado assistiu. As guerras e lutas que marcaram o povo brasileiro foram regionais (Farrapos, Sabinada etc.). Nosso mito de origem foi a descoberta em 1500, em que já estão presentes “os três componentes da nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial” (Carvalho, 2000). Esquecimento e erro é o que não faltaram nos mitos da história pacífica e democracia racial. Essa visão europeizante de identidade nacional excluía os colonizados. A história oficial foi escrita pelas elites onde o povo está, em geral, ausente. Isso ajuda a explicar porque o brasileiro tem mais orgulho da natureza do que da história, como veremos adiante. A construção da identidade nacional, na Europa e em toda a América, privilegiou nos séculos XVIII e XIX o sentimento de unidade em detrimento da diversidade. Tratava-se de construir a Nação, o que foi feito oprimindo e sufocando identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc. bem como a divisão da sociedade em classes. Enfim, o conceito de nação, baseado na unidade, ocultou a diversidade. Mas, talvez por isso mesmo, engendrou ideologias – o patriotismo e o nacionalismo – que ajudaram a forjar a identidade nacional e mobilizar as populações, principalmente dos países coloniais, para morrer na guerra pela pátria. É sugestivo que quase todos os hinos nacionais da América Latina falem em “morrer pela pátria”. Além disso, essas ideologias tornaram-se poderosos instrumentos de mobilização popular para as grandes guerras do século XX. Se na hora de morrer pela pátria não havia muitas distinções perante a lei, o mesmo não ocorria na hora de viver pela pátria. O direito brasileiro, por exemplo, trazia a marca dos costumes escravistas, patriarcais e católicos predominantes na sociedade brasileira do século XIX. Para protestantes e judeus, não havia, durante o Império, qualquer tipo de registro civil de nascimento ou casamento. União entre cônjuges não-católicos não tinha nenhum valor legal. Menores trabalhavam, mas não podiam defender-se em juízo. Mulheres casadas podiam gerir fortunas, mas não tinham direito de fazer testamento. Apenas católicos podiam ser eleitos para cargos públicos. Os negros eram escravos. Mesmo o Código Civil da República, promulgado em 1916, distinguia mulheres honestas de desonestas, filhos legítimos de ilegítimos (Grinberg, 2001). Os negros, já livres após a abolição da escravatura, tinham seus costumes e práticas desprezados e, às vezes, criminalizados, como no caso da capoeira e dos rituais afro-religiosos. Após a abolição, a elite branca, sentindo-se ameaçada, aumentou a perseguição contra os costumes africanos. Os indígenas eram considerados incapazes e as mulheres também eram excluídas da plenitude dos direitos de cidadania. Somente em 1934 conquistaram o direito de voto, mas a discriminação perdurou no plano social, econômico e inclusive jurídico. A política migratória era abertamente racista, pois discriminava os asiáticos e africanos em favor dos brancos europeus; A migração japonesa furou o bloqueio, já no século XX, mas sofreu campanhas discriminatórias contra o “perigo amarelo”. “Não há mais remédio para o mal”, lamentava em 1934 o deputado constituinte Félix Pacheco, a respeito da “indigestão japonesa”. O médico Miguel Couto também alertava para o perigo da “japonização do Brasil” e da transformação da Amazônia na “Nova Manchúria”, e liderou uma campanha antinipônica na Assembléia Constituinte de 1934, que acabaria por aprovar a limitação da imigração japonesa (Sano, 1989). A ditadura de Vargas, após 37, desencadeou uma repressão implacável contra os japoneses: escolas fechadas, língua proibida, livros confiscados, casas invadidas, prisões de “quinta colunas”. E também contra os judeus: o Plano Cohen, a proibição de renovar vistos que colocava os judeus migrantes na ilegalidade, podendo ser deportados para os campos de concentração na Alemanha. Todas essas discriminações, oriundas do século XIX, se estendem durante a
Liszt Vieira e seus planos ecológicos para o RJ e Mauá
Liszt Vieira foi o pioneiro do movimento ecológico no Rio de Janeiro, fundador da Assembléia Permanente do Meio Ambiente e o primeiro deputado preocupado com a ecologia no Brasil. Exerceu legislatura da 1982 a 1986 e criou vários projetos sobre o assunto. É, também, o fundador do Instituto de Ecologia e Desenvolvimento (IED) e seu atual presidente. Tem vários artigos e livros publicados. Seu último livro, publicado em 90, “Fragmentos de um discurso ecológico” fala sobre poluição, pressão sobre a mulher, combate ao racismo, energia nuclear, ecologia, feminismo e pacifismo. Nesta entrevista, Liszt fala sobre a 2ª Conferência Mundial da ONU para o Desenvolvimento e Meio Ambiente – ECO 92, as soluções para os problemas ambientais de Visconde de Mauá e o que espera, para esta área, do novo governo do Estado do Rio de Janeiro. Folha da Serra: Qual o trabalho que você está desenvolvendo, atualmente na área de meio ambiente? Liszt Vieira: Estou trabalhando no Instituto de Ecologia e Desenvolvimento, com alguns projetos ambientais, e, também, no fórum das Organizações Não Governamentais (ONG’s) Brasileiras para a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente – ECO 92, em junho do ano que vem. É um fórum com mais de 300 entidades , em todo o Brasil, e já convidamos entidades ambientalistas de Visconde de Mauá a se integrarem a ele, e, também participarem da organização da Conferência Paralela do Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU. Esperamos reunir, neste evento, cerca de 20.000 pessoas.Folha da Serra: Como seria a participação das entidades ambientalistas no fórum? Liszt Vieira: Em abril, faremos uma ampla reunião, para discutirmos um plano de trabalho e elegeremos a coordenação definitiva do fórum. A idéia é mobilizar todas as entidades para um trabalho local, de conscientização e educação ambiental. Queremos aproveitar a Conferência para reivindicar soluções para os problemas locais nacionais e, até mesmo, planetários, na questão do meio ambiente.Folha da Serra: As entidades ambientalistas que participarem do fórum têm mais chances de receber financiamento para a execução de um projeto? Liszt Vieira: Acho que sim. O fato dela se integrar no fórum significa que está se integrando em uma iniciativa mais ampla, que congrega muitas entidades. Nós mesmos, do IED, estamos à disposição do movimento ecológico de Visconde de Mauá para discutirmos a elaboração de projetos específicos da região e a captação de recursos para sua execução. Folha da Serra: O que é o IED?Liszt Vieira: O Instituto de Ecologia e Desenvolvimento elabora projetos na área ambiental, do ponto de vista social. Projetos que compatibilizam o desenvolvimento com a proteção do meio ambiente. Neste sentido, pretenderemos, também fornecer informações ao movimento ecológico, através de estudos, pesquisas e projetos. Folha da Serra: Como você vê o desenvolvimento acelerado de Visconde de Mauá? Liszt Vieira: É um problema grave que existe não só em Mauá, mas em todos os municípios com vocação turística acentuada. Por atraírem muita gente, hotéis e casa são construídas e, na maioria das vezes, isto é feito em detrimento à preservação do meio ambiente. Visconde de Mauá precisa de um plano urbanístico para o desenvolvimento da região, que obrigue às pessoas a respeitarem o meio ambiente. Todos devem construir fossas. Deve-se Ter normas para a construção de casa, que respeitem certos padrões de defesa ambiental, e meios que propiciem educação ambiental para os moradores e turistas. No currículo escolar, deve ser introduzida a cadeira de educação ambiental, para que as pessoas tenham esta noção desde a escola. A prefeitura, em articulação com os órgãos representativos da comunidade, deve elaborar um plano de ocupação territorial racional, compatibilizando as necessidades de desenvolvimento com a proteção do meio ambiente. Isto é possível de ser feito, mas envolve vontade política e organização da comunidade local. Por outro lado, é necessário, também, a fiscalização dos órgãos estaduais e federais. E nisto, a comunidade pode ajudar muito. Podemos pensar em uma ação cível pública ou uma ação popular, para pedir indenização, nos danos ambientais, ou para impedir que um dano seja cometido. Folha da Serra: Pelo fato de Visconde de Mauá pertencer à APA da Mantiqueira, isto lhe favorece, no caso de recorrer a dispositivos legais, para a elaboração de um plano racional de ocupação territorial?Liszt Vieira: Evidentemente que sim. Ser uma área de proteção ambiental significa que ela já recebe uma proteção jurídica especial, a priori. Mas, de qualquer forma, existem APAs que podem ser destruídas se a comunidade não fiscalizar, não recorrer às instâncias que ela pode recorrer. Podemos recorrer ao Executivo, prefeituras, Feema, eventualmente ao Ibama, ou, então, à Procuradoria Geral da Justiça, que é o órgão do ministério público que cuida da proteção ambiental.Folha da Serra: O que você espera do novo governo estadual para a área de meio ambiente? Liszt Vieira: Eu esperava que o governo fizesse um plano, detectando quais são os problemas ambientais do Estado do Rio de Janeiro. Começasse com um diagnóstico por região e por temas (desmatamentos, poluição da água, poluição do ar, etc.) E, depois, apresentasse prioridades para solucionar estas questões ambientais. A realização da Conferência da ONU é uma grande oportunidade para se exigir do governo não apenas obras de fachada na cidade do Rio de Janeiro; que eles vão fazer, para não passar vergonha com as delegações dos governos estrangeiros, que aqui chegarão. É necessário cuidar dos problemas da cidade que vai acolher a Conferência da ONU. Mas não podemos esquecer do Estado como um todo. Espero que o Governo do Estado elabore um plano de proteção ambiental para todo os Estado e o execute. Parece que eu digo uma coisa muito fácil. Mas, até hoje, nenhum governo fez isto. Espero, que, agora, já haja consciência, por parte do poder público, de que chegou a hora de fazer um plano para a proteção do meio ambiente do Estado. Folha da Serra: Você vê como urgente um plano de ocupação territorial para Mauá? Liszt Vieira: Sim. Porque quando não há consciência ecológica, algumas pessoas se acham com o direito de propriedade ilimitado. Mas, não é assim. O direito de
Por uma ecologia aberta
Desmoronaram os regimes, sistemas e ideologias que, durante décadas, sustentaram nossas crenças e valores. As armas teóricas de que se valiam os oprimidos para enfrentar a opressão do capital tornaram-se obsoletas. A esquerda e os movimentos populares mergulham em perplexidade ou limitam-se a repetir chavões que não convencem mais ninguém, porque passam ao largo de questões essenciais. A crise do mundo capitalista e socialista, a decadência da sociedade patriarcal, a destruição ecológica que ameaça o planeta nos desafiam a buscar novos modos de vida e de pensamento. Já faz algum tempo, os que entendem a democracia como forma de existência social e não apenas como regime político vinham defendendo a democratização do poder político e econômico, o fortalecimento dos órgãos representativos da sociedade civil, a democratização dos meios de comunicação, a criação de instrumentos de contra-poder e atenção especial à ecologia, questão social que se tornou explosiva nos anos 80.A realidade confirmou a lucidez dessas preocupações, que acabaram se tornando bandeiras na campanha presidencial de 1989, embora não tenham sido incorporadas à prática cotidiana dos partidos. O próprio movimento ecológico limitou-se a uma perspectiva puramente ambiental, e apenas seus setores mais conscientes articulam a questão ecológica à social. Contudo, esta visão é ainda muito estreita, incapaz de oferecer alternativas. Hoje é preciso ir muito mais além. É preciso encontrar um novo modo de viver em sociedades onde as transformações tecnológicas e científicas se processaram à custa de uma degradação social e cultural. As crescentes mecanização, automação e informatização tendem a liberar uma quantidade cada vez maior de tempo de trabalho. Isto não precisa significar, como tem ocorrido, o desemprego, a marginalidade, a solidão, a angústia, a neurose. Pode, ao contrário, abrir caminho à cultura, à criação, à pesquisa, à reinvenção do meio ambiente e ao enriquecimento dos modo de vida e sensibilidade. A crise da sociedade contemporânea só poderá ser enfrentada com uma revolução política, social, cultural, a partir de uma articulação teórico-política entre as três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a das idéias. Esta revolução deverá reorientar a produção dos bens materiais e simbólicos. Deverá se processar não apenas nas relações de força visíveis em grande escalar (reformas de cúpula, planos de governo, partidos, sindicatos), mas também nos domínios moleculares da sensibilidade, inteligência e desejo, ao nível da sida cotidiana. Os mecanismos de dominação não se manifestam apenas nas estruturas de produção de bens e serviços, mas também nas estruturas de produção de signos e subjetividade, através da mídia, da publicidade, etc.Tão decisivas quanto as relações econômicas são as relações da subjetividade, que as sustentam. O poder repressivo é introjetado pelos oprimidos e muitas vezes os partido e sindicatos de trabalhadores reproduzem os mesmo modelos autoritários que bloqueiam a liberdade de expressão e inovação. Este é um problema-chave que a ecologia social e mental deverá enfrentar. O capitalismo, hoje, estendeu o seu domínio sobre o conjunto da vida econômica, social e cultural do planeta, incorporando-se à subjetividade e ao inconsciente das pessoas. Por isso, não é mais possível fazer-lhe oposição somente “do exterior”, mediante as praticas sindicais e políticas tradicionais. Devemos enfrentar seu domínio na vida cotidiana individual, nas relações domésticas de vizinhança, éticas. Para isto, em vez de um consenso mediocrizante, é preciso cultivar o dissenso e a produção singular de existência que a pasteurização capitalista tenta impedir. É necessário uma ecologia com uma visão transversalizante, abrangendo elementos ambientais, sociais e mentais. A ecologia ambiental apenas antecipou a ecologia generalizada que preconizamos. Ela impõe a reavaliação da finalidade do trabalho e das atividades humanas em função de critérios diferentes dos de rendimento e lucro. Exige a democratização dos meios de comunicação, a serem reapropriados por grupos autônomos e representativos da sociedade civil: o fim do monopólio da produção de sentidos e valores. Supõe também iniciativas de desobediência civil como a Rádio e a TV livres, ou “piratas”. Impõe um questionamento radical das práticas e da subjetividade, incluindo-se aí as sociedades do chamado socialismo real, que acabam de desintegrar-se na Europa Oriental. Não propomos um modelo de sociedade pronto para usar, mas sim a produção de novos sistemas d valores através de novas práticas sociais, estéticas, ético-políticas, novas práticas de si em relação ao outro. Tudo isso permeia as urgências conjunturais. A história humana sobre o planeta não é mais teleguiada por Deus, pela Ciência, pela Razão, ou pelas leis da História. Ela nos faz reencontrar o sentido grego da palavra “planeta”: astro errante. Resta saber se, despojado de verdades que não mais devem ser encontradas, mas sim criadas, o ser humano pode se constituir livremente, olhando o mundo como obra aberta, como um artista cuja obra maior será transformar sua própria vida em obra de arte. Liszt Vieira – Presidente do Instituto de Ecologia e Desenvolvimento
Cidadania Global e Estado Nacional
Cidadania Global e Estado Nacional Cidadão do MundoInglês por NascimentoCidadão Francês por DecretoAmericano por Adoção[inscrição na estátua deTHOMAS PAINE (1737-1809)em Paris] 1. A Atualidade da Cidadania Há um renovado interesse pela cidadania nos anos 90. O conceito de cidadania parece integrar noções centrais da filosofia política, como os reclamos de justiça e participação política. Cidadania vincula-se intimamente à idéia de direitos individuais e de pertença a uma comunidade particular, colocando-se, portanto, no coração do debate contemporâneo entre liberais e comunitaristas. Os inúmeros trabalhos teóricos sobre cidadania nesta década parecem apontar na direção de uma teoria da cidadania. Segundo Will Kymlicka, haveria, porém, dois grandes obstáculos a esta pretensão. O primeiro seria o âmbito potencialmente ilimitado de uma teoria da cidadania, que poderia abranger qualquer problema envolvendo relações entre o cidadão e o Estado. O segundo seria a dualidade existente no interior do conceito de cidadania, ou melhor, duas concepções distintas coexistindo na noção de cidadania. Existiria uma concepção ‘fina’ de cidadania como status legal, isto é, cidadão como membro pleno de uma comunidade política particular. E, de outro lado, uma concepção ‘espessa’ de cidadania como escopo, como atividade desejável, onde a extensão e a qualidade da cidadania seriam função da participação do cidadão naquela comunidade (Kymlicka &Norman, 1995). Não existe, até hoje, nenhuma teoria da cidadania, mas importantes contribuições teóricas já foram dadas a respeito da tensão entre os diversos elementos que compõem o conceito de cidadania, esclarecendo melhor as razões de sua atualidade neste final de século. Duas grandes interpretações contraditórias se enfrentam na conceptualização de cidadania. Na primeira, o papel de cidadão é visto de forma individualista e instrumental, segundo a tradição liberal iniciada com Locke. Os indivíduos são vistos como pessoas privadas, externos ao Estado, e seus interesses são pré-políticos. Na segunda, prevalece uma concepção comunitarista oriunda da tradição de filosofia política proveniente de Aristóteles. Temos aqui uma cidadania ativa, e não mais passiva como no primeiro caso. Os indivíduos estão integrados numa comunidade política e sua identidade pessoal é função das tradições e instituições comuns. Segundo Charles Taylor, trata-se de dois modelos de cidadania. O primeiro baseado nos direitos individuais e no tratamento igual. O segundo define a participação no governo como essência da liberdade, como componente essencial da cidadania (Taylor, apud Habermas, 1995b). Em formulação semelhante, Bryan Turner (1990) constata a existência de uma cidadania passiva, a partir ‘de cima’, via Estado, e uma cidadania ativa, a partir ‘de baixo’. Haveria, assim, uma cidadania conservadora – passiva e privada – e uma outra revolucionária – ativa e pública. No que diz respeito à relação problemática entre cidadania e identidade nacional, ela foi influenciada, segundo Habermas, por três acontecimentos históricos recentes. Primeiro, a questão do futuro do Estado-Nação tornou-se inesperadamente atual após a unificação alemã, a liberação dos Estados da Europa Centro-Oriental e os conflitos de nacionalidade irrompendo em toda a Europa oriental. Segundo, a formação histórica da União Européia ajuda a esclarecer as relações entre Estado-Nação e democracia, pois os processos democráticos que se desenvolveram juntamente com o Estado-Nação ficam aquém da forma supranacional assumida pela integração européia. E, terceiro, os fluxos migratórios das regiões pobres do sul e leste europeu assumem cada vez mais relevância urgente e significativa. Essas migrações exacerbam os conflitos entre os princípios universais das democracias constitucionais e as reivindicações particulares das comunidades para preservar a integridade de seus estilos habituais de vida (Habermas, 1995a). A súbita ampliação de regimes democrático-liberais desencadeada pelo colapso do comunismo soviético e pelo fim da Guerra Fria tem provocado, em algumas regiões, efeitos paradoxais: em certos países, ela permitiu (às vezes pela primeira vez) a participação eleitoral e a emergência de novas e múltiplas associações voluntárias que ampliaram e aprofundaram a cidadania democrática, enquanto em outros surgiram graves contradições internas, em precários Estados-nação, dando lugar a conflitos étnicos, divisões territoriais, guerra civis, genocídio (Held, 1995b).Em decorrência, vemos que a relação, já de si contraditória, entre cidadania e Estado-Nação passa a ser entrecortada pela relação, igualmente contraditória, entre cidadania e multiculturalismo. De um lado, a cidadania nacional vem sendo ameaçada pelas pressões globais e também, em contrapartida, por pressões locais. O nacionalismo é a forma assumida por uma reação típica a sentimentos de identidade ameaçada; e nada ameaça mais a identidade nacional do que o processo de globalização. O nacionalismo ‘aglutinador’ de outrora parece substituído hoje por um nacionalismo ‘separatista’. Os Tchecos e os Eslovacos constituem um exemplo pacífico dessa tendência, que chegou a guerras sangrentas entre servos, croatas e bósnios na antiga Iugoslávia e, mais recentemente, entre servos e kosovares. Quando, no dizer de Habermas, a idéia de ‘nação do povo’, ao longo do século XIX, arrebatou a imaginação das massas, ela produziu efeitos diferenciados. Converteu-se em motor das lutas de democratização, produzindo gradualmente e por intermédio de distintas estratégias de incorporação, a passagem do status de súdito para o de cidadão e a generalização da participação política (Bobbio, 1992; Turner, 1994). No mesmo movimento, a política democrática nacionaliza-se. Intercambiável com o termo ‘povo’, o termo ‘nação’ passa a ser portador ambíguo do republicanismo e do nacionalismo, dois componentes que operam juntos, embora com sentidos diferentes. Um primeiro sentido é de caráter legal e político – a nação de cidadãos, legalmente capacitados para exercer seus direitos e obrigações, que proporciona a legitimação democrática. Um outro sentido tem caráter pré-político – a nação herdada ou atribuída, moldada pela origem, cultura, história, língua comum, que facilita a integração social (Habermas, 1995a). O conceito político de nação absorveu conotações de seu conceito gêmeo mais antigo, pré-político, levando a preconceitos estereotipados.O novo auto-entendimento como nação foi com freqüência empregado para hostilizar todas as coisas estrangeiras, para menosprezar as demais nações e para discriminar ou excluir minorias nacionais, étnicas ou religiosas, especialmente os judeus. (Habermas, 1995a, p.90) Assim, da ambigüidade do termo ‘nação’ pode surgir – como aconteceu na história européia dos séculos XIX e XX – uma ameaça perigosa para o componente republicano do Estado Nacional, quando este, em lugar de respaldar a democratização do sistema político, reduz a
O INIMIGO INVISÍVEL
Liszt Vieira A guerra no Afeganistão e o desmoronamento do regime talibã deixaram para trás uma questão sem resposta. Os EUA gastaram bilhões de dólares com a guerra nas estrelas e o escudo anti-mísseis que de nada serviram para proteger o cidadão americano. A guerra não veio das estrelas e, provavelmente, não virá. É altamente improvável que os EUA venham a ser atacados por outro país. Mas foi exatamente para esta hipótese que os sucessivos governos da Casa Branca se prepararam. Apesar de atentados terroristas anteriores em seu território, os EUA mostraram despreparo total para enfrentar o terrorismo. Entre os fatores apontados para explicar esta debilidade, destaca-se a pressão formidável da indústria bélica por verbas astronômicas que alimentam o poder do complexo industrial-militar norteamericano. Os Governos sempre venderam a idéia de que a segurança da nação depende dessa fantástica máquina de guerra capaz de impedir ataques de países inimigos. Esta visão oculta uma concepção estratégica equivocada. Os EUA permanecem presos à lógica de um paradigma anterior. Desde o Tratado de Westfália, em 1648, o mundo é dividido em Estados nacionais. O processo de globalização em curso rompeu com o predomínio absoluto dessa lógica nacional. Fenômenos e processos econômicos, financeiros, sociais, culturais, ambientais, criminais, comunicão eletrônica etc. tornaram-se imediatamente globais, ignorando os atributos básicos do Estado nação: território, soberania e autonomia. São questões mundiais que não podem mais ser resolvidas por um único país isolado. Para fazer frente a essa globalização autoritária, a sociedade civil se organiza e, nesse processo, também se globaliza. De Seattle a Gênova, passando pelo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, a sociedade civil tem apresentado propostas alternativas à (des)ordem social internacional imposta pelos países dominantes. Nos últimos anos, surgiu, em todo o mundo, uma cidadania ativa lutando pela construção de um espaço público democrático transnacional. Mas surgiram também grupos fundamentalistas isolados que, eventualmente, podem recorrer ao terrorismo. O mundo ficou chocado com o atentado terrorista em Nova York e Washington. Mais de 5 mil pessoas foram mortas estupidamente. Mas quem se comove com os africanos morrendo de fome, de aids, vitimados em guerras sangrentas manipuladas muitas vezes por países ocidentais? As atrocidades praticadas pelos russos no Afeganistão e pelos americanos no Vietnam constituem verdadeiro terrorismo de Estado. Só no Vietnam morreram cerca de dois milhões de pessoas. E quantos morreram no Timor Leste massacrados pelos paramilitares indonésios? Sabe-se que 130 mil civis iraquianos foram mortos pelos bombardeios americanos na Guerra do Golfo. Os cinco mil mortos pelo terrorismo nos EUA repercutem e nos atingem mais do que milhões de civis mortos em países periféricos. Calcula-se que os EUA gastariam em um ano 100 bilhões de dólares na guerra do Afeganistão. Para começar a guerra, o Congresso americano aprovou 40 bilhões, cinco vezes mais que o PIB do Afeganistão. Se tivessem investido um quarto dessa verba no desenvolvimento econômico daquele país, talvez nem houvessem sofrido atentado terrorista. Mas prevaleceu a arrogante política isolacionista do Governo Bush que angariou a antipatia do mundo inteiro ao se recusar a assinar inúmeras convenções internacionais (tratado de Kyoto sobre efeito estufa, proibição de discriminação contra as mulheres, proteção do menor, proibição de minas antipessoais, criação do Tribunal Penal Internacional etc.). Os EUA financiaram os talibãs quando lutavam contra os russos, e Sadam Husseim na guerra contra o Irã. Armaram ontem o inimigo de hoje. Somente agora voltaram atrás e concordaram com a inspeção internacional de armas biológicas. Sempre defenderam as patentes contra os genéricos e a saúde pública. Agora, ameaçaram a Bayer com o genérico do antibiótico contra antraz, cujo preço acabou caindo cerca de 90%! Trata-se de salvar norteamericanos e não os 36 milhões de infectados com HIV, dos quais 24 milhões na África. O bioterrorismo pode provocar pânico. Conseguirão os EUA enfrentar esse inimigo invisível? Bush chegou a falar em cruzada, a guerra santa dos cristãos contra os muçulmanos na Idade Média. A guerra entre muçulmanos e o Ocidente é tudo o que deseja Bin Laden. Será necessário muita habilidade para não cair na armadilha. Mas a hora é dos falcões. Ao propor supressão de direitos civis, não estariam os EUA dando um tiro no pé? O Império contra-ataca, o que pode levar a uma possível escalada, como propõe o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld. Os mísseis “inteligentes” lançados no Afeganistão explodiram bairros residenciais, mataram civis inocentes, atingindo até hospitais, escritórios da ONU e a Cruz Vermelha. A guerra na Ásia central provocou ódio no mundo muçulmano, cerca de 1 bilhão de pessoas. Para compensar, um importante peão foi movido no xadrez geopolítico mundial: o apoio de Tony Blair ao Estado Palestino, com o sinal verde dos EUA. Há quem veja, além do poderio militar, sinais de declínio do império norteamericano. A crise atual poderá, pelo menos, ajudar a romper o fundamentalismo isolacionista do governo Bush, redefinindo os termos da equação política mundial. É possível que então os americanos possam enfim compreender porque são odiados no resto do mundo. E aceitar que entre o cowboy e o mulá existem outras opções.Liszt VieiraProfessor da PUC-RioAutor de Os Argonautas da Cidadania e Cidadania e Globalização
CORRUPÇÃO, ESTADO E NAÇÃO
Estamos à beira da ruptura do nosso precário contrato social entre uma sociedade esgarçada e um Estado Frankestein “Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/Que é também brasileiro/E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?” Noel Rosa Entre as múltiplas funções do Estado, existe uma que nunca mereceu uma análise atenta dos observadores políticos. O Estado é também um aparelho de saque. É inegável que os detentores do poder sempre se banquetearam com o dinheiro público. De vez em quando surgem na imprensa notícias bastante esclarecedoras de como as coisas se passam nos bastidores do poder. Uma delas é a gravação de conversas políticas, realizada em geral com intenções espúrias. Tais gravações são extremamente didáticas e elucidativas dos mecanismos reais de tomada de decisões. Desvio de verbas, contribuição de empresas a campanhas eleitorais e cobrança de comissões na execução de obras públicas são exemplos de nosso cotidiano político. Se a corrupção é inerente ao poder -e, nesse sentido, é universal- as formas de exercício da corrupção são históricas, variam no tempo e no espaço. Uma democracia tem de institucionalizar instrumentos e mecanismos para reduzi-la ao máximo. Tais instrumentos estarão informados pelo princípio da transparência e da responsabilização. As autoridades devem responder por seus atos. A corrupção prospera na sombra e se alimenta da impunidade. Periodicamente somos brindados com escândalos que nada devem a um PC Farias. O grampo no BNDES mostrou a promiscuidade entre o público e o privado na privatização de Telebrás, Light e Vale do Rio Doce. Os diretores do BNDES e do Banco Central têm em geral como origem e destino o mercado financeiro, a quem serviram antes e continuarão servindo depois. O recente escândalo envolvendo o ex-secretário da Presidência Eduardo Jorge, o juiz Nicolau Santos Neto e o ministro Martus Tavares mostrou que, em se tratando de corrupção, o atual governo não é exceção. Aliado a setores conservadores, o governo FHC não conseguiu realizar o mínimo que dele se esperava: a modernização do Estado. Daí a atitude conservadora e repressiva assumida pelo governo federal. Um bom exemplo é a festa oficial dos 500 anos, quando a polícia parecia realizar cuidadosa reconstituição histórica ao reprimir os índios como os colonizadores sempre o fizeram. Já se disse que o povo brasileiro se identifica mais com sua geografia do que com sua história. Tem mais orgulho da natureza exuberante do que de uma história onde quase sempre esteve ausente. Se assistiu bestializado à proclamação da República, nem chegou a assistir à independência. Não tivemos aqui as guerras de libertação nacional que marcaram outros países da América, embora mereçam destaque algumas lutas regionais de forte presença popular, vistas na historiografia oficial como rebeliões contra a unidade nacional. Eis, talvez, a origem de diversos mitos, hoje já dissolvidos, como os da cordialidade brasileira, da nossa tradição pacífica e da superioridade da miscigenação racial que nos destinaria a constituir o berço de uma nova civilização. Esses e alguns outros são temas que atravessam as reflexões de intelectuais que pensaram o Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Darcy Ribeiro. O curioso é que a idéia de nação sempre foi um conceito caro ao pensamento conservador. Na visão marxista tradicional, nação é um conceito ilusório que oculta a divisão da sociedade em classes. Enquanto a direita falava em nação, a esquerda falava em classe social. Hoje, registra-se uma inversão: a elite neoliberal dominante fala em globalização e em integração ao mercado mundial -sem o que não há salvação-. Os partidos e movimentos sociais de oposição discutem a questão nacional. Para muitos a identidade nacional tornou-se uma espécie de miragem. Se nosso povo não vislumbra a identidade brasileira na história e a natureza, degradada pela atividade econômica, não pode mais constituir suporte para o orgulho pátrio, onde buscar a identidade nacional? A chave da questão encontra-se na ausência dos direitos de cidadania. A esperança no futuro depende não da reiteração de chavões ufanistas e nacionalistas, mas do fortalecimento da sociedade civil e da cidadania democrática no Brasil, para que as esferas do mercado e do Estado possam respeitar os três elementos que constituem o fundamento contemporâneo de uma nação civilizada: democracia -política, social e econômica-, sustentabilidade ecológica e diversidade cultural. Desse ponto de vista, o Estado brasileiro não é civilizado. Em negócio do Estado, o povo é danação. No país da impunidade, sem transparência e responsabilização das autoridades, a corrupção do andar de cima serve de demonstração ao andar de baixo. Não raro vemos que o pobre não quer apenas sair da pobreza, quer ficar rico. Se acrescentarmos a esse quadro a explosão da violência urbana, a brutal desigualdade na distribuição de renda, o desemprego, os baixos salários e a ausência de cidadania para grande parte da população, poderíamos concluir que estamos à beira da ruptura do nosso precário contrato social entre sociedade esgarçada e Estado Frankestein. Somente a participação efetiva da sociedade civil nas decisões governamentais poderá oxigenar o funcionamento do Estado e superar a atual esclerose múltipla das instituições políticas, agravada pela política neoliberal de Estado mínimo, de privatização da coisa pública e de destruição dos direitos sociais. O caminho para pôr fim à impunidade e promover a democratização do Estado e a regulação do mercado passa necessariamente pela construção de uma nova cidadania política, condição “sine qua non” de constituição de nossa identidade como nação. E tudo indica que se trata de uma tarefa urgente.
Resenha do livro “Teoria Social e Modernidade no Brasil”
Por Liszt Vieira Modernidade é um tema recorrente no pensamento sociológico contemporâneo. A compreensão dos fenômenos, estruturas e processos históricos, sociais, políticos, culturais e econômicos que levaram à configuração de nosso mundo de hoje constituiu – e ainda constitui – um desafio ao pensamento crítico da teoria social. Com efeito, a partir do século XVI, as grandes navegações, o mercantilismo, o Renascimento, o antropocentrismo, a manufatura, a revolução científica, as revoluções burguesas, o individualismo, o surgimento do Estado nacional e de novas classes sociais, a revolução industrial, o iluminismo, representaram marcos de uma profunda mudança que abalou os alicerces das sociedades pré-modernas e consolidou o capitalismo, sempre às voltas com suas crises cíclicas. No século XX, duas guerras mundiais, a guerra fria, o predomínio do capital financeiro, a expansão do mercado mundial, o desmoronamento do socialismo estatal, a crise ecológica, o avanço da democracia política com aumento da pobreza, o enfraquecimento do Estado nacional e de seus atributos básicos (soberania, autonomia, territorialidade, cidadania etc.) pelo processo de globalização, a compressão do espaço-tempo, o fortalecimento da sociedade civil em plano global, a informática, as telecomunicações, os meios de comunicação de massa, o consumismo, o apartheid social, entre outros fatores, levaram a uma nova configuração de forças num mundo “pós-moderno”, “pós-nacional”, ou de modernidade “alta”, “tardia” ou “incompleta”. Grandes pensadores debruçaram-se sobre o tema da modernidade, desde Marx – tudo que é sólido desmancha no ar – e Weber – a modernidade desencantou o mundo – passando pela Escola de Frankfurt (Adorno, Benjamin, Horkheimer) – que, em pleno nazismo e stalinismo, tentava, ancorada em Weber, conciliar Freud e Marx. Seu atual herdeiro – Habermas – sustenta que a modernidade é um processo ainda incompleto, o que não lhe impede de afirmar que o trabalho perdeu a centralidade no mundo de hoje, que não é mais explicável pelo paradigma da produção. Grande impacto tiveram as teorias da estruturação, reflexividade e alta modernidade (Anthony Giddens), da sociedade de risco (Ulrich Beck), do capitalismo desorganizado (Claus Offe, Lash & Urry), da acumulação flexível pós-fordista (David Harvey e outros) etc. Destaque importante alcançaram ainda aqueles que esposaram a teoria da pós-modernidade, como J. F. Lyotard, para quem a fragmentação e a heterogeneidade das sociedades contemporâneas impedem sua explicação por metanarrativas abrangentes e unificadoras, herdeiras do racionalismo iluminista, e também F. Jameson, que vê o pós-moderno como expressão cultural do capitalismo tardio. As ciências sociais brasileiras se beneficiaram de toda essa produção teórica, mas se ressentiam, até há pouco, de uma elaboração crítica própria. Em bom momento, os professores Leonardo Avritzer e José Mauricio Domingues lançaram, pela Editora UFMG, “Teoria Social e Modernidade no Brasil”, uma coletânea de artigos fruto dos debates no âmbito do Grupo de Trabalho de Teoria Social da Associação Brasileira de Ciências Sociais (ANPOCS). O livro aborda temas teóricos gerais, como formas e estilos de vida, dinâmica da política e da cultura contemporâneas, tendo como pano de fundo a teoria da modernidade, onde os clássicos, certamente, estão presentes. Mas, no dizer dos organizadores, “suas questões são filtradas e reelaboradas em função de outras perspectivas teóricas”. É a articulação da teoria social com a teoria da modernidade que mapeia o campo de pesquisa teórica do livro. Segundo seus organizadores, os autores clássicos priorizaram um fator como decisivo para explicar a modernidade, seja a democracia (Tocqueville), o capitalismo (Marx), a divisão do trabalho (Durkheim) ou a racionalização (Weber). A abordagem hoje é mais complexa, e os autores dos diversos artigos que compõem o livro preocuparam-se em realizar uma leitura crítica de contemporâneos como Giddens, Charles Taylor, Bourdieu, Luhmann e Habermas. E constataram todos que as relações dos indivíduos com as estruturas sociais na “modernidade tardia” tornaram-se mais abstratas e mais reflexivas. Na primeira parte do livro, Gabriel Cohn constrói um diálogo entre Weber e Tocqueville, apresentando-os como o início da passagem para a modernidade tardia. Ambos oferecem um diagnóstico fundamentalmente ambíguo em relação à modernidade. A liberdade cidadã, a democracia e a “arte da associação” (Tocqueville), ou a responsabilidade dirigente, a racionalização e “a arte da direção” (Weber), seriam respostas à perda, na modernidade, da capacidade de agir segundo valores. José Maurício Domingues, em seu artigo, utiliza os conceitos de “desencaixe” e “reencaixe” em Giddens para remetê-los ao plano da subjetividade coletiva e à problemática das “abstrações reais”, cuja origem buscou em Marx e na Teoria Crítica. As formas de reencaixe na modernidade seriam muito abstratas, gerando, em decorrência, a necessidade de formas coletivas de reencaixe mais concretas, articuladas com o multiculturalismo. Segundo ele, desde que se evitem as “ciladas da diferença”, é possível assegurar um horizonte de mudança social por meio de formas institucionais que permitam a proliferação de particularidades coletivas sem prejuízo de normas universais democráticas. Leonardo Avritzer enfrenta a problemática da abstração e da reflexão. Discute o conceito de esfera pública em Habermas, como forma de interação face a face entre os indivíduos, o que seria a origem da possibilidade da crítica. De outro lado, mostra como essa interação face a face não consegue mais dar conta das formas modernas de reflexão. Critica, porém, o conceito de reflexividade em Giddens e Beck que desconsiderou inteiramente a interação, perdendo o elemento crítico da reflexividade. Avritzer propõe a idéia de públicos reflexivos como expressão da fusão entre elementos interativos e elementos reflexivos. Myrian Sepulveda dos Santos analisa o problema da continuidade entre tradição e modernidade, questionando autores que afirmam a autofundamentação do presente, prescindindo do passado. Discute a coexistência de práticas tradicionais e modernas bem como a relação entre memória reflexiva e tradição. Afirmar que o passado é sempre uma construção do presente não nos autoriza, segundo a autora, a negar a influência de heranças e tradições. Hector Leis e Sérgio Costa visitam uma desconhecida: a problemática da intimidade. Discutem o impacto na esfera íntima provocado pelas mudanças atuais nas relações entre homens e mulheres. Os autores se perguntam se a transferência para o espaço público das questões íntimas não seria uma consequência lógica e uma radicalização da idéia fundante do feminismo contemporâneo
Dois caminhos
LISZT VIEIRA Para mostrar que o mundo não é uma mercadoria, e que os valores éticos, sociais e culturais devem prevalecer sobre os interesses puramente econômicos, mais de duas mil organizações, com 15 mil delegados provenientes de 131 países, reuniram-se em 27 conferências e mais de 900 seminários e oficinas durante o II Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Desta vez, além de denúncias e análises, iniciou-se um debate construtivo com propostas sobre novas instituições que possam garantir uma governança global democrática, como o tribunal penal mundial alternativo ou o banco solidário mundial. Infelizmente, houve alguma perda pelo excesso de fragmentação e pela ausência de um documento de síntese que contemplasse as principais questões e propostas debatidas, sobre as quais já existe consenso. Simultaneamente, realizou-se em Nova York o Fórum Econômico Mundial, que congrega os representantes do poder econômico e político, para discutir os destinos da globalização e seus impactos no planeta. Pela primeira vez, a questão social constou, ainda que precariamente, da agenda oficial deste seleto clube dos poderosos da terra. O processo de globalização vem enfraquecendo os Estados nacionais. Fenômenos e processos econômicos, financeiros, sociais, culturais, tornaram-se globais, ignorando os atributos básicos do Estado-nação. Assim, comunicação eletrônica, capital financeiro, poluição ambiental, migrações, indústria cultural, tráfico de drogas, contrabando de armas, são questões que não podem mais ser resolvidas por um único país. Enquanto a esquerda tradicional vê a globalização apenas como eufemismo para o imperialismo ianque, a nova direita abandona o discurso sobre o interesse nacional para se integrar de forma subordinada ao mercado mundial. Para fazer frente a essa globalização autoritária, de cunho neoliberal, a sociedade civil se organiza e, nesse processo, também se globaliza. A sociedade civil surge como novo ator no cenário internacional, enfrentando os Estados e as empresas transnacionais. De Seattle a Gênova, passando pelo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, a sociedade civil tem apresentado propostas alternativas à (des)ordem social imposta pelos países dominantes. Surgiu, em todo o mundo, uma cidadania ativa lutando pelo interesse público, por uma sociedade baseada na solidariedade e não na competição, por um desenvolvimento baseado na democracia, justiça social, diversidade cultural e proteção ambiental. O teólogo católico Teilhard de Chardin disse, certa vez, que, de mil delírios, alguns são proféticos. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre vem nos mostrar que o advento de uma sociedade civil global capaz de democratizar a política mundial é a utopia possível neste início do século XXI. E a esperança dos excluídos e deserdados da terra.LISZT VIEIRA é professor da PUC-RJ.
Transgênicos e a luta anti-globalização
A reunião dos países mais ricos do mundo, abrigados sob a sigla G-8, iniciada em 20/07/01, em Gênova, contou com a proteção de 20.000 policiais para conter dezenas de milhares de manifestantes que foram protestar contra a globalização dominante e suas implicações desastrosas para os povos do mundo. Já no primeiro dia irrompeu a violência: um morto, 85 feridos e dezenas de presos marcaram de forma trágica o Encontro do G8. Além de participar em reuniões oficiais da ONU e outros organismos internacionais, buscando alternativas ao modelo econômico dominante – insustentável ecologicamente e injusto socialmente – algumas organizações da sociedade civil partiram para a estratégia de ação direta de enfrentamento da repressão policial que cerca as reuniões internacionais das entidades que manipulam o poder econômico e político global. Essas forças sociais transnacionais se organizam em torno de uma agenda que defende a democracia – política, social e econômica – a sustentabilidade ambiental e a diversidade cultural. Enfrentam, quase sempre, os interesses contrários das empresas multinacionais e do mercado financeiro, bem como dos Estados nacionais e organizações internacionais associados a tais interesses. Um das características marcantes do chamado processo de globalização é o enfraquecimento do Estado nacional e de seus atributos básicos. A soberania, autonomia e territorialidade se esvaziam pelo impacto de novos fenômenos e processos que transcendem a capacidade e até mesmo a possibilidade de decisão do Estado-nação. Comunicações eletrônicas, capital financeiro, poluição ambiental, tráfico de drogas, contrabando de armas, migrações, empresas transnacionais, invadem territórios deixando atrás Estados enfraquecidos e impotentes. Não apenas empresas multinacionais, como também organizações não governamentais têm hoje mais poder no cenário internacional do que a maioria dos países do mundo. Exemplo disso é a atuação de ONGs como a Anistia Internacional, Médico sem Fronteiras, Greenpeace, WWF etc., além das redes congregando entidades nacionais e locais em todo o mundo. Mas se a mídia vem dando grande destaque aos conflitos mundiais que acompanham as conferências internacionais, o mesmo não ocorre quando se trata de conflitos locais ou nacionais. Um bom exemplo é a luta da sociedade civil brasileira contra a imposição de alimentos transgênicos no mercado nacional por parte de multinacionais produtoras de sementes. Como se sabe, um grupo reduzido de empresas multinacionais produtoras e vendedoras de sementes transgênicas domina o mercado. As principais são a Monsanto, Novartis, Aventis, Dupont e Dow Chemical. A Dupont é a maior companhia mundial de sementes, seguida da Monsanto, ambas com receita acima de 1,8 bilhão de dólares cada uma. A Novartis – fusão da Ciba-Geigy com a Sandoz – é a terceira maior empresa do ramo com receita de quase um bilhão de dólares. Em seguida, vem a Aventis – fusão da Hoecht alemã com a Rhone-Poulenc francesa. Apesar do apoio obtido junto a certos cientistas e alguns setores da mídia, as multinacionais de biotecnologia vêm sofrendo contundente derrota na Justiça brasileira que, aplicando a Constituição, entendeu que não é possível lançar irresponsavelmente organismos transgênicos no mercado sem um prévio estudo de impacto ambiental e social, como manda a lei. As ações judiciais impetradas pelo Greenpeace e pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) foram vitoriosas nos tribunais federais em Brasília. Além de apoiadas na legislação brasileira, tais ações se fundamentam no princípio internacional da precaução, segundo o qual nenhum procedimento, processo, técnica, invenção ou descoberta deve ser aplicado se houver dúvida científica a respeito de seus possíveis danos à saúde humana ou ao meio ambiente. Nesse sentido, as organizações da sociedade civil defenderam o interesse público ao exigir na Justiça que o plantio da soja transgênica fosse permitido exclusivamente para efeito de pesquisa, durante o período de cinco anos. Igualmente grave é o caso do milho: a Monsanto domina 60% do mercado de sementes de milho no Brasil, a Dupont 14%, a Novartis 11% e a Dow 5% (A Transnacionalização da Indústria de Sementes no Brasil, Wilkinson/Castelli, ActionAid-Brasil, 2000). Ou seja, 90% das sementes de milho poderão virtualmente transformar-se em sementes transgênicas, agravando a dependência do agricultor em relação à indústria de biotecnologia e comprometendo seriamente a biodiversidade brasileira. Além disso, o Brasil perderia o crescente mercado dos consumidores que, em todo o mundo, cada vez mais rejeitam o alimento transgênico, o que acarretaria prejuízo comercial na exportação de grãos. Diante desse quadro, tem sido lamentável a postura do governo federal, mais voltada aos interesses comerciais das empresas transnacionais do que à defesa da saúde do consumidor brasileiro. Sete empresas transnacionais de transgênicos formaram um fundo de 50 milhões de dólares para “construir um apoio público para os transgênicos” (O Estado de São Paulo, 25/07/00). Há quem considere que essa fabulosa verba de publicidade ajuda a explicar certos apoios aos interesses das transnacionais. Recentemente, o presidente da república baixou decreto publicado no Diário Oficial de 19/07/01dispensando de rotulagem os produtos com menos de 4% de transgênicos na sua composição. Enquanto na Europa se exige rotulagem para produtos com mais de 1% de transgênicos, o decreto presidencial determina rotulagem indicando modificação genética somente para produtos contendo mais de 4% de organismos geneticamente modificados. Na prática, é um vigoroso passo adiante para liberar o comércio de transgênicos sem nenhum estudo sobre o impacto na saúde humana. Recorde-se que, em fins de 2000, o presidente FHC baixou, em 27 e 28 de dezembro, 74 Medidas Provisórias, entre as quais encontra-se a M. P. n° 2137 que atribui novos poderes à Comissão Tecnológica Nacional de Biossegurança – CTNBio – para emitir pareceres conclusivos destinados à liberação no mercado brasileiro de organismos geneticamente modificados (OGM), os chamados transgênicos. De qualquer forma, é no mínimo estranho que a CTNBio, enquanto órgão governamental incumbido de regular a produção e comercialização dos transgênicos, tenha se alinhado com as multinacionais, emitindo pareceres e decisões favoráveis à liberação dos transgênicos no mercado brasileiro, e sempre tenha perdido na Justiça. A Medida Provisória que fortalece a CTNBio para tentar impedir as derrotas que o governo federal e a Monsanto vêm colhendo na Justiça é mais um capítulo na luta que opõe o interesse público ao interesse econômico das