Sociedade Civil e Espaço Global
1 – O Renascimento do Conceito de Sociedade Civil O ressurgimento contemporâneo do conceito de sociedade civil tem sido interpretado como a expressão teórica da luta dos movimentos sociais contra o autoritarismo dos regimes comunistas e das ditaduras militares em várias partes do mundo, especialmente na Europa Oriental e na América Latina. Nas democracias liberais do ocidente, esse conceito tem sido considerado como desprovido de potencial crítico para examinar as disfunções e injustiças da sociedade, ou como pertencente às formas modernas iniciais da filosofia política que se tornaram irrelevantes para as sociedades complexas de hoje. Entretanto, o conceito de sociedade civil vem sendo cada vez mais usado para indicar o território social ameaçado pelos mecanismos politico-administrativos e econômicos, bem como para apontar o lugar fundamental para a expansão potencial da democracia nos regimes democrático-liberais do ocidente. Com efeito, a história da modernidade ocidental mostrou como as forças espontâneas da economia de mercado capitalista, tanto quanto o poder administrativo do Estado moderno, ameaçaram a solidariedade social, a justiça social e a autonomia dos cidadãos. Segundo Cohen e Arato, somente um conceito de sociedade civil devidamente diferenciado da economia – e portanto da “sociedade burguesa”- pode tornar-se o centro de uma teoria social e política crítica nas sociedades onde a economia de mercado já desenvolveu ou está em processo de desenvolver sua própria lógica autônoma. Assim, apenas uma reconstrução com base num modelo tripartite, distinguindo sociedade civil tanto do Estado quanto da economia, tem possibilidade de servir ao papel de oposição democrática desempenhado por este conceito nos regimes autoritários bem como de renovar o seu potencial crítico nas democracias liberais (Cohen e Arato, 1992). A sociedade civil, segundo essa concepção, é concebida como a esfera da interação social entre a economia e o estado, composta principalmente pela esfera íntima (família), pela esfera associativa (especialmente associações voluntárias), movimentos sociais e formas de comunicação pública. A sociedade civil moderna, criada por intermédio de formas de auto-constituição e auto-mobilização, se institucionaliza através de leis e direitos subjetivos que estabilizam a diferenciação social. As dimensões de autonomia e institucionalização podem existir separadamente, mas ambas seriam necessárias a longo prazo para a reprodução da sociedade civil. A sociedade civil não engloba toda a vida social fora do estado e da economia. É necessário distinguir a sociedade civil tanto de uma sociedade política de partidos, organizações políticas, parlamentos, quanto de uma sociedade econômica composta de organizações de produção e distribuição, em geral empresas, cooperativas, firmas etc. As sociedades política e econômica surgem da sociedade civil, partilham com ela algumas formas de organização e comunicação, e se institucionalizam através de direitos (especialmente direitos políticos e de propriedade) conjuntamente com o tecido de direitos que asseguram a sociedade civil moderna. Mas os atores da sociedade política e econômica estão diretamente envolvidos com o poder do estado e com a produção econômica visando a lucro, que eles buscam controlar e gerir. Não podem permitir-se subordinar seus critérios estratégico-instrumentais aos padrões de integração normativa e comunicação aberta característicos da sociedade civil. O papel político da sociedade civil não está diretamente relacionado à conquista e controle do poder, mas à geração de influência na esfera pública cultural. O papel mediador da sociedade política entre a sociedade civil e o estado é indispensável, assim como o enraizamento da sociedade política na sociedade civil. O mesmo pode ser dito quanto à relação entre sociedade civil e sociedade econômica, embora, historicamente, sob regime capitalista, a sociedade econômica tenha sido mais hermética à influência da sociedade civil que a sociedade política. Apesar disso, a legalização dos sindicatos e o papel das negociações coletivas testemunham a influência da sociedade civil sobre a econômica que desempenha, assim, um papel mediador entre a sociedade civil e o sistema de mercado. A sociedade civil representa apenas uma dimensão do mundo sociológico de normas, práticas, papéis, relações, competências ou um ângulo particular de olhar este mundo do ponto de vista da construção de associações conscientes, vida associativa, auto-organização e comunicação organizada. A sociedade civil tem, assim, um âmbito limitado, é parte da categoria mais ampla do “social” ou do “mundo da vida”. Ela se refere às estruturas de socialização, associação e formas organizadas de comunicação do mundo da vida na medida em que elas estão sendo institucionalizadas. Nas democracias liberais, a sociedade civil não está, por definição, em oposição à economia e ao estado. As concepções de sociedade econômica e política expostas acima referem-se a esferas de mediação mediante as quais a sociedade civil poderá exercer influência sobre os processos politico-administrativos e econômicos. Uma relação antagonista da sociedade civil, ou de seus atores, com a economia ou o estado surge apenas quando fracassam essas mediações, ou quando as instituições da sociedade econômica e política servem para isolar a tomada de decisões da influência de iniciativas e organizações sociais, participação e formas diversas de discussão pública (Cohen e Arato, 1992). A categoria de sociedade civil foi resgatada da tradição da teoria política clássica e reelaborada mediante uma concepção que apresenta os valores e interesses da autonomia social contrapostos tanto ao estado moderno quanto à economia capitalista. Além das antinomias de estado e mercado, público e privado, gesellschaft e gemeinschaft, reforma e revolução, a noção de defesa e democratização da sociedade civil parece ser o melhor caminho para caracterizar as novas formas contemporâneas de auto-organização e auto-constituição. Em meio a inúmeras ambiguidades de sentido relacionadas ao emprego da expressão sociedade civil, a concepção que adotamos assume uma defesa da sociedade civil moderna capaz de preservar sua autonomia e formas de solidariedade em face do estado e da economia. Esse “terceiro caminho” busca, em outras palavras, garantir a autonomia da economia e do estado moderno ao mesmo tempo em que protege a sociedade civil da penetração destrutiva realizada por aquelas duas esferas. Não só protege, como garante a diferenciação da sociedade civil do que Habermas chamou de “sistema” – o estado e o mercado – bem como sua influência reflexiva sobre essas duas esferas através das instituições da sociedade política e econômica. * É
Trabalho – Direitos Iguais – Lei combate preconceito nos prédios cariocas
O velho critério que reserva os elevadores de serviço dos prédios às empregadas domésticas e os elevadores sociais para uso exclusivo dos moradores sofreu, na semana passada, um duro golpe no Rio de Janeiro. Na Sexta-feira entrou em vigor a lei estadual 962, do deputado Liszt Vieira (PT), que determina o fim das diferenças e permite o livre acesso de trabalhadores em geral às partes comuns de um edifício, como elevadores e portaria. Vieira inspirou-se no artigo 153 da Constituição, segundo o qual todos são iguais perante a lei – e, com seu gesto, abriu uma polêmica ruidosa que promete ganhar os tribunais. Zangado, o presidente da Associação Brasileira de Administração de Imóveis, Rômulo Cavalcanti Mota, considerou a decisão um atentado à propriedade privada. “Vamos continuar obedecendo às convenções dos edifícios”, afirmou. “O prédio é uma propriedade particular e cada um faz as leis que melhor convêm à sua casa. “Na outra ponta das reações a presidente da Associação das Empregadas Domésticas do Rio de Janeiro, Anasir Maria de Oliveira, 52 anos, aplaudiu a decisão. “Agora temos um instrumento legal para brigar na justiça.” O anúncio da nova lei, no entanto, não modificou a rotina nas portarias e nos elevadores dos edifícios do Rio de Janeiro. “Essa lei aqui não vale nada”, dizia, na Sexta-feira à tarde, o porteiro Sebastião Vieira, do edifício Juan Les Pin, no Leblon, que possui três elevadores: o social, um para banhistas e outro de serviço, apenas para os empregados. No edifício São Carlos do Pinhal, na Avenida Atlântica, onde mora o governador Leonel Brizola, o porteiro Francisco de Assis revela que ali nunca houve necessidade de barrar nenhuma empregada doméstica. “Elas já estão acostumadas”, diz. “Quando entram vão direto para o elevador de serviço.” Já no edifício Domus, onde mora o prefeito Roberto Saturnino, muitos empregados foram proibidos de passar pela porta social. “É sempre muito constrangedor” admite a estudante Luciana Antonini, de 17 anos, que mora na cobertura do edifício e freqüentemente assiste a cenas deste tipo. No condomínio que abrange os edifícios Chopin, Prelúdio e Balada, na Avenida Atlântica, as normas são igualmente rígidas. Morada de figuras famosas como o empresário Alfredo Saad, a atriz Maitê Proença e o empresário Paulo Fernando Marcondes Ferraz, o condomínio tem no zelador Orlando dos Santos, 51 anos, um fiel guardião. “Aqui é patrão de um lado e empregado de outro”, diz o funcionário. Do outro lado, a nova lei mereceu aprovação da babá Isabel de Fátima Carvalho, 29 anos, que trabalha num edifício de Copacabana e agora considera o deputado Liszt Vieira um “gênio”. No seu local de trabalho Isabel deve usar o elevador de serviço quando sozinha – e o social quando está com criança no colo. “É humilhante”, diz. “RAÍZES CULTURAIS”- O próprio Liszt Vieira admite os limites da lei que produziu. “A discriminação tem raízes culturais”, diz. “É uma herança do escravagismo que não se muda de repente.” Há outra agravante. Por se tratar de lei estadual ela não pode fixar penas para os infratores. O advogado imobiliário José de Oliveira Costa vê nessa característica da lei a razão de sua própria nulidade. “Ela não tem chance de subsistência”, garante. “Além disso aumentará a incidência de assaltos.” Costa adverte para o fato de a lei prever genericamente o acesso de pessoas aos edifícios. Mas o deputado ressalva que a segurança nos edifícios estará sempre resguardada. “Está claro que terão acesso apenas as pessoas que trabalham nos prédios ou que são solicitadas para serviços avulsos”, esclarece. A Associação Brasileira dos Administradores de Imóveis promete recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra a medida, alegando sua inconstituicionalidade. O autor da lei confia que nenhuma decisão judicial poderá torpedear a legislação. “A liberdade está acima da propriedade”, retruca. Pelo menos em um lugar Vieira tem certeza que sua lei não será desrespeitada: no prédio de três andares em que mora, no bairro de Santa Teresa empregados e proprietários sempre tomaram juntos o mesmo elevador. “Aqui me sinto muito bem”, conta a empregada do deputado, Marlene Cunha, de 49 anos. “Meu patrão me deu até uma cópia da chave da porta social.” Enquanto a discussão durar, uma coisa é certa: as pessoas que acham errado confinar seus empregados aos elevadores dos fundos poderão enfrentar as convenções dos condomínios. Quem acha que o critério é correto sempre poderá instruir os empregados a usarem o elevador de serviço, com a mesma autoridade que dispõe para pedir-lhes que sirvam o jantar.
QUEBEC: A PONTA DO ICEBERG
No mundo atual, muitos problemas tornaram-se imediatamente globais, impossíveis de serem resolvidos por meio de políticas nacionais isoladas. Os mercados se globalizaram, o meio ambiente não conhece fronteiras, os meios eletrônicos de comunicação muito menos. Inúmeros tratados internacionais foram aprovados na segunda metade do século XX na área ambiental, científica, cultural, econômica, social, criminal etc.Os impactos da globalização reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes, conferindo-lhes perspectivas não territoriais e extranacionais. O Estado reformula seu papel em função de variáveis econômicas externas, como expansão do comércio mundial, políticas macroeconômicas e maior mobilidade internacional do capital. A mentalidade das elites dominantes se desterritorializou a tal ponto que mesmo a ‘segurança’ é definida mais em termos da economia global do que em relação à defesa da integridade territorial. Desta forma, face às graves implicações sociais da globalização econômica, nem o Estado, nem o mercado, estão interessados em incentivar a mobilização popular, mantendo a cidadania passiva e apolítica. Coube à sociedade civil, voltada à defesa do interesse público, a tarefa de mobilizar as energias cívicas da população para defender, no plano transnacional, os princípios da cidadania fertilizados com os ideais de democracia política, diversidade cultural e sustentabilidade ambiental. Surgiu, assim, em todo o mundo, um sem número de associações de militantes idealistas que oferecem resistência à globalização dominante, propondo uma globalização alternativa, um projeto emergente de construir uma sociedade civil global visando à democratização das relações internacionais.Um dos principais objetivos desses atores não estatais é assegurar normas que regulem as operações das empresas transnacionais. Um dos cenários desse confronto tem sido as Nações Unidas com suas conferências globais sobre temas sociais, econômicos e ambientais, onde essas associações civis transnacionais tiveram intensa participação. Hoje, organizações como Anistia Internacional ou Greenpeace, por exemplo, têm mais poder no cenário internacional do que a maioria dos países. Todas essas manifestações de protesto realizadas nas reuniões internacionais de Seattle, Washington, Montreal, Genebra, Praga, Nice, Davos e, agora, Quebec, são demonstrações da resistência à globalização autoritária por parte do movimento mundial de cidadãos. Elas apontam, sem dúvida, para o fortalecimento transnacional da sociedade civil, de que o Fórum Social Mundial em Porto Alegre foi um bom exemplo.Trabalhando de forma mais constante e menos ruidosa, milhares de organizações da sociedade civil pressionam diariamente as instâncias internacionais de tomada de decisões, transmitindo-lhes suas próprias posições com o objetivo de confrontá-las com os interesses dos governos e das corporações transnacionais. Segundo o professor Boaventura de Souza Santos, os protestos contra a (des)ordem neoliberal global constituem uma afirmação vigorosa de que as lutas democráticas transnacionais já são hoje um pilar importante do sistema político internacional. Para ele, a grande maioria dos manifestantes protesta contra a globalização predadora, protagonizada pelo capitalismo global, mas em nome de uma globalização alternativa, mais justa e equitativa, que permita uma vida digna e decente à população mundial, e não apenas a um terço dela. O próprio presidente do Banco Mundial, na reunião de Praga, afirmou: “Algo está errado se os 20% mais ricos da população mundial recebem mais de 80% do rendimento mundial. A continuar essa situação – em que mais de metade da população mundial vive com 2 dólares por dia, até menos – o mundo caminha para um colapso social” (Folha de São Paulo, 2/11/2000). Uma das propostas mais importantes desse movimento mundial de cidadãos é a aplicação da Taxa Tobin que prevê a cobrança de 1% sobre cada transação financeira para fins sociais. Segundo os membros da ATTAC, 0,05% seria suficiente para cobrir duas vezes as necessidades fundamentais da humanidade. As organizações da sociedade civil assumiram assim a postura de um contra-poder ao executivo global formado pela OMC, Banco Mundial, FMI e a OCDE, o qual decide soberanamente, sem qualquer abertura democrática, acerca do destino de todos os habitantes do mundo. Expressaram, das formas mais diversas, a demanda por justiça e igualdade que irrompe em contrapartida ao processo de globalização. Constituiram-se em uma fiscalização essencial em meio ao poderio das organizações internacionais e notadamente das empresas multinacionais.A repressão policial às manifestações de protesto em Quebec, como as anteriores, constitui apenas a ponta do iceberg. A ascensão de novas forças sociais no plano mundial demonstra que os Estados não detêm o monopólio da esfera pública e que, ao contrário, existem formas não estatais de governança que podem ser usadas para promover a democracia e o desenvolvimento sustentável, regular o mercado e defender a civilização contra a barbárie. Liszt VieiraProf. PUC-Rio e UFFAutor de Os Argonautas da Cidadania e de Cidadania e Globalização
A Família entre o Moderno e o Pós-Moderno
A constituição da família nuclear, separada do grupo de parentesco mais amplo, assim como a separação do doméstico e da economia, foram produzidas pela Modernidade, vista a partir do paradigma da produção. Já a fragmentação contemporânea da família nuclear seria a decorrência não da Modernidade, mas da pós-modernidade. A família moderna não poderia ficar imune ao impacto das transformações trazidas pela pós-modernidade. Anteriormente, o processo de modernização produzira a constituição da família nuclear. Trata-se, agora, de analisar as transformações operadas na família nuclear moderna pela pós-modernidade. É o que dá conta o excelente ensaio de Jeni Vaitsman. Seu livro baseia-se nas histórias de vida de 11 mulheres, formando casais, nascidos entre 1944 e 154 e vivendo no Rio de Janeiro: a geração que viveu o movimento antiautortário do final da década de 60, que marcaria algo como um momento de transição do moderno para o pós-moderno. Sem perder de vista os processos macrossociais, ela faz um esforço bem sucedido em mostrar como as escolhas e ações individuais produzem esses mesmos processo. Nesse sentido, a fragmentação pós-moderna desaparece para dar lugar a uma totalidade bem construída e historicamente contextualizada. As transformações mais amplas passadas pela sociedade brasileira nas últimas décadas são articuladas às situações individuais, relatadas pelos entrevistados em três momentos de sua trajetória de vida: adolescência, primeiros casamentos/separações e novos casamentos/relacionamentos. Contrapondo-se às teorias que vêem nos novos comportamentos uma “modernização” da família, para Jeni Vaitsman essas mudanças significam justamente o esgotamento do tipo moderno de casamento e família. Moderno porque legitimado por um discurso universalista sobre os papéis sexuais “corretos” no casamento e na família, baseado numa visão sobre uma natureza, ou essência, dos sexos. Na formação da sociedade moderna, a separação entre público e privado na família restringiu a individualidade feminina, que só podia manifestar sua essência enquanto mãe e esposa. Considera a ruptura da dicotomia entre público e privado pelas mulheres como parte das tendências pós-modernas de emergência do “outro”, que desafiaram as “metanarrativas de legitimação”, os discursos universalizantes normativos sobre os papéis sexuais no casamento e na família. Mas ao mesmo tempo, era essa submissão da individualidade que mantinha a estabilidade do casamento e da família. A maior igualdade entre os sexos levou à instabilidade do casamento e da família e ao surgimento de modelos alternativos de relacionamento, à medida em que as pessoas procuram reconstruir suas vidas afetivo-sexuais. Em circunstâncias pós-modernas, os discursos sobre o casamento e a família não têm mais a pretensão da validade universal. Num contexto de maior igualdade entre os homens e mulheres, de mudanças extremamente rápidas, de fragmentação social e individual, as escolhas tornaram-se flexíveis e plurais. O que se apresenta como instável, caótico e desordenado na família – separações, novos casamentos, vários modelos ao longo da vida, filhos morando com pai ou com mãe e convivendo com meio-irmãos – nada mais é que a emergência de novos padrões, estruturalmente instáveis, contextuais, marcados pela contingência e pela heterogeneidade. Assim como em outras esferas – ciência, arte, filosofia etc. – nas relações de casamento e família estamos diante de práticas e discursos que não respondem mais a modelos unívocos, universais. O caos, o acaso, a aleatoriedade, também chegaram ao mundo das relações interpessoais. Vemos, assim que, a autora utiliza conceitos pós-modernos que parecem adequar-se bem a seu objeto de estudo. Mas olha o pós-moderno com os óculos da modernidade, ainda com base na matriz da produção, buscando a construção de uma totalidade. Prefere apoiar-se em autores como David Harvey que analisa o pós-moderno de uma forma moderna fundado no paradigma marxista de produção: do fordismo à acumulação flexível. Mas se é possível explicar a constituição da família nuclear moderna a partir da produção, não seria possível encontrar correspondência entre a produção e a atual fragmentação da família nuclear nos centros urbanos. Ao não assumir a radicalidade dos conceitos que utiliza, a autora nem sempre aproveita a potencialidade analítica dos conceitos pós-modernos, reduzidos por vezes à perspectiva unificadora da razão moderna. Flexíveis e Plurais, ma non troppo. o que se ganhou buscando uma totalidade provavelmente se perdeu em dimensões analíticas concretas. Mas o que ficou de fora poderá ser resgatado em futuras pesquisas que obrigatoriamente levarão em conta a importante contribuição de Jeni Vaitsman na análise das transformações contemporâneas na família conjugal moderna. Liszt Vieira – Departamento de Sociologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de JaneiroRevista Ciência Hoje vol 19 nº 114 – outubro de 1995
MUDANÇAS CLIMÁTICAS : IMPACTO NO BRASIL
MUDANÇAS CLIMÁTICAS : IMPACTO NO BRASIL Segundo o Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) de março de 2014, durante o século XXI os impactos das mudanças climáticas deverão reduzir o crescimento econômico, tornar mais difícil a redução da pobreza, agravar a insegurança alimentar e criar novas “armadilhas” de pobreza, principalmente em áreas urbanas e regiões castigadas pela fome. Tais impactos agravarão a pobreza na maioria dos países em desenvolvimento e criarão novos bolsões de pobreza nos países com crescente desigualdade. As famílias pobres serão afetadas com o aumento no preço dos alimentos, principalmente nas regiões de alta insegurança alimentar e grande desigualdade, como é o caso, principalmente, da África. Diferentemente dos países industrializados, em que a queima de combustíveis fósseis é a principal causa das emissões de CO2 – principal gás de efeito estufa (GEE) que influi diretamente na mudança de clima – no Brasil as emissões são provenientes da mudança do uso da terra, sendo a principal a conversão de florestas para uso da agropecuária. De modo geral, a perda de florestas contribui mundialmente com cerca de 17% das emissões de GEE. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, no Brasil, a agricultura anual – voltada para plantio de grãos – representa somente 4,9% da área desmatada (34,9 mil km2), sendo que a pecuária extensiva, cuja expansão é continua e crescente desde a década de 1970, é a principal responsável pelos desmatamentos na Amazônia, com 62,2% dos quase 720 mil km2 desmatados até hoje na Amazônia. Tendo em vista a contribuição da geração hidrelétrica, o Brasil tem uma matriz energética relativamente “limpa”, com baixos níveis de emissões de GEE por unidade de energia produzida ou consumida. O problema, aqui, normalmente diz respeito à ausência de consulta ou repartição de benefícios com comunidades locais no desenvolvimento dos projetos. Madeira, Xingu e Tapajós, por exemplo, são rios cujas comunidades ribeirinhas e indígenas são grandemente prejudicadas. Além disso, a ênfase nas mega usinas hidroelétricas oculta que a repotencialização das hidrelétricas existentes e o combate às perdas na distribuição reduziriam a necessidade de implantar tantas novas mega usinas, com alto impacto ambiental e social, e eliminariam a utilização das usinas termoelétricas, altamente poluentes. Em fins de março de 2014, o IPCC lançou o Relatório do Grupo II detalhando impactos, adaptação e vulnerabilidade associadas com mudanças climáticas. O Relatório discute os riscos de insegurança alimentar devido a secas, inundações, ondas mais fortes de calor num mundo mais quente, o que afetaria sobretudo os países mais pobres. Prevê-se uma queda no rendimento das colheitas agrícolas a partir de 2030, enquanto a demanda por alimentos continuará a aumentar. Haverá graves problemas no abastecimento de água devido ao degelo nas geleiras e na mudança do padrão de precipitação pluvial. Em decorrência, surgirão conflitos violentos e mesmo guerra civil pela disputa de recursos naturais. Um aumento maior na temperatura do planeta acarretará danos consideráveis à economia mundial. As populações mais pobres serão as mais afetadas, pois a intensificação dos eventos climáticos extremos, dos processos de desertificação e de perdas de áreas agricultáveis levará à escassez de alimentos e de oferta de água potável, à disseminação de doenças e a prejuízos na infraestrutura econômica e social. Na conferência do IPCC em Yokohama, no Japão, em março de 2014, foi ressaltada a necessidade de se promover a adaptação baseada em ecossistemas, como já ocorre em países da América Central e do Sul, onde técnicas como criação de áreas protegidas, acordos para conservação, pagamento por serviços ambientais e manejos comunitários de áreas naturais estão sendo testadas. Por outro lado, em sua reunião em Berlim, de 7 a 12 de abril de 2014, o Grupo III do IPCC, dedicado a propor medidas de mitigação das mudanças climáticas, alertou o mundo que, para evitar aumento de temperatura acima de 2º C, será necessário reduzir imediatamente a dependência de combustíveis fósseis e iniciar uma “mudança massiva” para energias renováveis. O QUE MUDA NO BRASIL? O Relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, divulgado em setembro de 2013, prevê um aumento de 6 graus na temperatura até 2070, com queda na produção agrícola. A agricultura brasileira pode sofrer prejuízo anual de R$ 7 bilhões. Tomando como base os hectares cultivados em 2009 e se mantidas as atuais condições de produção, as projeções para 2030 apontam grandes reduções de área. Para o feijão, a queda vai de 54,5% a 69,7%. Para a soja, a redução é estimada de 15% a 28%. Trigo, de 20% a 31,2%. Milho, de 7% a 22%. Arroz, de 9,1% a 9,9%. E algodão, de 4,6% a 4,9%. O café, por exemplo, precisa de 18 ºC a 22 ºC de média anual. Fora disso, a cultura não se desenvolve. Ainda nos próximos sete anos, o plantio de soja pode perder 20% de produtividade. E até 2050 a área plantada de arroz pode retroceder 7,5%, a de milho, 16%, e a geração de energia ser ameaçada pela redução de até 20% na vazão dos rios. Analisando o Relatório, a ex-Ministra Marina Silva comentou que “isso ocorre porque a pauta do governo e de setores atrasados do agronegócio fixou-se em desmontar a legislação ambiental e anistiar quem desmatou, como se as florestas e rios atravancassem o país e a agricultura. Agora, voltam-se contra os índios e suas terras, para reduzí-las e abrí-las à exploração mineral e agropecuária” (Folha de São Paulo, 13/9/2013). A vazão de importantes rios do país e o abastecimento de lençóis freáticos, responsáveis pelo fornecimento de água potável para a população, poderão ser comprometidos se a temperatura subir até 6 º C nas próximas décadas e o volume de chuvas diminuir, conforme cenário que considera que os níveis de emissões de GEE permaneçam altos. Neste ambiente, a agricultura e o setor de energia do Brasil poderão ser fortemente impactados, sob risco de queda brusca do Produto Interno Bruto (PIB) e constantes crises que envolvem o abastecimento energético e segurança alimentar. Fonte: Portal G1 –Setembro 2013 Ainda segundo o documento, a temperatura no Brasil pode aumentar de 3º C
A Geopolítica da Guerra: Com A Palavra, O Inverno
Liszt Vieira 22/7/2022 A guerra na Ucrânia ainda não tem luz no fim do túnel. O Ocidente (leia-se os EUA) mandam armas modernas para prolongar a guerra e desgastar a Rússia. A possibilidade de a Ucrânia ganhar a guerra é praticamente nula. Mas o presidente Zelensky, que passou de corrupto denunciado na lista dos Panama Papers para herói, não parece interessado em acordo de paz. Os EUA estão se dando bem: o erro lamentável de Putin ao invadir a Ucrânia fortaleceu a OTAN e os militares americanos, aumentou o lucro dos empresários da indústria bélica, garantiu o emprego dos trabalhadores e não morreu nenhum americano. Mas esse ganho dos EUA se dá apenas a curto prazo. A longo prazo, prevalece a tendência ao multilateralismo, com o enfraquecimento da hegemonia americana e o fortalecimento da China. As sanções econômicas contra a Rússia não tiveram o efeito desastroso anunciado. É verdade que os EUA confiscaram as reservas internacionais da Rússia, cerca de 630 bilhões de dólares. Mas a Rússia passou a vender petróleo para outros mercados, fora do Ocidente, principalmente a Índia e a China, que aceitaram pagar em rublos. E a Europa é a principal prejudicada, pois já começou a sofrer os efeitos dessas sanções com a inflação nos preços da energia e alimentos. O euro já começou a se desvalorizar. A Europa, principalmente a Alemanha, vai se ferrar sem o gás russo no inverno ou vai aceitar pagar em rublos, rompendo o acordo com a OTAN, leia-se os EUA. “A retomada das exportações de cereais da Ucrânia é uma questão de vida ou morte”, declarou em 18/7 último Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para Relações Internacionais. Com a guerra, a Rússia passou a controlar o porto e a Ucrânia não consegue exportar sua produção de grãos pelo Mar Negro. A Rússia está disposta a fazer acordo com a Ucrânia desde sejam removidas as restrições que pesam sobre suas próprias exportações (Le Monde Diplomatique, Juillet 2022). Após a renúncia do premier italiano Mario Draghi em 21/7 passado, a União Europeia teme que a Itália mude de posição sobre Putin. A Itália depende em mais de 70% de energia externa, e hidrocarbonetos da Rússia cobrem mais de um quinto de seu consumo total. As sanções contra a Rússia “são um dano auto infligido à economia europeia que não afeta o poder de fogo russo” (O Globo, 22/7/2022). A Itália seria a ponta de lança, mas a Alemanha pode seguir o mesmo caminho antes de chegar o inverno europeu. Afinal, quase a metade do consumo de gás natural na Europa provem da Rússia. Na Alemanha, chega a 55%. A invasão da Ucrânia fortaleceu a OTAN e os EUA que, há tempos, boicotam o gasoduto Nord Stream 2 que liga a Rússia e a Alemanha. Uma aproximação comercial e política da Alemanha (puxando o resto da Europa) com a Rússia poderia ser um golpe fatal na hegemonia americana na Europa que passaria a se aproximar da Eurásia. Até agora os EUA tiveram sucesso em bloquear esse gasoduto, mas a necessidade econômica pode acabar falando mais forte. O inverno dirá.
CIVIL SOCIETY AND GLOBALIZATION
The reorganization of international relations after the end of the Cold War and the debate over a world economic order for sustainable development are aspects of a long-term, worldwide process that is transforming national public functions into global ones. This process reflects capitalism’s inherent tendency toward globalization, and is occurring in a lopsided and contradictory form. For the English sociologist Anhony Giddens, globalization has caused a decentralization of power on the international level – it rests ever less in a unified territorial scenario, or in a single privileged group (such as the international bourgeoisie), or in a primary determinant (for example, the military/strategic realm), or at a primary level (for example, the nation-state). The world order can no longer be understood as merely the subject of relations among States or hegemonic blocks. One must have a vision that considers the complexities of relations between time and place and the ambiguities of space as a place. Different authors, such as Giddens, David Harvey and Otavio Ianni, among others, coincide in affirming that the theory of globalization requires a multi-dimensional theory of space, of a simultaneous process with space-time scope and intensity. Social relationships in each specific locale suffer, albeit in diverse form, the impact of distant processes and events, while at the same time the former influence the latter (from this comes the groups and sexes. The recognition of the growing reach and intensity of relationships of space and time, of an increasingly interdependent global socialization, make traditional notions archaic. A good example is the idea that globalization means standardization, which overlooks the fact it is compatible with heterogeneity and diversity. Economic, technological and class determinism, political insurrectionalism and apocalyptic approaches appear today to have been eclipsed by new social movements that are starting to offer more complex responses to global concerns. I have analyzed elsewhere (principally in my book Cidadania e Globalização. (Editora Record, 1997) the paradigm of civil society and the kaleidoscopic phenomenon of globalization. Here I focus only on some points pertaining to the action of civil society and its organizations on the global scene. 1. With the end of the Cold War, the UN organized a series of conferences to discuss global problems. After Eco-92 in Rio de Janeiro there were the conferences on Human Rights in Vienna, Population in Cairo. Social Development in Copenhagen, Women in Beijing, and Habitat in Istanbul. Despite their questionable effectiveness, these conferences have contributed to the creation of a global public space dedicated to the consideration of planetary questions. The constitution of this globalization: civil society. I am referring here to the multiplicity of organizations that, whether in name of the rights of certain social groups or of the common social good, submit themselves neither to the interests of a particular State nor to the mechanisms of the market. These are Civil Society Organizations (CSOs)* and the social movements they have been articulating on a worldwide basis. This transnational articulation of civil society today constitutes one of the few forms of resistance to the imbalances created by globalization, for its ethical principles imply the recognition of universal rights that should be institutes. The State and the market by themselves cannot confront the economic, social and environmental crises that are overwhelming us. Society is increasingly being called upon to formulate alternatives. The same crises that weaken the State strengthen the CSOs. What is meant by a global civil society? Globalization implies the growing importance of the supra-territorial, or aterritorial, level, and thus crates the possibility, the necessity, of developing a global civil society. This means a sphere for democratic forces that is not wedded to capitalism/the State, and is anti-competitive/anti-hierarchical. From this come debates about reforming the UN and other inter-governmental organizations, about new standards, and about the interrelationships among inter-governmental organizations and global social movements, all of which go beyond territorial boundaries. Last but not least, the building of a transnational public sphere will be determined by two principles: the international public interest and the common patrimony of all mankind. Human rights and the international public interest place limits on the claims of sovereign entities and the voracity of transnational sovereignty, transforming it into a Global Law of Humanity. 2. One of the main characteristics of the contemporary world is, therefore, economic globalization and the development of new forms of solidarity among citizens, configuring a new trend toward the formation of a global civil society as a counterpoint to the tendency for the weakening of the nation-state. According to Roland Robertson, among the elements that characterize the current phase of globalization – which he calls the “phase of uncertainty” that began in the 1960’s – are a global civil society and world citizenship. On the other hand, Boaventura de Sousa Santos points out over the past 20 years new forms of action for social change have emerged in the world: popular movements or new social movements with fresh political agendas – ecology, peace, opposition to racism and sexism – alongside the traditional ones for improved quality of life – economic survival, housing, land, social welfare, education. These movements, centered on the themes of democratization, citizenship, liberties, cultural identity, besides those that constitute the “common heritage of mankind” (sustainability of human life on earth, the global environment, nuclear disarmament) have favored those CSOs with worldwide scope. For Professor Richard Falk of Princeton University, in addition to “top-down globalization,” led by the dominant nations and world market forces, there has been “bottom-up globalization,” carried out by transnational democratic forces serving as vehicles for the “law of humanity.” This latter phenomenon seeks the creation of a global civil society as an alternative to the global economy designed by the forces of transnational markets. The hopes of humanity depend on the ability of this “bottom-up globalization” in a series of key arenas, such as the UN (and other international organizations), the media and the orientation of States. This assumes that the development of the public function starting from the top (international institutions and regimes
Para Os Eleitores de Bolsonaro
Liszt Vieira 20/7/2022 Como você sabe, a Terra é plana. Essa história de terra redonda é coisa de comunista. Galileu, Copérnico, Leonardo da Vinci, eram todos comunistas Como você sabe, a pandemia não existiu, era uma gripezinha, curada com cloroquina que você devia tomar todo dia, para continuar enriquecendo os amigos do mito. Como você sabe, vacina faz mal à saúde. Não tome nem vacine seus filhos. Como você sabe, todo mundo deve andar armado, preparado para a guerra civil que o mito vai convocar se não ganhar a eleição. Como você sabe, o Supremo Tribunal defende a Constituição, e o que queremos é um Tribunal que defenda os interesses do mito. Como você sabe, Trump ganhou a eleição e foi roubado. Se o mito perder, é porque roubaram. Espalhe essa fake news. Como você sabe, o mito defende a família. Claro que a dele em primeiro lugar. A dos outros, deixa pra lá. Como você sabe, o mito combate a corrupção. A corrupção dos outros. A dele, a de sua família e a de seus aliados, a gente esquece e que ninguém se intrometa, talkei? Como você sabe, o mito está fechando biblioteca e abrindo clubes de tiro em todo o país. Esse negócio de educação, ciência, cultura e meio ambiente, é coisa de comunista. Como você sabe, a gasolina e os alimentos estão caríssimos, tudo culpa do PT. O mito faz passeata de motocicleta e não cuida disso. Como você sabe, a fome voltou, os pobres tornaram-se miseráveis, a classe média está empobrecendo e o número de bilionários aumentou no Brasil durante a pandemia. Mas isso não é nada perto do orgulho de termos nosso mito na presidência do Brasil! Como você sabe, o verde da bandeira está sendo destruído pelo desmatamento, garimpos, pecuária, agronegócio, mineração, incêndios, e o patrimônio nacional está sendo vendido a preço de banana. Mas somos patriotas e apoiamos o mito. Grite conosco: Deus, Pátria e Família! Assim gritavam os fascistas brasileiros do movimento integralista dos anos 30 do século passado. Deu errado. Como você sabe, Jesus Cristo era pacifista e morreu torturado. Mas o mito apoia a tortura, armas para todos e a guerra civil. E ele foi enviado por Deus! Ou teria ele feito pacto com o demônio para ser o Anti Cristo?
Os Militares e o Golpe
Liszt Vieira 12/7/2022 Passarinho que se debruça – o voo já está pronto! (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas) A possibilidade de um golpe para adiar, anular ou impedir a eleição presidencial em outubro próximo paira como uma espada de Dâmocles na cabeça dos brasileiros. É o que se discute em todo o país. Afinal, já ficou claro que o “sistema-jagunço” invadiu as cidades, tendo como chefe político o presidente da república que não abandona seu projeto fascista de destruir a democracia e implantar uma ditadura no Brasil. E a movimentação dos militares, questionando a legitimidade da urna eletrônica, aponta nessa direção, sugerindo que o passarinho já se debruçou, preparando o voo. Os jagunços, descritos por Guimarães Rosa, distinguem-se dos sertanejos de Canudos, descritos por Euclides da Cunha. Enquanto estes últimos lutavam contra a ordem e a propriedade, os primeiros eram muitas vezes associados aos grandes fazendeiros e exerciam a violência armada sem projeto alternativo de poder. Em ambos os casos, “a lei está na ponta do fusil”. O jaguncismo do sertão mineiro é o modelo das milícias urbanas que impõem seu poder pelo uso da força física que deixa de ser monopólio exclusivo do Estado. O mandonismo patriarcal dos cangaceiros e jagunços se deslocou para as cidades, onde grupos mafiosos de milicianos passaram a controlar parte do território urbano, cobrando impostos e impondo a violência privada contra a ordem pública. No Rio de Janeiro, por exemplo, e não só, os milicianos controlam hoje metade da cidade. Essas milícias, juntamente com grupos de PMs, praças e bolsonaristas armados, constituiriam a base de apoio imediata de um golpe, na forma híbrida que assumir. Mas o fator principal caberia ao papel que as Forças Armadas vierem a desempenhar. Todo golpe na América Latina (e não só) teve apoio americano. Sem apoio americano, é possível um golpe? Biden, que vê Bolsonaro – amigo de Trump – como adversário, já mandou recado por dois diplomatas dizendo que o sistema eleitoral brasileiro é confiável. Afinal, amigo do meu inimigo vira inimigo também. Lula seria um mal menor. E deputados do Congresso americano ameaçaram cortar acordos militares se as Forças Armadas se intrometerem na eleição. Ao escolher um general como vice, que não amplia nem traz votos, Bolsonaro sinalizou opção preferencial pelo golpe, sem abandonar, contudo, a disputa eleitoral que pretende turbinar com a PEC eleitoral e o aumento do Auxílio Brasil. Muitos acham, porém, que os militares devem impugnar a eleição, talvez até antes, alegando fraude ou falta de confiabilidade na urna eletrônica. Dessa forma vão virar a mesa, tanque na rua é coisa do passado. A imprensa internacional já está fazendo denúncias nesse sentido. O desgaste interno e internacional seria enorme. Poderemos ter grandes conflitos e confrontos pela frente, com resultado imprevisível. Mas ainda estamos no reino das incertezas. Lula deve ganhar a eleição, mas o cenário político é incerto. As previsões não são boas, algumas até assustadoras. Ninguém morrerá de tédio. Mas pode haver mortes em confrontos e atentados. O assassinato de Marcelo Arruda em Foz de Iguaçu seria o início de uma escalada? Alguns comentaristas colocaram no mesmo plano a vítima e o agressor que assassinou o guarda municipal de Foz de Iguaçu, Marcelo Arruda, em sua festa de aniversário, na presença de amigos e convidados. Falaram em “troca de tiros”. O assassino invadiu a festa, sem ser convidado, e atirou no aniversariante que homenageava Lula em sua festa. A vítima, já caída no chão, reagiu, em legítima defesa, atirando no agressor que foi ferido. Alguns jornalistas culparam a “polarização política” pelo assassinato de Marcelo Arruda. Durante muitos anos, houve polarização política entre o PT e o PSDB, mas nunca houve a violência de hoje que se explica pelo incentivo explícito do presidente fascista ao clima de ódio e à aquisição de armas pela população, com o objetivo de promover uma guerra civil visando à implantação de uma ditadura militar. Está cada vez mais claro que esta eleição implica o confronto da civilização com a barbárie, da democracia com a ditadura. A direita, com seus apoios entre os militares, empresários, evangélicos e endinheirados em geral, já fez sua escolha pela barbárie, já que a terceira via, como ficou claro, só existe na mídia que tentou sem sucesso criticar a polarização entre os “dois extremos”. Do lado antifascista, é lamentável que um político de tradição democrática, como Ciro Gomes, tenha definido Lula como seu inimigo principal. Ele está contribuindo indiretamente para fortalecer o candidato fascista. Nesse processo, ele está se autodestruindo, e o PDT vai pagar um alto preço por ter embarcado nessa canoa furada. Alguns afirmam que os militares vão forçar o adiamento das eleições e prorrogar o mandato do presidente B. e de todos os parlamentares e governadores. Justificativas não faltariam, tudo seria feito em nome da pacificação do país que seria destroçado com os conflitos antes e/ou depois da eleição. A tradição golpista das FFAA brasileiras vem de longe. Deixando de lado a quartelada que foi a Proclamação da República e o período da República Velha até a revolução de 30 e o golpe que derrubou Getúlio em 1945, tivemos diversas tentativas mal sucedidas como Jacareacanga, em fevereiro de 1956, contra a posse de Juscelino Kubitschek, Aragarças, em dezembro de 1959, contra uma imaginária ameaça comunista. Isso, sem esquecer a tentativa de golpe contra Vargas em 1954, fracassada após seu suicídio. Ou melhor, adiada dez anos. Outro destaque importante foi o golpe que impediu a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, sob a alegação de que ele estava na China em missão diplomática e comercial. Por isso, era comunista. Poucos anos depois, o presidente Nixon dos EUA visitou a China, que hoje é o maior parceiro comercial do Brasil. A inteligência geopolítica nunca foi o forte dos militares brasileiros, aprisionados na visão medíocre do “inimigo interno” e do anticomunismo que prevalecia durante a Guerra Fria, com ressonâncias até hoje. O show de ignorância e mediocridade dos generais brasileiros, hoje no poder, envergonha a inteligência
Fragmentos de um Discurso Ecológico: Reflexões Críticas de Ecologia Política
Liszt Vieira Antagonismo homem-natureza e crise ecológica Desde suas origens, a tradição ocidental colocou a natureza à disposição do homem para que ele a subjugasse. Com raras exceções, é assim que ela aparece no Antigo e no Novo Testamento, no Corão, nos filósofos medievais e nos pensadores racionalistas dos séculos XVII e XVIII.Tal ocorre tanto nas concepções teocêntricas quanto nas antropocêntricas. É nas sociedades fundadas com a revolução industrial, porém, que o antagonismo homem-natureza se aprofunda e se define. Mas houve intervalos e exceções. A concepção pré-socrática, por exemplo, entendia que os deuses estão presentes em todas as coisas. Para a mitologia grega, os deuses e os homens, como se sabe, têm a mesma origem. No princípio, era o Caos, segundo a cosmogonia de Hesíodo, e do Caos surgem Urano e Gaia, o Céu e a Terra, daí surgem os deuses e os homens(1). O que os diferencia não é a origem, mas sim o destino: os deuses são imortais. Entretanto, os deuses são formados à imagem e à semelhança dos homens, com sentimentos e paixões, qualidades e defeitos humanos. Os deuses gregos não são entidades sobrenaturais, pois são compreendidos como parte integrante da natureza (2). Assim, não existia, como na tradição judaico-cristã, um Deus incriado que criou o Universo e todas as coisas. Os deuses e os homens coexistem na natureza (3) e isso leva, evidentemente, a uma relação especial ente o homem e a natureza. Na própria terminologia da língua grega, a palavra Physis significa a natureza e o homem com suas ações e pensamentos. Havia portanto uma palavra que englobava o significado natureza-homem enquanto que, nas línguas modernas, homem e natureza são dois termos distintos. Pensando a Physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser e a totalidade do real. Certamente outros exemplos existem ao longo da história, mas a que prevaleceu na tradição ocidental é uma concepção de natureza submetido ao homem para que este a dominasse. Foi sobretudo com a influência judaico-cristã que a oposição homem-natureza, espírito-matéria, adquiriu maior expressão. Esta concepção encontrou sua formulação máxima e melhor justificação no filósofo René Descartes. A concepção cartesiana colocava o homem como sujeito e a natureza como objeto: o homem passa a ser o senhor e mestre da natureza. A concepção cartesiana vai influenciar, profundamente nos últimos séculos e que encontra sua expressão máxima na Revolução Industrial. Seguindo a trilha aberta por Descartes, o pensador Francis Bacon, tempos depois, afirma que o homem deve domar a natureza como se domina uma mulher. Na sua concepção, a natureza é feminina, enquanto que a dominação do homem sobre a natureza é o elemento masculino. O antropocentrismo, o sentido pragmático-utilitarista do pensamento cartesiano e a oposição do sujeito em relação ao objeto, à natureza, vão marcar a modernidade. A natureza, já não mais povoada por deuses, pode ser dessacralizada, pode ser tornada objeto, ser dividida e, tornada natureza-morta, esquartejada. Este antropocentrismo arraigado rompe qualquer possibilidade de integração homem-natureza, numa visão cósmica como partes do Universo. A organização social patriarcal e os sistemas econômicos predatórios que prevaleceram nos últimos séculos podem, assim, também ser considerados decorrências do racionalismo cartesiano que inaugura a modernidade. Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja natureza. Nesse sentido, “o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens” (4). A natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que se opõe à cultura. A cultura é tomada como algo superior que conseguiu controlar e dominar a natureza. Com a agricultura, o homem domestica a natureza e se torna sedentário, considerando primitivos os nômades. Dominar a natureza é dominar a inconstância, o instinto, as pulsões e as paixões. O Estado, a lei e a ordem tornam-se necessários para evitar o primado da natureza, onde reina o caos e a lei da selva. Tal conceito de natureza justifica a existência do Estado e considera primitivos os povos que não têm Estado. Além disso, a expressão dominar a natureza só tem sentido a partir da premissa de que o homem é não-natureza. Mas se o homem é também natureza, falar em dominar a natureza é falar em dominar o homem também. O capitalismo leva essa tendência às últimas conseqüências. O iluminismo, no século XVIII, e a Revolução Industrial são a expressão e a base dessas idéias. A ciência e a técnica adquirem, no século XIX, um significado central na vida dos homens. A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza, cristaliza-se com a Revolução Industrial e torna-se dominante no pensamento ocidental. No chamado mundo ocidental, ou vemos a natureza como algo hostil, lugar de luta de todos contra todos, da chamada lei da selva, ou vemos a natureza como harmonia e bondade. No primeiro caso, justifica-se o Estado para impor a lei e a ordem e impedir o caos e a volta ao “Estado da Natureza”, à animalidade. No segundo caso, critica-se o homem que destrói a natureza, mantendo-se a dicotomia homem-natureza. A primeira vertente é antropocentrismo, a Segunda é naturalismo. Homem e natureza caem um fora do outro. Essas teses estão claramente desenvolvidas no livro de Gonçalves (5), que reflete uma ecologia política por vezes de inspiração marxista. Rejeita-se a oposição homem-natureza, apregoa-se a necessidade de pensar sociedade e natureza de uma forma integrada e orgânica, mas aplica-se tratamento diferenciado aos dois termos da equação, mantendo-se, assim, a dicotomia que se quer superar a permanecendo-se prisioneiro da visão dualista que se pretende refutar. Com efeito, a “luta de todos contra todos” é rejeitada apenas no plano da natureza, mas aceita no plano da sociedade sob a forma de luta de classes. Um diagnóstico para a natureza, um outro para a sociedade; eis a ambigüidade que não foi superada, pois o pensamento dialético só consegue ver o mundo pelo prisma da luta, do conflito e da negação. É incapaz de percebê-lo como criação. Pensar na natureza (e a sociedade evidentemente) sob o modelo da
Golpe Militar Sem Apoio Americano?
Liszt Vieira 26/6/2022 Todos os golpes militares na América Latina, e não só, tiveram apoio dos EUA. A questão que se coloca hoje é que o governo americano não está apoiando uma possível tentativa de golpe no Brasil. O governo Biden enviou ao Brasil uma diplomata e uma ex-futura embaixadora que disseram a mesma coisa: o sistema eleitoral brasileiro é confiável. Para bom entendedor, o recado foi: não apoiamos golpe militar no Brasil, seja de que forma for. Há muitas contradições envolvidas, para quem não tem medo de enfrentá-las. Uma delas é que Lula seria um mal menor para o governo americano. Afinal, Bolsonaro é fiel amigo de Trump, inimigo de Biden. E, ainda por cima, Trump á aliado de Putin. Ambos querem enfraquecer a União Europeia. Isso, sem falar em negócios de Trump na Rússia. Business acima de tudo. Quem é amigo de meu inimigo, vira inimigo. É assim que Biden vê Bolsonaro. Por isso não gosta da ideia de sua reeleição, por mais contradições que vislumbre com um futuro governo Lula. A estratégia dos militares do governo é desmoralizar a eleição, mostrar que ela não é confiável, para virar a mesa e garantir a continuidade do atual governo. Não seria um golpe militar clássico, com tanque na rua para tomar o palácio do governo onde, aliás, já estão encastelados, usufruindo de muitos privilégios. O plano é muito arriscado, com poucas possibilidades de dar certo. Além disso, essa estratégia não conta com o apoio de todos os militares e empresários, apenas de parte deles, e também de muitos “liberais” que, como se sabe, sempre apoiam ditaduras militares na América Latina quando seus interesses econômicos estão em jogo. Estamos praticamente a 3 meses da eleição. O quadro eleitoral tem se mantido estável há um ano, com variações muito pequenas. Lula tem chances de ganhar no primeiro turno. De qualquer forma, ganharia folgadamente no segundo turno. Dificilmente, esse quadro sofrerá mudanças significativas. O presidente genocida blefa muito, mas não parece disposto a largar o poder quando perder. Não se sabe o que vai fazer. Alguma loucura do tipo invasão do Capitólio nos EUA? Ou mobilizar suas “tropas” milicianas para invadir seções eleitorais ou locais de apuração? O segundo semestre promete muitas emoções, lutas e confrontos.
Nietzche e a Reversão do Platonismo
Por Liszt VieiraI – O PLATONISMO A metafísica é marcada, segundo Nietzche, pela presença de uma certa questão que surge no seio do platonismo. Existem diálogos platônicos onde vamos encontrar um personagem essencial da obra platônica que sabemos tratar-se de Sócrates. Os diálogos platônicos se desenvolvem sempre em torno de uma determinada questão que Sócrates propõe a seus interlocutores. Esta questão referente a qualquer tema, seja a beleza, a coragem, ou a justiça, é sempre posta em termos de: “o que é isto?”, “o que é aquilo?”. O que é a justiça? O que é a beleza? O que é a coragem?. Quando Sócrates pergunta “o que é a beleza?”, o seu interlocutor, Hípias, não hesita em responder que a beleza são corpos belos, obras belas. Mas Sócrates rejeita os exemplos de coisas belas, de causas eventuais, e exige a definição da beleza enquanto tal. Se Sócrates recusa de Hípias, como resposta, causas eventuais ou exemplos tirados do mundo sensível em que vivemos, obviamente a pergunta socrática remete a uma outra ordem. Sócrates não quer saber o que são as coisas na medida em que elas possuem a qualidade de beleza, mas o que vem a ser a beleza em si mesma. Assim, a pergunta Socrática nos afasta das percepções sensíveis e nos coloca no domínio das essências. Para Nietzche, a metafísica se constroi a partir dessa maneira de levantar a questão. Toda a vez que perguntamos sobre a significação ou sobre a essência de alguma coisa, nós estamos no domínio metafísico. A resposta de Hípias estava no campo do mundo sensível, isto é, Hípias falava sobre um determinado aspecto da beleza. Para ele, a beleza não podia ser apreendida para além daquilo que fosse belo. Para Hípias, como sofista, o que é belo o é sempre para alguém. As coisas que se apresentam como coisas belas implicam sempre a presença de alguém que aprecie tais coisas e este alguém é que vai dar às coisas a qualidade de beleza ou feiura. Sócrates, contrário a Hípias, sai em busca das essências. Ele acha que para além daquilo que aparece existe uma essência. Ele rejeita a resposta de Hipias porque ele julga tal resposta extraida puramente do domínio sensorial, ou melhor, do domínio da “doxa”, da opinião, do senso comum. Nesse sentido, para o platonismo, o ser se encontra para além do mundo sensível. Quando Sócrates pergunta “o que é a beleza?” e quando ele recusa como resposta exemplos extraidos do mundo sensível, ele quer saber o que é a verdadeira beleza, o que é a beleza em si, isto é, a essência da beleza. No platonismo, ela não pode ser buscada no mundo sensível porque neste nós somente nos encontramos com coisas que são belas e que para serem belas participam de alguma maneira da essência da beleza. Platão, por consequência, é levado a fundar o mundo verdade que se encontra para além do mundo sensível. É o mundo das idéias. Para Nietzche, está aí a origem histórica de um grande erro. Essa questão da verdade, tal como aparece na metafísica, é uma invenção platônica. Platão funda o mundo da verdade no domínio das essências puras, inalcançável aos sentidos. E esse mundo verdade serve de medida para o mundo sensível que nós habitamos. Nietzche vai dizer que a tarefa da sua filosofia consiste em reverter o platonismo, isto é, descobrir no platonismo as suas próprias motivações, descobrir a vontade que move Platão, descobrir o que ele queria quando constrói o seu universo filosófico, quando ele funda a metafísica enquanto tal. Nesse sentido, Nietzche empreende uma crítica ao platonismo, buscando dentro dele o elemento diferencial que move toda a obra platônica. Nessa crítica, já se pode apreender o método Nitzcheano que é a genealogia. Nietzche quer chegar à vontade de Platão. O platonismo hoje em dia parece uma fábula. Mas se há algo do platonismo que permanece na modernidade é a vontade de Platão, uma vontade de selecionar, de buscar a verdade, a pureza, a essência. A vontade de Platão atravessa as idades. Nietzche, ao se deparar com Platão, não está apenas fazendo um inventário histórico ou uma história da filosofia. O que faz na realidade é uma crítica dos valores que se instituíram no Ocidente graças à contribuição do platonismo. Por exemplo, a história da filosofia é marcada pela busca da verdade, das essências, das naturezas como se, por detrás daquilo que aparecesse houvesse uma verdadeira natureza. Ela é marcada pela questão “o que é isso?”, questão essa que nos remete sempre para o domínio das significações. Aristóteles faz uma crítica a Platão por ter introduzido o procedimento mítico na filosofia. Aristóteles quer partir para um domínio puramente racional, mas as premissas platônicas não são questionadas porque ele se insere no mesmo projeto de Platão. Ele não critica o fato de Platão ter querido a verdade pois ele também a quer. Parece que o cerne do platonismo permanece ao longo do desenvolvimento da metafísica ainda que determinadas questões sejam postas como anacrônicas, ultrapassadas. II – A REVERSÃO DO PLATONISMO Reverter o platonismo significa descobrir no seio da obra platônica as motivações de Platão. O que queria Platão quando construiu tal obra? Quais eram os interesses do platonismo ao criar o mundo das idéias? Quais os interesses que dão vida à obra platônica? Em três textos, “o Sofista”; “Fedro”; “o Político”, Platão apresenta o método da divisão. A proposta desse método é buscar a resposta para a questão: “o que é isso?”. Se eu pergunto “o que é a beleza?”, se quero o ser da beleza, estou em busca de uma definição e nessa medida eu rejeito todas as respostas que possam vir do domínio da opinião ou da doxa, por serem respostas eventuais. Portanto, a busca de uma definição implica obviamente um método. O método da divisão consiste em atingir a definição de uma determinada coisa ou de uma determinada natureza. No “Político” o método da divisão implica, como ponto de partida um gênero, eleito arbitrariamente, que subssume diferenças